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 CONTEÚDO 

UM COMUNISMO MAIS FORTE QUE A METRÓPOLE - Rosso 1976

Atualizado: 9 de jul. de 2020


Legenda: capa do jornal Rosso, número 8, de 24 de abril de 1976.


Em continuidade ao programa de publicações acerca das primaveras ao redor do mundo, Maio Insurgente, idealizado e realizado em parceria com a editora Sobinfluencia, publicamos o terceiro texto, traduzido pelo nosso amigo e colaborador Vinícius Nicastro Honesko, acerca da Itália insurrecionaria e autonomista de 1970. Para introduzir o assunto, no viés que consideramos mais interessante desse período e contexto, postamos aqui um trecho de Um piano nas barricadas: por uma história da Autonomia, Itália 1970, em que Marcello Tarì disserta sobre o presente texto:


"Existia na Itália, em meados dos anos setenta, uma consciência difusa [...] e, consequentemente, as práticas do Movimento que visavam à habitação de um tempo libertado, antiprodutivo e fortemente erotizado, faziam com que a desmaterialização do trabalho fosse acompanhada de uma utilização extremamente concreta dos lugares, baseada no contato entre os corpos, na circulação de afetos e no desfrutar material da cidade. Um uso que prefigurava um outro comunismo, o das máquinas desejantes, o dos corpos devassos, o das cidades não autoritárias, o das mil atividades de cooperação horizontalmente lançadas na reconstrução de um mundo. O comunismo contra a metrópole* queria dizer, na Itália dos anos setenta, a existência da autonomia difusa e isso permanece até hoje um dos elementos estratégicos da 'insurreição que vem'.

Talvez fosse algo nos limites da utopia, mas, em todo caso, nunca houve, por parte da Autonomia, uma reivindicação pobre e folclórica do ócio, mas sim a procura dos meios mediante os quais uma atividade cooperativa em larga escala poderia funcionar também no período em que o capitalismo ainda seria uma força hegemônica. Assim, o comunismo não foi considerado como um modo de produção 'alternativo', nem sequer como uma forma 'mais justa' de trabalhar – como, aliás, o próprio Marx já tinha defendido –, mas como a afirmação de um meio que, destruindo o presente estado de coisas e suprimindo o trabalho, perseverasse numa forma de vida orientada para a felicidade, como gritava um belo documento de A/traverso – Giornale dell’autonomi: 'a prática da felicidade torna-se subversiva quando se coletiviza'."

(em Capítulo II - Serpar/Ação de Um piano nas barricadas, de Marcello Tarì, p. 146-147)


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Quarta-feira, 10 de março, 18h, Praça Cairoli: [1] Marcha dos coletivos e dos organismos autônomos de toda a cidade. Chega-se à manifestação por meio de um longo debate entre todas as forças da área, que tem início a partir da ocupação de Stadera, [2] e que tem como objetivo produzir um mínimo de juízo (e de programa) comum capaz de estabilizar, no território metropolitano, todas as situações de intervenção e todas as instâncias de luta da autonomia e do proletariado juvenil que se reconhecem em momentos e formas de organizações dadas. O primeiro momento de verificação dessa discussão, dessa tentativa de superar localismos e autonomismos em direção a um tipo de centralização "de programa”, e o claro ultimatum à junta vermelha, à prefeitura, aos policiais, a todas as estruturas do comando da metrópole do capital e do trabalho.

Estes são os conteúdos do Manifesto: Igualitarismo, recusa do trabalho assalariado, renda garantida e busca por uma qualidade diversa da vida, conteúdos que se tornam cada vez mais demanda por comunismo como socialização e satisfação das necessidades de todos os jovens proletários. E são justamente os jovens proletários – como todos os operários e os desocupados – a sofrer, a cada dia, com força cada vez mais massiva e terrorista, o ataque da desocupação, da marginalização, da criminalização das lutas, da subtração dos espaços vitais, da guetificação, da prisão e da repressão, da droga pesada. O ataque da polícia à festa da Re Nudo, [3] a evacuação da rua Pezzotti, a multiplicação dos ataques da repressão, a tentativa já generalizada de criminalizar qualquer comportamento de classe, diariamente demonstram a que nível o confronto está chegando. Por isso, é necessária uma organização imediata, e garantir que saibamos nos ligar a processos cada vez mais amplos de continuidade e generalização, a todas aquelas formas de luta, aqueles modos de organização que produzem poder comunista nas fábricas e nos bairros. Ataques aos centros juvenis, evacuações e repressões cotidianas não devem existir mais, e o poder deve pagar cada vez mais caro por isso.

De resto, a multiplicação dos ataques da parte proletária à metrópole não é mais apenas um dado emergente, uma luta antecipadora, uma subjetividade de vanguarda. Nas apropriações, na marcha armada e no ataque militar se reconhecem e se recompõem estratos de classe, comportamentos políticos sempre mais amplos. A organização político-militante já encontra sua continuidade em cada emergência de luta. Ao lado da loja expropriada, começam a ser fechados os bares onde se trafica heroína, as sedes da Comunione e Liberazione [4] são – e é uma ação simultânea que a partir de Milão ecoa e se multiplica em toda a Lombardia – perseguidas e destruídas.

Sobre essas indicações de programa, sobre esses conteúdos, os companheiros se mobilizam, decidem descer à praça. Na Cairoli, somos, na reunião das 18h, dois mil. A Polícia Estatal e os "porcos” procuram impedir a aglomeração: a manifestação se dissolve para se reproduzir de forma incontrolável por toda a cidade. A estação da Porta Garibaldi é ocupada. No fim de uma tarde de luta e confrontos, o balanço só pode ser positivo. No território metropolitano, na praça, a autonomia sabe ser uma força política real, que além da própria fragmentação organizativa, além de algumas incompreensões, além de certas zonas de pouca clareza política (os Comitês Comunistas para o Partido Operário não desceram à praça), sabe ser uma força política, dizíamos, capaz de promover e desenvolver um concreto programa de trabalho comunista.

O proletariado juvenil fixa-se na cidade consciente da circularidade de seu projeto, aceita a lógica do bairro como momento de verificação da possibilidade de construir contrapoder, saltando toda mediação, toda forma de negociação por meio de instituições, por meio do reformismo e de sua geografia política.

Justamente a circularidade do programa é o dado que, a partir da Manifestação do ultimatum, caracteriza toda a fase de trabalho dos dias que se seguem. Numa precisa troca - política - de informações, no debate, na prática sobre os termos, a temática das apropriações, do salário social, do ataque ao trabalho, torna-se algo episódico do cotidiano, que, mesmo na dispersão das formas de luta e dos lugares políticos, dá uma valência diversa à ronda operária e proletária de bairro, especifica a direção de ataque para o comitê dos desocupados, inventa e propõe novas formas (a taxação, o preço verdadeiramente “político") de luta e de contrapoder.

A partir da pequena fábrica, do bairro, do tecido social recomposto sobre novos níveis, deve desaparecer toda forma de controle, toda forma de poder da organização do trabalho. A ocupação militar da cidade, os diretores locais da repressão, o homem armado do capital e do estado não devem mais existir: sua estratégia antioperária deve ser frustrada.

Esse terreno de proposta política, essa prática crescente, esse expandir-se e multiplicar-se de um real processo de agregação, é a força política que determina, inserindo-se diretamente nas contradições da jornada sindical, o salto da manifestação autônoma de 25 de março. A marcha que desde a praça da Catedral se destaca primeiro, recolhe e transforma as indicações operárias de todos os dias que precederam a greve, frustra de uma só vez as políticas de mão dupla de Lotta Continua, [5] mostra a Avanguardia Operaia [6] em seu oportunismo, exprime de forma positiva toda a raiva e o emputecimento do operário social na crise, dá corpo político e generalização aos episódios de ataque que florescem... ao lado da marcha. A batalha política por uma jornada de luta além da negociação, além da repressão sindical, é vencida pela autonomia operária no plano da iniciativa política global, no plano da mais correta (e criativa) dialética entre vanguarda e níveis de massa. Assim, quando chega a notícia de que um grupo de companheiros armados tornou inviável a sede dos pequenos industriais, a marcha pode desfilar diante da prefeitura com faixas e falas bem diversas de "ao governo de esquerda” que o Potere Operaio [7] e os outros lutaram para lançar.

Diante disso tudo, não pode faltar a provocação, que salta pontualmente a partir do terreno do compromisso histórico “alargado": de noite, no Palalido, [8] a Polícia de Estado e os guardas disparam com suas metralhadoras nos companheiros que querem entrar para ouvir um show. O Quotidiano dei lavoratori [9] denuncia, com toda a severidade de que habitualmente dispõe, um "acordo” maliciosamente estabelecido entre prefeitura, policiais e forças da autonomia para “fazer provocação".

Quando chegam todas as notícias, todas as crônicas dos episódios de confrontos e de ataque que no território metropolitano caracterizaram a greve geral, quando chegam as notícias de Varese, de Bergamo, o quadro da capacidade geral de ataque das forças que compõem a área da autonomia se faz mais completo. E, além de todo triunfalismo, o balanço que disso se pode fazer é mais do que encorajador.

Justamente por isso, hoje, a partir de um programa tão “elementar" quanto real, como é elementar e real a necessidade de socializar no terreno do confronto anticapitalista e antiestatal a própria necessidade de comunismo, o problema que hoje a metrópole em geral, e a megalópole lombarda em particular, coloca à autonomia operária é o do enraizamento, no nível da maior difusão e circularidade, das formas de organização e de trabalho político adequadas à sustentação e ao amadurecimento da resposta por parte dos proletários e operários no terreno da crise. Não há coletivo, não há situação de trabalho político que não tenha essa consciência.

Apenas organizando dentro de um momento do programa unificador, sempre verificável no concreto das lutas e dos termos, toda a bagagem de elaboração de lutas destes anos, é que é possível garantir a passagem para o ataque dos objetivos estratégicos da luta no trabalho e do assalto proletário à riqueza social.


Nesse quadro, a complexidade já é dada a partir do caráter endêmico do confronto, da reprodução contínua e de massa da exemplaridade e da iniciativa político-militar e a partir da dificuldade nesse fenômeno especular de conseguir defender realmente os companheiros da repressão (vale para todos a duríssima e imotivada condenação de um companheiro da Porta Ticinese [10]); nesse quadro, dizíamos, um elemento estratégico é dado pela retomada da iniciativa operária, em particular na fábrica. O problema não é tanto o de julgar a capacidade dos operários de colocar objetivos políticos autônomos e de levantar os instrumentos de amplificação, as caixas de ressonância para lançar campanhas políticas. A experiência das 35 horas [11] deveria ser exemplar nesse sentido.

O problema está em compreender, e em praticar, toda a complexa rede de relações políticas, subjetivas e objetivas, que ligam toda emergência de luta autônoma na fábrica – dentro da prisão da negociação ou fora, contra ela – à luta no terreno da grande fábrica social.

A complexidade e a amplitude dessas relações se dá, por um lado, a partir da impossibilidade de responder à crise, à desocupação, à caixa integração [12] nas pequenas fábricas, ou pulando de imediato a fase da mediação e reportando imediatamente à circularidade de programa (e de estratégia) à qual se referia o problema do contrapoder operário no trabalho. E eis que por isso instrumentos “operários" como o piquete, a ronda, o comitê de desocupados se tornam momentos de coágulo que unificam e recompõem numa única e grande capacidade operativa “sujeitos" políticos diversos.

Por outro, essa grande polaridade de classe que é a classe operária milanesa – um mal cada vez menos obscuro cujos sinais há anos a cidade já carrega – não consegue produzir como tecido estável, como faixa sedimentada, aquela “direção operária” sobre o confronto capaz de dirigir esse estágio e de exprimir na prática a outra grande passagem estratégica, a do partido operário contra o trabalho. Mas isso certamente não quer dizer que o problema seja de um estágio do confronto no qual o operário não está presente. Também em Milão, como em Turim, a fábrica está cada vez mais em revolta. A Alfa está em revolta, que cresce incontrolavelmente e impõe ao conselho municipal e ao prefeito o bloqueio das mercadorias, e mais uma vez acontece a difícil marcha operária em direção ao coração da cidade que descobre em absoluto seu papel de vanguarda de luta da classe operária milanesa. Está em revolta a Siemens, que na retaliação – em todos os seus setores – como resposta à reestruturação, na atipicidade de cada estágio do confronto (pensem na luta dos guardas que por dois meses levantaram a cabeça contra o patrão, resistindo também ao desmembramento e à destruição do setor: nada mais de armas, de uniformes, de polícia do patrão contra os operários), descobre o instrumento cada vez mais unificador da marcha interna, sobrecarrega os diretores, desemboca no território metropolitano com uma dignidade sempre renovada. E em revolta está a Face Standard, onde a luta do K, um dos setores-chave, pula imediatamente o estágio da negociação e coloca objetivos igualitários, não aceita mais a relação de mediação com os conselhos e os delegados sindicais.

O ponto chave, portanto, se torna o reconhecimento, nessa permanência da mais alta capacidade de confronto, do signo da incoercível indisponibilidade de classe em toda operação reformista, e em intensificar no plano da proposta e da prática política o alcance desses objetivos, já igualitários e comunistas, que reunificam a figura do operário, do proletário e do marginalizado numa única subjetividade de iniciativa.

Recusa do trabalho, portanto, como recusa do comando, salário garantido como expropriação de riqueza social, organização da fábrica e de seus setores contra todo gueto e marginalização, sabotagem, supressão da fisicalidade da produção como movimento de libertação.

Que em Milão e em toda Lombardia isso possa ser dado como programa político de breve duração não é algo impossível. Cabe aos companheiros, às forças organizadas da autonomia, verificar a possibilidade de ser praticada neste terreno, no plano sempre dialético da antecipação, da difusão em níveis sempre mais amplos, da estabilização: numa só palavra, em suma, da organização.

tradução de Vinícius Nicastro Honesko



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Notas

* "Referência ao título original do presente livro, Un Comunismo Più Forte della Metropoli [Um comunismo mais forte que a metrópole], que mantém conformidade com a revista Rosso, número 8, de 24 de abril de 1976, cujo título foi Operai contro la metropoli [Operário contra a metrópole], e que também continha internamente um texto homônimo ao título idealizado pelo autor de Um piano nas barricadas: por uma história da autonomia, Itália 1970, Marcello Tarì. [1] N.E.: Praça que se localiza em Milão (IT).

[2] N.T.: Bairro de Milão.

[3] N.T.: Re Nudo – Rei Nu: fundada em 1970, foi uma das principais revistas libertárias de contracultura. Durante os anos 70, promoveu uma série de eventos ligados aos movimentos operários jovens, dentre eles as festas da Re Nudo, nas quais se promovia música, artes, discussões políticas etc..

[4] N.T.: Comunhão e Libertação é um movimento católico eclesial. Em 1976, foram associados por diversos grupos de esquerda a uma campanha, financiada pela CIA e pelo Vaticano, contra o comunismo. Várias de suas sedes foram atacadas com coquetéis molotov.

[5] N.T.: Luta Contínua foi um dos maiores movimentos extraparlamentares de orientação comunista revolucionária e operaísta na vida política italiana dos anos setenta.

[6] N.T.: Vanguarda Operária foi um movimento de extrema-esquerda (operário-leninista) atuante entre 1968 e 1978.

[7] N.T.: Poder Operário foi um movimento extraparlamentar de extrema-esquerda que teve como um de seus principais teóricos e militantes Antonio Negri.

[8] N.T.: Trata-se de um ginásio de esportes de Milão onde com frequência acontecem shows e apresentações.

[9] N.T.:Cotidiano dos trabalhadores foi um jornal de esquerda extraparlamentar. Primeiro, esteve associado ao grupo Avanguardia Operaia e, depois, ao Democrazia Proletaria. [10] N.E.: Antigo bairro boêmio de Milão.

[11] N.T.: Referência às lutas pela redução na jornada de trabalho.

[12] N.T.: Previsto pela legislação italiana, a cassa integrazione é um instituto que prescreve uma prestação econômica a trabalhadores de empresas que se encontram em dificuldades econômicas.

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Rosso: "A primeira série de Rosso – quindicinale del Gruppo Gramsci teve seis números publicados entre março e junho de 1973, pelo referido grupo, considerado um embrião da Autonomia Operária, originado durante a ocupação da Universidade de Milão em 1970 (em contraposição à via institucional e parlamentar do Partido Comunista Italiano). Após a interrupção de alguns meses, a revista foi relançada em dezembro do mesmo ano, com novo subtítulo, Rosso giornale dentro il movimento, por remanescentes do Gruppo Gramsci junto à ala ligada a Negri do recém-dissolvido Potere Operaio. Reproduções de todos os números da publicação estão disponíveis em: <https://www.autistici. org/operaismo/Rosso/Index.htm>." (Nota da Edição número 9, no Capítulo I - Corte, p. 35, do livro Um piano nas barricadas: por uma história da autonomia, Itália 1970, de Marcello Tarì, publicado no Brasil em dezembro de 2019, pela GLAC edições juntos da n-1 edições.


Vinícius Nicastro Honesko, atualmente, é professor do Departamento de História da UFPR, onde é coordenador do bacharelado em História, Memória e Imagem e da linha de pesquisa Arte, Memória e Narrativa, do Programa de Pós-Graduação em História.

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