Entre o neoliberalismo e a revolução
(O intertítulo faz parte do capítulo Hip-Hop no Brasil: esperança nas periferias da periferiado capitalismo)
Não podemos ignorar que o Hip-Hop, hoje, não só não é mais inspirado predominantemente por um ideário político revolucionário como, pelo contrário, é atravessado fortemente por ideologias associadas às formas mais avançadas do capitalismo contemporâneo. O pessoal do Bocada Forte, que manteve um competente acompanhamento jornalístico do movimento, de forma contínua nesses últimos 25 anos, já publicou vários textos que discutem essas mudanças.
Em primeiro lugar, o Hip-Hop teve que encarar a nova doutrina do capital, que às vezes se confunde com a promoção que vemos do "empreendedorismo", associada à precarização do mundo do trabalho, nas últimas décadas. Num mundo em que os patrões querem oferecer cada vez menos garantias aos trabalhadores, a ideia de que as pessoas precisam ser "empresárias de si mesmas" ficou cada vez mais forte. "O estilo 'self-made-man', além de fazer parte das letras dos MCs, também foi para as ruas", publicava o BF em 2012. E, num texto de 2022, completava o raciocínio:
No neoliberalismo, o fracasso econômico é algo individual, é o lugar e o resultado de quem não se recicla, não se reinventa. Hoje, nos discursos que ouvimos nas redes sociais, segue a ideia que os excluídos no sistema capitalista precisam ser empreendedores da periferia para crescerem e saírem dessa situação de desigualdade, mas quase nada é dito sobre uma crítica social ao capitalismo.
Não por acaso, talvez, a religiosidade popular hoje associa o sucesso individual à bênção de Deus. É como se o controle sobre nossas vidas tivesse realmente nos escapado. E, de fato, um complicador do quadro atual é que parte significativa do controle sobre quem terá ou não visibilidade perante o público é feita de forma automatizada pelos famosos "algoritmos" comandados pelas grandes multinacionais de tecnologia. Como apontou a equipe do BF, nesse mesmo texto:
São elas [as bilionárias plataformas digitais] que têm a decisão final de alavancar ou restringir o alcance dos rappers, trappers e DJs. Para conseguir vencer em meio aos milhares de lançamentos mensais, é preciso seguir as regras. Quem conseguiu sair de uma zona de desigualdade acredita que está bom assim, afinal, é um direito dele.
E a reflexão se aprofunda neste outro editorial:
O culto à imagem pessoal, a busca incessante por validação e a transformação de experiências cotidianas em espetáculos virtuais são reflexos diretos dessa dinâmica. Os algoritmos, controlados por poucos, de um lado moldam a realidade que é apresentada a cada usuário, criando uma bolha personalizada que reforça visões de mundo preexistentes e limita a diversidade de perspectivas, de outro limitam criadores de conteüdo e artistas que, por medo de cancelamento e perda de seguidores, praticam cada vez mais a autocensura.
A imposição do espetáculo nas redes sociais não é apenas uma consequência do capitalismo, mas também uma ferramenta de perpetuação do status quo. A crítica, muitas vezes marginalizada, emerge como uma tentativa de desvendar as engrenagens que movem essa máquina. A ideia de rebeldia, porém, é cooptada e transformada em um produto consumível, uma revolta de fachada que, no fim das contas, serve aos interesses dos que detêm o controle.
O fato é que, como já podemos perceber no campo da política eleitoral, os algoritmos são guiados pelos instintos humanos mais básicos – ódio, paixão, raiva, nojo, ternura, tesão – e, se não houver algum nível de governo sobre esses mecanismos, tendemos simplesmente ao fascismo, à violência em múltiplas formas. Isso não é especulação: ex-funcionários das big techs têm, cada vez mais, vindo a público para denunciar que, da forma como as plataformas funcionam hoje, não há escrúpulos em utilizar violência, discursos de ódio ou apelos sexuais, desde que os dólares continuem fluindo para os bolsos dos bilionários do Vale do Silício.
Se o resultado de plataformas desgovernadas, na política, são governantes fascistas, que tipo de rap ou trap está sendo privilegiado? Até que ponto devemos considerar que o sucesso de artistas num contexto como esse indica um norte que realmente nos possa conduzir a algo positivo para nossas coletividades? Que rap é esse que viraliza nas redes de gente como Mark Zuckerberg, Elon Musk e Peter Thiel, que têm cada vez mais "saído do armário" para declarar seu apoio à extrema direita?
Contrastando com o Rap alternativo e politizado, a extrema direita e seus seguidores têm adotado uma abordagem diferente: a disseminação da desinformação. Movidos por agendas políticas específicas, alguns grupos têm explorado o que chamam de “flexibilidade da verdade” para avançar em suas causas. A criação de narrativas convenientes, independentemente de sua fundamentação na realidade, tornou-se uma estratégia comum. De certa forma, os fatos não se impõem para os integrantes desse imenso grupo. (...) Manter a realidade ou distorcê-la são ações que refletem as complexidades e os desafios de 2024. O Rap e o Hip-Hop não podem fechar com a extrema direita. “As ruas estão olhando…”
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Se há motivos para alerta no "andar de cima" e também nessa relação com as redes, por outro lado, podemos perceber que, em sua base, o Hip-Hop amadureceu imensamente nas últimas três décadas.
Em primeiro lugar, a democratização do acesso à produção e publicação de música e vídeo gerada pela internet e pela digitalização permite que, hoje, o Hip-Hop seja multicêntrico e muito mais autônomo em nível local. Ninguém precisa mais conquistar o Sudeste para gravar um disco, aparecer na TV ou gravar um videoclipe. As cenas culturais locais se multiplicaram, o que é muito positivo para o país – e não foi diferente com o Hip-Hop. O Bocada Forte, mais uma vez, é uma ótima referência: os lançamentos de artistas do Brasil todo têm cada vez mais destaque.
O Hip-Hop hoje inclui, de forma muito contundente, as mulheres, em todas as suas vertentes. Ver no palco uma grafiteira, b.girl, MC ou DJ já não é algo raro como algumas décadas atrás. E as minas têm não só ocupado o espaço, como trazem suas próprias pautas. Dá-se o mesmo com o público LGBT, que também tem ganhado espaço na cena brasileira. A sociedade mudou, e mesmo uma cultura que se configurava como um espaço de reflexões eminentemente masculinas, como era o rap até os anos 1990, em vários momentos, acompanhou. Não é que não haja reclamações, e que tudo esteja 100% resolvido, mas ao menos conquistou-se o espaço para discutir os problemas. Mais uma vez, cito um texto do Bocada Forte:
O questionamento sobre o espaço das mulheres no Rap, suas expressões de autonomia e a luta contra o machismo são temas que devem ser trazidos à tona com mais frequência de forma séria, não apenas para buscar engajamento nas redes sociais.
O Hip-Hop cresceu, saiu da marginalidade, a tal ponto que hoje é impensável que raps como "Mulheres Vulgares", ou "Garota sem vergonha" sejam tocadas num show ou num baile sem que a casa vá abaixo ou fique esvaziada com os protestos. Ao mesmo tempo, isso não quer dizer que a música de periferia como um todo tenha evoluído positivamente no que diz respeito ao tratamento com as mulheres – pelo contrário. Que o diga o funk (que já não é mais só carioca, sendo produzido em todo o país), com suas letras capazes de fazer corar muita gente.