(parágrafos iniciais)
Um — Por um sentido (extra)vazante de Self
* este excerto não contém as notas da autora e da edição
Na teoria psicanalítica de Esther Bick, a relação do bebê com o mundo é mediada pela capacidade que a pele tem de servir como um receptáculo da experiência: “Em sua forma mais primitiva, as partes da personalidade são sentidas como se não fossem ligadas umas às outras e, portanto, devem ser mantidas juntas de um modo que torne possível experenciá-las passivamente. A pele funcionaria como essa fronteira” que as mantém juntas e separadas. Antes de a projeção e a identificação serem possíveis, Bick argumenta que a criança deve ser tornar capaz de “manter juntas todas as suas partes sob sua própria ‘pele’, na ausência de um objeto externo que possa segurar, sem vazar ou quebrar em pedacinhos”. Conforme a criança se desenvolve, a contenção exponencialmente começa a expressar a coesão do self, como cultivada pela interação contínua com o cuidador: “se o cuidador é significativamente presente, então a mente da criança provavelmente será experenciada de uma maneira integrada — com fronteiras e mantendo as coisas juntas. Por outro lado, se o cuidador é significativamente ausente, a mente da criança provavelmente será experenciada de uma maneira desintegrada — como se estivesse quebrada ou caindo aos pedaços”. Por meio da ênfase em formas particulares de interação — que envolvem especificamente o toque pele a pele — é dado à criança o receptáculo necessário para uma autossuficiência interativa do self. Com a pele fechada através de um senso de autocontenção, a criança enfrentará o risco da desterritorialização causada por um vazamento, uma desterritorialização que, sob uma análise verdadeiramente psicanalítica, traria uma miríade de sintomas associados à necessidade de criar “segundas peles”.
Mas e se a pele não for esse repositório contentor? E se ela não for esse limite capaz de determinar onde o self começa e onde termina? E se ela fosse uma superfície porosa e topológica repleta de miríades de estratos potenciais que campificam a relação entre diferentes meios, cada um deles dotado de uma multiplicidade de dentros e foras? Seguindo a teoria psicanalítica da maneira abordada por Bick, a pele como dispositivo de contenção reforça as sensações de sentir-se vivo e existente. Por outro lado, a falta de contenção alimenta um estado de incoerência associado à ansiedade e à aniquilação. Sem a autocontenção, “o bebê tem medo de se dissolver, e, em um estágio final, vazar para um espaço sem qualquer tipo de limite”. Postular a pele como dispositivo de contenção como ponto de partida para a noção de autossuficiência é começar com a ideia de que o ser humano bem-contido é aquele capaz de ativamente (e de forma protetora) fazer parte das interações self-self. Tais interações dependem de uma fronteira rígida entre o dentro e o fora. Elas ocorrem em um domínio de eus claramente limitados, incluindo o limite claro dos objetos. A interação é aqui entendida como o encontro de duas entidades autocontidas (humano para humano ou humano para objeto).
E se, ao invés de posicionarmos a interação self-self no centro do desenvolvimento, postulássemos a relação como a chave da experiência? A relação, entendida no sentido jamesiano, é tornar aparente um terceiro espaço aberto pela experiência no fazer. O terceiro espaço (ou o intervalo) é ativo com as tendências de interação, mas não se limita a elas. A relação dobra a experiência, de maneira que aquilo que emerge é mais do que a soma de suas partes.
Finalmente, e se nem a pele nem o self fossem o ponto de partida para a matriz complexa e inter-relacional do ato de ser e construir mundos? Ser e mundificar dependem da atividade de visar-alcance. O ato de visar-alcance coloca em primeiro plano a relacionalidade inerente à experiência, uma maneira de sentir-com o mundo. Essa tendência-para é um sentir-com que não acontece estritamente em um nível sensório-motor, mas atravessa vários estratos, tanto atuais quanto virtuais. Um olhar que devém toque, um tocar que devém audição, mas não na pele ou no corpo, e sim através dos estratos, tanto concretos quanto abstratos, que constituem um agenciamento. Esse agenciamento é um corpo sensorial em movimento, um corpo-mundo sempre tendendo, atentando ao mundo.
Da mesma maneira, o mundo também tende em direção ao devir-corpo. Um corpo-mundificação é muito mais do que uma contenção, muito mais do que um envelope. É um sentir-agenciamento complexo ativado entre diferentes meios co-constitutivos. É individuação antes de ser self, um campificar de diferentes meios que se dobram uns nos outros e uns através dos outros, pois o meio associado nunca está “entre” os eus constituídos: ele é o campo ressonante da individuação, ativo sempre em compasso com os devires que engendra. O devir-self é um dos modos pelos quais essa dobra (corpo-mundificação) se expressa, mas nunca em direção a uma totalização do self — sempre em direção à individuação contínua. Pensar a individuação exige considerar os seres não como substâncias, matéria e forma, mas como sistema tenso e supersaturado para além do nível da unidade”. O self é uma modalidade — uma singularidade em um plano de individuação — sempre a caminho de novas dobras. Essas dobras tornam visíveis não um humano plenamente constituído, mas estratos co-constitutivos de matéria, conteúdo, forma, substância e expressão. O self não é autocontido. Ele é uma dobra de expressividade imanente.
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