Prefácio à primeira edição, 1952 — Clóvis Caldeira
(*Texto completo)
A atenção dispensada pelo Autor, de longa data, aos problemas da vida rural brasileira levou-o a deter-se frequentes vezes nalguns aspectos à margem do regime de trabalho no campo. E sempre lhe pareceu, à vista dessa realidade social contundente, que se alguma coisa verdadeiramente positiva ainda existe, como prática, entre as populações rurais, é decerto o costume da ajuda mútua.
Pouco a pouco, sem objetivo determinado, foi recolhendo indicações direta ou indiretamente relacionadas com o assunto, até que, numa fase posterior, concebeu o plano de estudar a importância que teriam na atualidade os velhos hábitos de cooperação vicinal.
Logo, porém, evidenciou-se a pobreza de nossa literatura neste domínio, fato que recentemente inspirou a um escritor o reparo pessimista de não existir entre nós “nenhum trabalho sério de interpretação de nossas formas de apoio mútuo”, em contraste com “centenas de livros já escritos sobre o banditismo ou formas primárias de heroísmo resultantes de choques armados, explicados ou interpretados de mil maneiras, variando do ingênuo ao superficial”. Na realidade, com exceção de dois ou três estudos em que já se prefigura a tentativa de interpretar os traços essenciais da instituição e de indicar a incidência de práticas solidaristas nalgumas zonas, a bibliografia recolhida caracteriza-se, em geral, por ser extremamente fragmentária. Contudo, muitas informações nela incluídas foram de grande valia para localização regional de formas de atividade cooperativista.
Sem prejuízo das pesquisas bibliográficas, que prosseguiram meses a fio, estendendo-se até mesmo à literatura estrangeira, a fim de estudar-se os possíveis pontos de contato com o costume existente no Brasil, procedeu-se a um inquérito de âmbito nacional, em caráter particular, através da rede de Agências-Modelo de Estatística do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, remetendo-se a cada uma das 115 repartições distribuídas pelas diversas unidades políticas um questionário relativo a essas práticas. Como amostragem geográfica, o processo se recomendava, pois a cada Agência corresponde uma circunscrição formada por um grupo de municípios.
O receio de que um longo questionário pudesse comprometer o seu atendimento por funcionários que vivem normalmente assoberbados de serviços ditou a orientação de se formularem apenas indagações sobre o nome ou nomes que recebe a ajuda mútua nos municípios supervisionados pelas Agências e as finalidades com que é usada. Solicitava-se, todavia, sempre que isso fosse possível, ligeira descrição das reuniões de trabalho, dos cantos que em alguns casos acompanham a faina coletiva e das festas a que de ordinário dá lugar o acontecimento.
Verificou-se posteriormente que o momento escolhido para o lançamento do inquérito não fora dos mais felizes, porquanto os Agentes, àquela altura (dezembro de 1953), se achavam empenhados na conclusão de uma das campanhas estatísticas realizadas com regularidade pelo referido Instituto.
O exame do material recebido, procedente de cerca de setenta por cento das Agências, revelou falhas de certo vulto em parte apreciável da documentação, impondo-se assim completar várias informações com elementos de outras fontes, até mesmo pela troca de ideias com pessoas conhecedoras dos usos e costumes da gente rural.
Ao entregar à publicidade este volume, onde há bastantes claros a preencher, espera o Autor incrementar o interesse pelo estudo mais amplo e aprofundado das práticas solidaristas, à luz das condições econômicas e sociais vigentes no meio rural, tarefa que, longe de ser ociosa, terá o mérito de revelar a extensão do fenômeno, fornecendo, ao mesmo passo, valioso subsídio à melhor compreensão da psicologia do Homo rústicos brasileiro.
No entanto, os elementos aqui reunidos já permitem antecipar-se a conclusão fundamental de que existe, na sociedade rural brasileira, uma rica reserva de hábitos, sentimentos e disposições que, convenientemente orientados, podem desempenhar papel relevante na melhoria da condição de importantes grupos humanos, no concernente a problemas de educação, saúde, bem-estar e tantos outros. Aquela curiosa experiência de aplicação de energias humanas a trabalhos de interesse público, realizada, por iniciativa do antigo prefeito Cícero Galindo Tôrres, no município mineiro de Senador Firmino, dá a medida do tremendo potencial de forças que, bem dirigidas, serão decisivas para o solucionamento de um sem-número de dificuldades que amesquinham a existência de nossas populações, sobretudo nas áreas rurais ou semirrurais.
Somos dos que julgam possível a mobilização do espírito solidarista de ponderáveis contingentes populacionais do Brasil para grandes obras, tanto no atual momento como no futuro. A ideia, aliás, não constitui novidade. Sessenta e um anos antes da Lei Rio Branco, que declarou “livres” os nascidos de escravos no País, Veloso de Oliveira preconizava o trabalho solidário já ensaiado no que chamava “muxiron”.
Deseja o Autor, por último, tornar públicos seus agradecimentos a todos os que cooperaram neste trabalho, especialmente aos chefes das Agências-Modelo de Estatística que atenderam ao seu apelo e, por igual, a Waldemar Lopes, Valdemar Cavalcanti, Edison Carneiro, L. A. Costa Pinto e esse boníssimo Manuel Diégues Júnior, a quem deve toda a sorte de indicações úteis e a possibilidade de consultar várias fontes, nacionais e estrangeiras.
As referências bibliográficas e as notas destinadas ao melhor esclarecimento de certas passagens do texto ou à sua complementação foram dispostas ao pé das páginas, convencionando-se o emprego da sigla AME (Agência-Modelo de Estatística) sempre que se tratar de informação originária dessa fonte.
Rio de Janeiro, Distrito Federal