(passagem do ensaio: Apenas me prometa uma batalha, por sua alma e pela minha / Sobre o estatuto racial da ontologia)
Em outro dos poemas de Sun Ra, encontramos o seguinte: “Melhor destino eu decreto / Esses e outros contos contados / Mitos não são meus / Outros mitos de mitologias negras / Emanam do além das / fronteiras mensuradas do tempo”.[1] No filme, o resto de sua fala é: “Não sou real, sou assim como vocês. Vocês não existem nessa sociedade. Se existissem, não estariam buscando igualdade de direitos. Vocês não são reais; se fossem, teriam algum status diante das nações do mundo. Somos, portanto, todos mitos. Não vim até vocês como realidade, vim como mito – porque é isso que as pessoas negras são: mitos. Venho de um sonho sonhado pelo negro muito tempo atrás”. O caráter relacional da existência – que é sempre existência social – está ali, mas outra coisa é afirmada, algo que remete ao poema: há outras mitologias, outros sonhos. Por que um mito nascido de um sonho ancestral – sonho negro – diria “não sou real” e “eu não existo”? Ainda neste mundo/planeta, o que mais há para se dizer? “O negro não existe. Não mais do que o branco”, diz Fanon. O que mais ele diz não existir? Vejamos: “missão negra”, “questão negra”, “o malgaxe”, “sociedade bantu”; “fardo branco”, “um mundo branco”, “uma ética branca”, “uma inteligência branca”.[2]
São todos nomes essencialistas – “a experiência negra é ambígua, pois não existe um negro, mas sim negros”; algo ocorre aqui: a existência mais uma vez predecendo a essência.[3] Toda vez que se busca capturar alguém/um povo por meio de um nome desses, ele passa a inexistir: tanto porque o nome tem como referente uma essência inventada, como porque seu uso é garantido por uma violência que constrange a existência do nomeado. Mesmo no caso do que é branco? Apesar do devir-branco ser a participação na autoexpansão da mobilidade e no constrangimento do outro, nos termos fanonianos, isso ainda é um constranger-se a ser sempre a mesma coisa, um branco: não poder não-ser isso, não poder se abrir a outras possibilidades existenciais.
Assumindo-se mito branco e sonho negro ao mesmo tempo, Sun Ra não sai do plano imaginal, seu nome é o de uma imagem: o problema não é resolvido buscando uma essência tida como dado natural. Se o campo de forças adversárias que somos é espaço de múltiplas possibilidades do eu, há sempre uma ficção dissidente, contraficção a ser levada adiante. Além das fronteiras mensuradas do tempo, a partir de uma ancestralidade futurística e, portanto, paradoxal, não há essência a ser reencontrada – há outro planeta, apenas isso. Não iremos finalmente descobrir o real por trás das aparências, por trás da imagem, da máscara. Outro planeta = outras relações entre real e imaginário, realidade e ficção, realidade e mito; outros arranjos, outros emaranhados, outras zonas de indistinção, outras impossibilidades. Outros paradoxos, talvez.
O nada também é ficção que “Wilderson” decide habitar de maneira especular: rosto limpo, a face do pesadelo do outro. O nada, sabemos, não é o produto do processo de racialização, mas sua condição – corrosividade que abre o espaço para o ser-racializado. Por que o branco não deixou o vazio esvaziado? Se o ser-racializado é constituído como objeto fobígeno, e se a fobia, como diria Lacan, “intervém como um elemento de sentinela avançada, e contra alguma coisa inteiramente diversa, que é, por natureza, sem objeto, a saber, a angústia”, retornamos a Warren: se, para Heidegger, a angústia é a presença do nada, a experiência “deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se”,[4] então a violência contra pessoas negras, Warren diz, surge na recusa da angústia e na imposição do terror às pessoas racializadas como negras – terror que produz o próprio ser-negro.[5]
Não, não quero esse senso de exclusividade. Na imposição do terror às pessoas racializadas como um todo.
Ainda sobre a angústia heideggeriana, é preciso lembrar que ela consiste na experiência de uma “estranheza que é ao mesmo tempo um não sentir-se em casa” – oportunidade para acolher esse desenraizamento, esse desterramento involuntário e encontrar uma forma de transcender o que se é e tem sido.[6] Como quando se “descobre” outra terra e as pessoas que a habitam, que habitam uma realidade em que boa parte do que é mais caro ao europeu moderno faz sentido. Diria que essa oportunidade diante de uma diferença que não é de natureza é a oportunidade de uma ontologia crítica do que se é: mais uma vez, “uma vida filosófica na qual a crítica do que somos é, ao mesmo tempo, a análise histórica dos limites impostos a nós e um teste de seu possível atravessamento”. No encontro com esse outro – esse estranho, estrangeiro –, um europeu perde a oportunidade; entra em modo de autodefesa, imagina um perigo, lança a si mesmo em sua direção, em direção ao que-será-racializado. No processo, torna-se ele o verdadeiro perigo, torna-se outra ficção: ser-branco. Agora, deve viver assim, dedicado a proteger sua “metáfora mais retumbante”: o Humano. Warren está certo ao dizer que tudo começa no problema com o nada e com a angústia diante dele. É assim que outras possibilidades cosmológicas e outros sentidos de globalidade foram e ainda estão interditadas no interior deste mundo.
— Victor Galdino
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NOTAS
[1] Sun RA, The immeasurable equation: the collected poetry and prose compiled and edited by James L. Wolf and Hartmut Geerken (Wartaweil, Waitawhile, 2005). p. 79.
[2] Fanon, Pele negra, p. 240, 44, 109, 197, 240, 240.
[3] Fanon, Pele negra, p. 149.
[4] Martin HEIDEGGER, Conferências e escritos filosóficos, trad. Ernildo Stein (São Paulo, Nova Cultura, 1991), p. 39.
[5] Warren, Ontological terror, p. 9.
[6] Marco Aurélio WERLE, “A angústia, o nada e a morte em Heidegger”, Trans/form/ação, v. 1 (26), 2003.