TEXTO NÃO É CONTEXTO: resposta a “Falta de contexto confunde 36ª Bienal de São Paulo", de Fabio Cypriano — Bruna de Jesus
- GLAC edições
- 25 de set.
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De resto, o que pode significar hoje em dia a injunção para “orientar-se no mundo e no pensamento”? E, ademais, em qual pensamento, em qual língua, a partir de quais arquivos e visando exatamente o quê?
— Achille Mbembe, Brutalismo
1 . Ocorre que, em arte contemporânea, o contexto é essencial *
A premissa é verdadeira e como pessoa que trabalha em educativos de exposições de arte há mais de dez anos, além de filósofa, seria uma falácia negar: o contexto é uma chave de acesso, de aproximação, seja em relação à um evento histórico, à uma manifestação cultural, à um determinado pensamento. Ao visitar uma exposição, os textos de parede e as legendas contêm informações que apresentam e contribuem para o “entendimento” da produção de um objeto artístico, por exemplo. Porém, para a compreensão do contexto da obra, para um olhar aprofundado, sugiro uma relação de mediação com a contemporaneidade que não compreende como meio exclusivo a grafia textual.
O acesso ao contexto de algo não depende necessariamente da codificação gráfica da palavra, de uma informação textual. Sobretudo, quando o contexto a ser analisado está contido na contemporaneidade, devido a coetaneidade das artes contemporâneas, existe um campo sensível de afecção qual somos tocados.
Nesse processo, de compreensão sensível, a palavra não é o único meio de mediação e de entendimento do sujeito histórico com o mundo. Gostaria de retomar outros meios, experiências, linguagens, que prescindem ao texto, como, por exemplo, a leitura de uma imagem, de um gesto, de uma expressão corpórea ou mesmo a escuta de uma sonoridade qualquer, o ruído de um determinado espaço, o som de um instrumento.
Valentin Y. Mudimbe, filósofo, ensaísta e romancista quinxassa-congolês, ao pensar sobre a geografia de um discurso, no caso a narrativa romântica e mítica que fundamenta um certo tipo de literatura colonial sobre a África, alerta sobre o domínio de determinadas linguagens, qual cabe toda a reflexão, pois trata-se igualmente da compreensão contextual e metodológica:
O domínio de uma linguagem [langage] universal ou megarracionalidade foi substituído pelo critério da autoridade experiencial “inventando-se” como tradução e exegese de linguagens [langues] institucionais e bem delineadas fundamentadas por performances [paroles] concretas. (MUDIMBE, 2019, p. 328).
A linguagem reclama, exige, da experiência do sujeito com o mundo, a sociedade e não o contrário. Paulo Freire, em A importância do ato de ler, uma conferência apresentada em 1981, provoca:
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores - das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolegar. (FREIRE, 1989, p. 10).
Podemos compreender o que são as cores, as pinceladas, as notas, os acordes de Tanka Fonka nas coluna centrais do pavilhão da 36a Bienal. Outro trabalho que perpassa os três andares, de Ana Raylander Mártis dos Anjos, é o conjunto de colunas envolvidas em tecidos de cor marrom, a trama, o movimento sugerido da instalação, a fricção têxtil, a sustentação de um lar, os objetos do seu bisavô dentro de uma instituição de arte, co-habitando a arquitetura de Oscar Niemeyer. Com Paulo Freire, antes de propriamente a criança ou o adulto iniciar o processo de alfabetização, ler o mundo em que estamos inseridos é essencial para a compreensão do contexto.
Logo, o problema não é a disposição da comunicação, dos textos informativos da exposição, é a falta de leitura, de disposição de um seleto público que frequenta a Bienal de São Paulo e demais eventos e mostras do meio da arte contemporânea, às questões, aos saberes, aos ecossistemas, às produções, às linguagens, às grafias presentes na exposição.
As narrativas estéticas apresentadas na exposição problematizam, friccionam, o discurso iluminista de Humanidade. O
discurso iluminista (entendido aqui de modo geral como o discurso em que a razão é a determinação universal do que é o bem com vistas a um progresso moral e político qualitativo nos termos de Cassirer) sedimenta uma compreensão unilateral da razão, calcada na tese de que é possível transpor a objetividade do discurso científico para o discurso moral e político. (ANDRADE, 2017, p.292)
Enquanto na verdade, o discurso científico iluminista outorgou concepções unilaterais e racistas, ao desconsiderar as populações geograficamente fora do território europeu como produtoras da experiência histórica. Para filósofos como Locke e Hobbes os povos que não compõem a unidade européia não eram considerados partícipes do conceito de humanidade, pois segundo as suas crenças, não partilhavam do mesmo desenvolvimento científico e racional para narrar a experiência do sujeito com o mundo, à estes cabiam os signos da selvageria. Por isso a necessidade de, em resumo, elaborar “uma crítica ao uso que o discurso iluminista faz da razão no intuito de mostrar como ele pode financiar o racismo e a própria servidão.” (ANDRADE, 2017, p. 294)
2 . Descontextualizar e desistoricizar é praticamente um ato colonialista *
A disposição das legendas e dos textos de parede estão colocadas de um modo que pode desafiar o público à navegar no espaço expositivo. Porém, as informações não foram negadas e dispositivos semelhantes circulam em inúmeras instituições. Além do catálogo, um conjunto de publicações podem ser acessadas gratuitamente na internet, os quatro volumes da publicação educativa foram elaborados em conjunto das Invocações, eventos prévios que anunciam, aproximam e dão a ver o escopo de trabalho às concepções curatoriais de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, junto de lya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza, a cocuradora at large Keyna Eleison, a consultora de comunicação e estratégia Henriette Gallus.
O Brasil é um país de herança colonial e as suas consequências são perceptíveis, por exemplo, nas críticas em que a modificação da proposta de comunicação da exposição é assimilada como falta de contextualização e de história. A falta de tato quanto ao contexto da exposição, como afirmado por parte do público, deriva do abismo existente quando discutimos sobre o colonialismo no país, como ele se manifesta na constituição de linguagens, no conceito de raça, na categorização de gênero, na exploração dos recursos humanos e naturais. Ou ainda, quando somos reféns dos estudos coloniais para de fato e materialmente nos aproximar das produções de narrativas dos povos colonizados.
O que acontece quando o texto escrito torna-se mais importante do que a relação da pessoa com o objeto artístico? O que acontece quando o processo de leitura do mundo é interrompido pela necessidade de mediação de um texto ou outros dispositivos mediadores, como por exemplo as inteligências artificiais? Não é necessário responder às questões, este é apenas um convite à reflexão. O problema não cabe somente ao campo das artes, mas talvez este seja justamente o campo de interesse, já que trata-se da apreensão do sensível, de uma operação que tange a estética.
Ngũgĩ wa Thiong'o, em Descolonizando a mente, publicado pela primeira vez em 1986, oferece dentro dos estudos da linguagem e da literatura africana uma política de enfrentamento à colonização na ordem da cultura, marcada sobretudo pela imposição do idioma do colonizador às culturas tradicionalmente orais. O autor compartilha as suas experiências e estratégias com a linguagem que mantiveram as características da narrativa oral, seja na escrita de um romance, seja na direção de uma peça teatral.
Já Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, em Pidginização como método curatorial, concebe um modo de curadoria a partir do pidgin, de uma linguagem, e também uma língua, que surge do enfrentamento da imposição linguística do colonizador, do multilinguismo dos povos africanos e da necessidade de comunicação, independente do povo de origem. Portanto, segundo as suas palavras:
Como uma forma de estar no mundo, a pidginização apresenta uma filosofia, uma prática que constantemente se engaja com e provoca o prefixo “sub-”, e não tem nenhum problema em se sentir confortável nesse espaço subterrâneo, subcultural e, em última instância, subversivo. “Sub-” não significa estar abaixo de algo, nem ser inferior, mas sim uma forma de enfraquecer as estruturas de poder, as hegemonias linguísticas, os sistemas autoritários, as hierarquias institucionais, as estruturas patriarcais e heteronormativas. (NDIKUNG, 2025, p.44).
E, continuando sua proposição crítica, relativa ao mote de seu pensamento, Bonaventure elabora essa prática submergida como método curatorial: “A pidginização como um método curatorial propõem uma prática de curadoria como espaço de encontros, resistências e pluralidades” (2025, p. 86). Logo, aprecia-se o texto e o estudo do contexto, porém comunicação gráfica e textual alguma impera.
3. Mas a falta de contexto nesta Bienal ainda precisa ser melhor investigada *
Entre no espaço, como foi o deslocamento?
Qual a temperatura do ambiente?
Qual a paisagem do caminho?
Como você se sentiu no percurso, ao adentrar no espaço?
Qual o valor do ingresso?
Você está em um museu, uma galeria, qual tipo de instituição?
Agora, escolha primeiro dois ou três objetos artísticos.
Qual o título da exposição, o nome do artista?
Existem relações entre as escolhas?
Quais materiais são perceptíveis, quais as linguagens?
O que te lembra, como te toca, algo te provoca?
Olhe ao redor,
Comece tudo de novo,
Não precisa ser nessa ordem,
Permita-se fluir no espaço,
Se possível voltar mais vezes.
Acrescente novas perguntas.
Reflita sobre algo que te atraiu ao longo da semana,
Converse com alguma pessoa sobre,
Busque por mais informações.
A imagem, a narrativa, a ideia de humanidade provocada pela curadoria não é una, não é centrada epistemicamente em um continente, não é sistematizada ou hierarquizada como podemos observar na arquitetura — sem levantar desnecessariamente paredes brancas que acabam por compartimentar e desviar a interação do conjunto. O concreto é destacado da arquitetura do pavilhão, porém os afluentes sugerem percursos, encontros de ecossistemas e biomas que mantêm relações de sobrevida. Compartilham um espaço em que a liberdade, o deslocamento e a interação provocam a concepção de uma biosfera que desafia o antropoceno.
Para Mbembe, o devir-humano pode ser analisado, por exemplo, na reserva da potência contida no continente africano, do paradoxo de vida e de sobrevida produzida no berço da humanidade. Por isso, mesmo quando os trabalhos dos artistas são constituídos de materiais descartados, como por exemplo a escultura de Hamedine Kane e seu colaborador Boris Raux, “Les Ressources: Acte-#2”, observamos a assemblagem de madeiras, objetos marítimos e livros que dialogam sobre a expereriencia diaspórica do negro no mundo. A emergência de um sistema não codificado diante de uma primeira aproximação, mas que ganha corpo e vida quando performance. Ou seja, a narrativa sobre a África e o devir-negro não é passiva, alienada ou esvaziada de sentido e de contemporaneidade. E, portanto, pode vir a provocar uma leitura estranha para as pessoas que compartilham de um inconsciente social racista sobre qualquer produção que tem por matriz o continente africano.
Nem tudo precisa estar escrito, nem tudo necessita precisamente ser enunciado, a intelecção e a compreensão podem acontecer de muitos modos, o estranhamento é parte do processo. Porém, é sempre bem quista a disposição das pessoas para serem afetadas, estarem atentas ao contexto que compartilham: ler o mundo, como Paulo Freire nos lembra.
— Bruna de Jesus
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* Os nomes dos três intertítulos de "Texto Não é Contexto", foram apropriados do texto "Falta de Contexto Confunde 36 Bienal de Arte de São Paulo", de Fabio Cypriano. Para ler o texto de Cypriano, acesse: https://artebrasileiros.com.br/arte/bienais/falta-de-contexto-confunde-36a-bienal-de-sao-paulo/
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Referências Bibliográficas
ANDRADE, Érico. A opacidade do Iluminismo: o racismo na Filosofia Moderna. In: kriterion, Belo Horizonte, nº 137, ago./2017, p. 291-309.
MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: n-1 edições, 2021.
MUDIMBE, Valentin Y. A invenção de África: gnose, filosofia e ordem do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2019.
NDIKUNG, Bonaventure S. B. Pidginização como método curatorial: brincando com linguagens e modos de fazer curadoria. São Paulo: GLAC edições, 2025.
THIONG’O, Ngũgĩ wa. Descolonizando a mente: a política linguística na literatura africana. Porto Alegre: Dublinense, 2025.
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Bruna de Jesus é filósofa, educadora e pesquisadora. Mestre em Filosofia pela UFRJ, pesquisa filosofias africanas e afro-brasileiras, sobretudo as implicações do conceito de biblioteca colonial de Valentin Mudimbe. Trabalha na área de educação e mediação em exposições de arte desde 2014, com passagens no MIS, unidades do SESC SP e em edições da Bienal de São Paulo.
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IMAGENS DA NOITE — Victor Galdino
No filme Space is the place, o músico-poeta Sun Ra se encontra com um grupo de jovens que, diante de suas estranhas e surreais vestes, de sua aparência outromundana, perguntam se ele é real, se é mesmo quem diz ser e como é possível verificar essa realidade. Ele diz: “Vocês querem saber como posso ser real? Não sou, sou assim como vocês [...] Não vim até vocês como realidade, vim como mito — porque é isso que as pessoas negras são: mitos”. Sua resposta é o ponto de partida — e, após longas voltas, uma série de experimentos e deslocamentos, também é ponto de chegada — deste livro.
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