4 . Aeróbica do Senhor
(* abaixo se encontra apenas os primeiros parágrafos do Capítulo 4 do livro)
“Padre Marcelo me deixa toda arrepiada”, disse a mulher que caminhava para a saída do santuário acompanhada de duas outras pessoas que a ajudavam. “Dessa vez eu mergulhei bem fundo”, acrescentou enquanto se sentava exausta no chão de cimento, apoiando-se no portão central. Era um dia bem quente de meados de novembro em São Paulo. A temperatura no interior do Santuário do Terço Bizantino devia estar em torno de 25 graus, mesmo com o novo sistema de resfriamento que espirrava água no público de fiéis durante o serviço dinâmico de adoração oferecido pelo Padre Marcelo Rossi, que ele mesmo chamava de “Aeróbica do Senhor”. Também conhecida como “Missa da libertação”, essa aeróbica consistia na combinação entre uma série de canções para serem cantadas junto com o padre e exercícios coreografados, todos eles baseados em técnicas bizantinas de oração, como a Oração do Coração, usada pela primeira vez pelos Pais do Deserto no egípcio, no século quarto, parte da tradição do hesicasmo, cultivada durante dez séculos por monges gregos. Essa oração, valorizada por seus efeitos psicossomáticos, envolve uma série de atividades vocais e físicas. A ideia é fazer com que a voz pontue e seja pontuada pelas repetições rítmicas do corpo, como a respiração e os batimentos cardíacos, de modo que se torne extensão dessa respiração na forma de um som móvel. Ao alcançar a sincronia da voz, da respiração e dos batimentos, o sujeito é transportado gradualmente pelos diferentes estágios da ascensão mística.
Fazendo uso dessas técnicas ritualísticas ancestrais, Padre Marcelo elaborou um estilo de oração focado no comprometimento físico, na transformação corpórea, na experiência vivida do poder divino. Essa aeróbica, eletronicamente disseminada por meio de diferentes formatos de mídia, tornou-o famoso no país inteiro. Nela, importa a forma como a oração vocalizada, a aeróbica e a tecnologia compartilham entre si o signo da repetição. Atos simples como cantar, falar e mesmo escutar afetam o corpo de maneira aural, e a voz desempenha um papel fundamental no esquema aeróbico. Ao abordar esse regime neste capítulo, meu objetivo é mostrar as operações respiratórias presentes na costura de múltiplas relações e associações que ar-condicionam todo o campo da experiência religiosa. Analisar a estética dessa prática de oração midiatizada me permite rever a maneira como se tem entendido a relação entre mídia e religião, para que eu possa focar, então, no modo como as tecnologias de mídia contemporânea produzem as formas da experiência corpórea e da tatilidade que, há um bom tempo, têm sido mobilizadas para caracterizar e explicar a experiência religiosa.
Nos capítulos anteriores, dedicados à comunidade religiosa Canção Nova, investiguei como, nas três últimas décadas, o movimento carismático vem se relacionando com as tecnologias de mídia de massa. Em um país como o Brasil, em que a opinião pública progressista — incluindo a que encontramos no interior do catolicismo — associa esse tipo de mídia e o pentecostalismo a diferentes formas de alienação, o movimento carismático teve de refazer os termos de uso dessa mídia para fins de evangelização. Como descrito anteriormente, uma das vitórias da Canção Nova na superação desses preconceitos entranhados deu-se pelo afastamento da concepção meramente instrumental de mídia. O movimento pode, assim, articular uma forma de medialidade sem escatologia, numa economia providencial que, como demonstrado, busca sempre o meio.
Deve estar claro agora que “meio” não significa o mero intervalo entre dois pontos. O que há de peculiar na forma como os carismáticos concebem o meio é precisamente a aniquilação deliberada da ideia de um “entre-lugar”. Por quê? Porque dizer que algo está nesse “entre-lugar” já é aderir a uma lógica posicional. Já é dizer que a ação é orientada a um fim. O que atrai as pessoas à Missa do Padre Marcelo é a intensidade do movimento, seja ele corpóreo ou espiritual. É o tanto que cada canção, cada oração, cada gesto potencializa a subjetividade para que a presentificação se torne a travessia para um outro-lugar. Essa sensação de transiência, como se o indivíduo estivesse em fuga de si mesmo, é efetivado de maneira intensa no arrebatamento da pele. Esta deixa de ser um órgão que separa o interior do exterior do corpo e, como veremos, torna-se um ambiente passível de regulação.
É preciso enfatizar que a distinção entre as partes I e II deste livro é a mudança de foco da comunidade para o indivíduo. No caso da Canção Nova, a gramática da comunidade serve para reencenar o Ato dos Apóstolos num empreendimento midiático global e de massa, enquanto Rossi está mais para um lobo solitário de vigor inesgotável: jovem carismático, especialista em mídia, usuário confesso de esteroides, muito bem-sucedido na expansão da renovação carismática para as multidões. No Padre Marcelo, as preocupações pneumáticas do movimento carismático encontram sua expressão mais concentrada e disseminada. Respondendo ao que ele interpreta como chamado para se tornar um “treinador de almas” — extensão da capacidade atlética que o Papa João Paulo II havia exibido em sua visita ao Brasil no ano de 1997 —, Rossi se tornou o mais proeminente ginasiarca que a renovação carismática teve até o momento. Com sua aeróbica espiritual toda coreografada, declarou guerra à obesidade metafísica; suas técnicas de oração são mandamentos direcionados aos músculos e às juntas; seu site é uma espécie de spa virtual com exercícios variados de cura e oração, vários links para conteúdos médicos e de autoajuda.
Ser mais um agente solo do que parte da comunidade garantiu ao Padre Marcelo uma flexibilidade ainda maior. Ainda assim, ele não trabalha e nem poderia trabalhar sozinho, dado que a norma institucional não comporta o nível de flexibilização que ele tende a liberar no mundo. Apesar de ter sido apenas um noviço em 1995, a Igreja já o tinha notado e a sua imensa energia, que a instituição resolveu mobilizar para certos fins. Não poderia haver época melhor para toda essa agilidade, toda essa leveza e, por isso mesmo, a Igreja estava empenhada em ativamente monitorar e colocar rédeas no jovem pastor, designando um bispo para supervisionar cada passo que dava. A comunidade Canção Nova — da qual ele foi parte um dia — até tenta reencenar corporalmente os doze apóstolos, um entrelaçamento sofisticado que reúne o arcaico e o presente, mas Padre Marcelo Rossi é isso e mais: é o apóstolo Paulo cheio de anabolizantes. Ele é mais do que a soma das partes apostólicas, é a encarnação mais próxima do que, no revivalismo carismático, é tido como a terceira pessoa.
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