Faz cerca de uma semana que o nosso amigo João Gomes — tradutor de um de nossos títulos, Adeus ao capitalismo: autonomia, sociedade do bem viver e multiplicidade dos mundos, de Jérôme Baschet, coeditado com nossa parceria Autonomia Literária —, nos ofereceu sua tradução do presente texto, ainda inédito em português e publicado na plataforma Quodlibet. E com prazer o publicamos para nossos e para os futuros leitores. Sempre que possível, leia com o corpo!
Legenda: fotografia de Edouard Fraipont do trabalho Manifestação (vermelho), do artista Fabio Morais, de 2016.
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É um constitucionalista alemão do fim do século XIX, Max von Seydel, que colocou a questão que parece hoje incontornável: “O que resta do reino se suprimimos o governo?” De fato, é chagado o tempo de se perguntar se a fratura da máquina política ocidental não atingiu um limiar para além do qual ele não pode mais funcionar. Desde o século XX, o fascismo e o nazismo tinham já respondido a esta questão da sua maneira pela instauração do que chamamos a justo título um “Estado dual”, no qual o Estado legítimo, fundado sobre a lei e a constituição, está flanqueado por um Estado discricionário que é apenas parcialmente formalizado e no qual a unidade da máquina política é, pois, somente aparente. O Estado administrativo no qual as democracias parlamentares europeias deslizaram mais ou menos conscientemente é nesse sentido só um descendente do modelo nazifascista, no qual os órgãos discricionários fora dos poderes constitucionais estão situados ao lado daqueles do Estado parlamentar, progressivamente esvaziado das suas funções. E é certamente singular que uma separação do reino e do governo tenha se manifestado hoje até mesmo no mais alto nível da Igreja romana, onde o pontífice encontrando-se na incapacidade de governar, espontaneamente depôs a cura et administrativo generalis, conservando mesmo assim sua dignitas.
A demonstração mais extrema da fratura da máquina política é, entretanto, a emergência do estado de exceção como paradigma normal de governo, que, depois de ter sido implementado ao longo de décadas, atingiu sua forma última nos anos do que nós chamamos de pandemia. O que, na perspectiva que nos interessa aqui, define o estado de exceção, é a ruptura entra constituição e governo, legitimidade e legalidade – e, ao mesmo tempo, a criação de uma zona de anomia na qual o governo pretende, no entanto, agir normalmente. Suspendendo a ordem jurídica, o estado de exceção pretende, com efeito, se manter ainda em relação com ela, estar, por assim dizer, juridicamente fora da lei. De um ponto de vista técnico, o estado de exceção inventa na verdade um “estado de direito” no qual por um lado o direito prevalece teoricamente, mas não tem força, e por outro as medidas e disposições que não tem força de lei adquirem a força de lei. Poder-se-ia dizer que no limite, o que está em jogo no estado de exceção, é uma força de lei flutuante sem lei, uma legitimidade ilegítima acompanhada de uma legalidade ilegal, na qual a distinção entre a regra e a decisão perde seu sentido.
É essencial compreender a relação necessária que une o estado de exceção e a máquina política. Se o soberano é aquele que decide sobre a exceção, o estado de exceção sempre foi o centro secreto da máquina bipolar. Entre o reino e o governo, entra a legitimidade e a legalidade, entre constituição e administração, não pode haver articulação substancial. Na medida em que ela marca o ponto de sua coincidência, a charneira que as liga não pode pertencer nem a um nem ao outro polo e não pode ser nela mesma nem legítima nem legal. Desse modo, ela só pode ser objeto de uma decisão soberana, que os articula pontualmente através da sua suspensão.
Legenda: fotografia de Edouard Fraipont do trabalho Manifestação (preto), do artista Fabio Morais, de 2016.
Mas, por essa razão mesma, o estado de exceção é necessariamente temporário. Uma decisão soberana tomada de uma vez por todas não é mais uma, da mesma forma que uma articulação permanente entre os dois polos da máquina acabaria por comprometer seu funcionamento. O estado de exceção normal torna-se indecidível e abole o soberano, que apenas pode se definir pela decisão. Não é certamente um acaso se o nazismo e o Estado administrativo contemporâneo adotaram resolutamente o estado de exceção como paradigma normal e não temporário do seu governo. Qualquer que seja a definição que se dê a esta situação, a máquina política renunciou a funcionar e os dois polos – o reino e o governo – se refletem um no outro sem nenhuma articulação.
É no limiar entre reino e governo que o problema a anarquia pode ser corretamente situado. Se a máquina política funciona graças à articulação dos dois polos reino/governo, a exceção soberana mostra claramente que o espaço entre os dois está de fato vazio, é uma zona de anomia sem a qual a máquina não poderia funcionar.
Assim como a norma não contém sua aplicação, mas necessita para isso da decisão de um juiz, assim o reino não contém nele mesmo a realidade do governo e a decisão soberana é o que, tornando-os indiscerníveis, abre o espaço da prática governamental. O estado de exceção é, pois, não somente anômico, mas também anárquico, no duplo sentido em que a decisão soberana não tem fundamento e em que a práxis que ela inaugura se move na indistinção entre a legalidade e a ilegalidade, a norma e a decisão. E como o estado de exceção constitui a charneira entre os dois polos da máquina política, isso significa que ele funciona capturando a anarquia em seu centro.
Pode-se definir como autenticamente anárquico um poder capaz de liberar a anarquia capturada na máquina. Um tal poder não pode existir a não ser como interrupção e destituição da máquina, quer dizer que é um poder que é integralmente destituinte e nunca constituinte. Para retomar os termos de Benjamin, seu espaço é o estado de exceção “real”, por oposição ao estado virtual sobre o qual repousa a máquina, que pretende manter a ordem jurídica em sua suspensão mesma. Reino e governo aí exibem sua desconexão definitiva e está fora de questão restaurar sua articulação legítima, como desejavam os críticos bem-intencionados, nem jogar, segundo uma concepção mal compreendida da anarquia, a administração contra o Estado. Nós sabemos há muito tempo, com lucidez e sem nostalgia, que nós nos deslocamos todos os dias sobre esse limiar intransponível e arriscado, onde a articulação entre reino e governo, Estado e administração, norma e decisão está irremediavelmente rompida, mesmo que o espectro mortífero da máquina continue a nos rondar.
17 de março de 2023
Giorgio Agamben
traduzido por João Gomes
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Giorgio Agamben
A produção do filósofo italiano nos interessa em muitos casos, mas especificamente naqueles em que seus conceitos poder destituinte e estado de excessão se fazem articular em uma prática narrativa que engendra, na linguagem e também na filosofia, a destruição do mundo presente e a imaginação porvir.
João Gomes
Gomes é É e tradutor, bacharel em História (PUC-SP), mestre em História Social (Unesp). Passou um período de pouco mais quatro anos de pesquisas em História Medieval na França junto à l’Université de Paris-I La Sorbonne e da École Pratique des Hautes Études.
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Nota da edição
Este texto foi publicado originalmente aqui.
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