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 CONTEÚDO 

RÉQUIEM PARA OS ESTUDANTES + BIOSEGURANÇA E POLÍTICA - Giorgio Agamben

Atualizado: 12 de jun. de 2020


Legenda: imagem renderizada em 3D de Jane Whitney, a fim de criar uma animação de um pico de proteína da SARS-COV-2. A autora diz: "Meus picos de [proteína] são definitivamente uma representação abstrata da estrutura real de picos".



Após a recente repercussão de textos negativos acerca das atuais posições do filósofo italiano Giorgio Agamben frente a pandemia mundial de COVID-19, as quais sempre difíceis de engolir, isso é inegável, assim como dessas posições em relação à sua obra, especificamente ao seu pensamento acerca da "biopolítica", nós, a GLAC edições e os tradutores Davi De Conti e Andityas Soares, aqui presentes, decidimos contrapor às recorrentes publicações deste blog-revista o que vem se tornando comum nesses dias: a deslegitimação do próprio pensamento. Que a filosofia política nunca pôde e não deve ser tratada como regra, lei ou autoridade, é sabido, mas, como simples meio de fazer pensar, perceber, analisar pela autoavaliação os dados históricos em vista das problemáticas do contemporâneo, isso deve voltar a ser clarificado, novamente e sempre. Por isso, seguem os dois últimos textos de Agamben, publicados originalmente, Requiem para os estudantes, no dia 22.05 no site do Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, e Biosegurança e política, no dia 11.05 no perfil do autor no Quodlibet, dois dos quais não discutimos a concordância mas os caminhos que eles fazem nos jogar ao encontro da situação, complexa e mesmo contraditória, que vivemos hoje.



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REQUIEM PARA OS ESTUDANTES

Como havíamos previsto, as aulas universitárias realizar-se-ão online no próximo ano. Aquilo que para um observador atento era evidente, isto é, que a pretensa pandemia seria utilizada como pretexto para a difusão sempre mais pervasiva da tecnologia digital, realizou-se pontualmente.


Não nos interessa aqui a consequente transformação da didática, cujo elemento da presença física, sempre tão importante na relação entre estudantes e docentes, desaparece definitivamente, bem como desaparecem as discussões coletivas nos seminários, que eram a parte mais viva do ensino. Faz parte da barbárie tecnológica que estamos vivendo o cancelamento da vida de cada experiência dos sentidos e a perda do olhar, duradouramente aprisionado em um ecrã espectral.


Bem mais decisivo no que se está sucedendo é algo de que significativamente não se fala em absoluto, a saber, o fim do estudantado como forma de vida. As universidades nasceram na Europa a partir de associações de estudantes – universitates –, e devem a estas o seu nome. Aquela do estudante, a saber, era antes de tudo uma forma de vida em que certamente era determinante o estudo e a escuta das lições, mas não menos importantes eram o encontro e a contínua troca com os demais scholarii, que frequentemente vinham dos lugares mais remotos e se reuniam em nationes de acordo com o lugar de origem. Essa forma de vida evoluiu de diversos modos ao longo dos séculos, mas era constante, desde os clerici vagantes do medievo aos movimentos estudantis do século XX, a dimensão social do fenômeno. Quem quer que tenha ensinado em uma aula universitária sabe bem como, por assim dizer, sob seus olhares se formavam as amizades e se constituíam, conforme os interesses culturais e políticos, pequenos grupos de estudo e de pesquisa, que continuavam a se encontrar mesmo depois do fim da aula.


Tudo isso, que durou por quase dois séculos, agora termina para sempre. Os estudantes não viverão mais na cidade em que está sediada a universidade, antes cada um escutará as lições fechado em seu aposento, separado às vezes por centenas de quilômetros daqueles que foram antes seus colegas. As pequenas cidades, outrora sedes de universidades de prestígio, verão desparecer de suas ruas aquela comunidade de estudantes que frequentemente lhe constituíam a parte mais viva.


De todo fenômeno social que morre se pode afirmar que, em um certo sentido, merecia o seu fim e é certo que nossas universidades chegaram a tal ponto de corrupção e de ignorância especialística que não é possível lamentar-lhe e que a forma de vida dos estudantes era em consequência igualmente empobrecida. Dois pontos devem no entanto restar firmes:


1. Os professores que aceitam – como estão fazendo em massa –, submeter-se à nova ditadura telemática e realizar os seus cursos somente online são o perfeito equivalente dos docentes universitários que em 1931 juraram fidelidade ao regime fascista. Como aconteceu então, é provável que apenas quinze de cada mil se recusarão, mas certamente seus nomes serão lembrados ao lado daqueles quinze docentes que não juraram.


2. Os estudantes que verdadeiramente amam o estudo deverão recusar-se a se inscrever em universidades transformadas desta maneira e, como em sua origem, constituir-se em novas universitates, somente no interior das quais, diante da barbárie tecnológica, poderá permanecer viva a palavra do passado e nascer – se nascerá –, algo como uma nova cultura.



Giorgio Agamben, 22 de maio de 2020

tradução de Davi de Conti



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Legenda: ilustração de Jane Whitney, agora em representação de todas possíveis formas que se abrigam no vírus SARS-CoV-2.



BIOSEGURANÇA E POLÍTICA


O que impressiona nas reações aos dispositivos de exceção que foram postos em ação no nosso país (e não só nele) é a incapacidade de enxergá-los para além do contexto imediato no qual parecem operar. Ao contrário, são raros aqueles que tentam, como uma análise política séria exigiria, interpretá-los como sintomas e sinais de um experimento mais amplo, no qual está em jogo um novo paradigma de governo dos homens e das coisas. Em um livro publicado há sete anos, que vale a pena reler agora atentamente (Tempêtes microbiennes, Gallimard 2013), Patrick Zylberman já havia descrito o processo mediante o qual a segurança sanitária, até então mantida nas margens do cálculo político, estava se tornando parte essencial das estratégias políticas estatais e internacionais. Está em questão nada menos do que a criação de um tipo de “terror sanitário” como instrumento para governar aquilo que era definido como o worts case scenario, o pior cenário. É segundo esta lógica do pior que já em 2005 a Organização Mundial da Saúde anunciou “de 2 a 150 milhões de mortos pela gripe aviária a caminho”, sugerindo uma estratégia política que então os Estados ainda não estavam preparados para acolher. Zylberman mostra que o dispositivo sugerido se articulava em três pontos: 1) construção, tendo em vista um risco possível, de um cenário fictício em que os dados são apresentados de maneira a favorecer comportamentos que permitem governar uma situação extrema; 2) adoção da lógica do pior como regime de racionalidade política; 3) organização integral do corpo de cidadãos de modo a reforçar ao máximo a adesão às instituições governamentais, produzindo um tipo de civismo superlativo no qual as obrigações impostas são apresentadas como provas de altruísmo e o cidadão não tem mais um direito à saúde (health safety), mas se torna juridicamente obrigado à saúde (biosecurity). Aquilo que Zylberman descrevia em 2013 é hoje pontualmente verificável. É evidente que, para além da situação de emergência ligada a certo virus que poderá dar lugar a outro no futuro, está em questão o desenho de um paradigma de governo cuja eficácia supera em muito aquela de todas as formas de governo que a história política do Ocidente conheceu até agora. Se já na progressiva decadência das ideologias e das fés políticas as razões de segurança levaram os cidadãos a aceitar limitações da liberdade que antes não estavam dispostos a aceitar, a biossegurança demonstrou ser capaz de apresentar a absoluta cessação de toda atividade política e de toda relação social como a forma máxima de participação cívica. Pôde-se assim assistir ao paradoxo de organizações de esquerda, tradicionalmente habituadas a reivindicar direitos e a denunciar violações da Constituição, aceitar sem reservas limitações da liberdade postas por decretos ministeriais sem qualquer legalidade e que nem mesmo o fascismo jamais havia sonhado poder impor.


É evidente – e as próprias autoridades governamentais não cessam de nos recordar disso – que o assim chamado “distanciamento social” se tornará o modelo da política que nos espera e que (como anunciaram os representantes de uma dita task force, cujos membros se encontram em claro conflito de interesses com a função que deveriam exercer) se aproveitará desse distanciamento para substituir as relações humanas na sua fisicalidade por dispositivos tecnológicos digitais, tendo as primeiras se tornado suspeitas de contágio (contágio político, entenda-se). As aulas nas universidades, como o Ministério da Educação Italiano já recomendou, se darão no próximo ano estavelmente on line, não nos reconheceremos mais ao nos olharmos no rosto, que poderá ser coberto por uma máscara sanitária, mas por meio de dispositivos digitais que reconhecerão dados biológicos obrigatoriamente coletados e qualquer “aglomeração”, seja por motivos políticos ou simplesmente por amizade, continuará a ser proibida. Está em questão uma inteira concepção do destino da sociedade humana, em uma perspectiva que por muitos aspectos parece ter tomado das religiões, agora em seu crepúsculo, a ideia apocalíptica de fim do mundo. Depois da política ter sido substituída pela economia, agora até esta, para poder governar, deverá ser integrada ao novo paradigma da biossegurança, ao qual todas as outras exigências deverão ser sacrificadas. É legítimo perguntar-se se uma tal sociedade poderá ainda se definir como humana ou se a perda das relações sensíveis, de face a face, de amizade, de amor, pode ser verdadeiramente compensada por uma segurança sanitária abstrata e presumivelmente de todo fictícia.



Giorgio Agamben, 11 de maio de 2020

tradução de Andityas Soares de Moura Costa Matos



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Giorgio Agamben nos interessa em muitos casos, mas especificamente naqueles em que seus conceitos 'poder destituinte' e 'estado de excessão' se fazem articular em uma prática narrativa que engendra filosoficamente a destruição do mundo e a imaginação porvir.


Davi De Conti nasceu em São Paulo e foi criado em Goiânia. De volta à terra da garoa, se tornou mestre em filosofia e agora se encontra confinado no Jaguaré.


Andityas Soares de Moura Costa Matos é Professor Associado de Filosofia do Direito e disciplinas afins da UFMG e autor, junto do filósofo catalão Francis García Collado, de O vírus como filosofia / A filosofia como vírus: reflexões de emergência sobre a pandemia de COVID-19, publicado recentemente pela editora espanhola Bellaterra, e em tradução para publicação tão logo pela GLAC edições.

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