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 CONTEÚDO 

ABOLIÇÃO - Saidiya Hartman

Atualizado: 22 de jul. de 2020



Legenda: Underwood & Underwood, Photograph of Silent Protest Parade, July 28, 1917. Photo: Wikimedia Commons.



Cinco séculos de terror supremacista branco: não apenas um passado ao qual estamos inelutavelmente presos, mas um presente que nos produz, embora em ordens diferentes de magnitude e vulnerabilidade. Os Estados Unidos há muito mantêm a ficção de que este país despiu-se de sua violência fundamental. O trabalho de Saidiya Hartman traçou um caminho nos e através dos arranjos sociais produzidos pelas forças sedimentadas de acumulação e desapropriação. Seus escritos, em numerosos ensaios e em livros como Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth Century America (1997), Lose Your Mother: A Journey Along the Atlantic Slave Route (2007), e Wayward Lives, Beautiful Experiments (2019) não apenas reformularam os contornos da investigação acadêmica, mas também deram forma ao que ela chamou de “o ainda-incompleto projeto de liberdade.” Abaixo, Hartman fala sobre a continuidade da tradição radical negra, as qualidades insurrecionais da vida negra e o “exercício selvagem da imaginação” necessário para desafiar a ordem reinante.



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O QUE CONSTITUI O PENSAMENTO RADICAL? *


Como trazemos à vista a constância da prática radical negra — uma prática que caiu esmagadoramente de vista — e um certo léxico do que constitui a tradição política, ou a política radical, ou a tradição anarquista ou uma história de antifascismo? Ao observar a vida de jovens mulheres, pessoas não conformes com o gênero e queer em Wayward Lives, Beautiful Experiments (2019), uma coisa era absolutamente clara: as práticas de recusa — fuga, vadiagem e greve —, uma crítica ao estado e ao que ele poderia proporcionar; e um entendimento de que o estado está presente principalmente como uma força punitiva, uma força para a contenção brutal e a violação, a regulação e a erradicação da vida negra. Em Wayward Lives, discuto os “mandados falsos” (jump warrants), que permitiu à polícia entrar em apartamentos à vontade. Sabemos que Breonna Taylor foi assassinada no equivalente contemporâneo desses mandados, que é a justificativa de “não bater na porta”. A polícia simplesmente entra em um lugar e faz o que quer.


Porque as “waywards”[1] estão atuando e concebendo o mundo de uma maneira que excede os limites da norma – o que é legítimo e respeitável – , os atores e pensadores políticos tradicionais falharam em entender suas ações como animadas e infligidas pelo espírito de recusa radical. Mas, para mim, isso era totalmente nítido. Gostaria de pensar na desobediência como prefigurativa dos protestos e insurgências de hoje e também como uma prática continuada. Em My Bondage, My Freedom, de Frederick Douglass, ele descreve a plantation como uma nação dentro da nação, como um espaço de exceção fora do amplexo da democracia, como um confinamento. Os negros foram abandonados pela lei, posicionados fora da nação e excluídos dos termos do contrato social — e esse reconhecimento tem, na verdade, centenas de anos. Wayward Lives dá às jovens negras o crédito por entender isso, por seu entendimento agudo das relações de poder, e o livro trata das maneiras pelas quais elas tentaram viver e se sustentar, nunca esquecendo a estrutura do confinamento que as cercava e as forças com a intenção de as obrigar a servir.


Meu trabalho tenta pensar sobre a questão, a questão aberta — a questão quase impossível — da vida negra nesse contexto, e as maneiras de melhor transmitir a rica textura da existência nessas circunstâncias: tornar visíveis as relações brutais e abstratas de poder que fazem da dominação violenta e da morte prematura características definidoras da vida negra. Como alguém se opõe aos complôs ou imposições particulares do sujeito; desafia o script da vida gerenciada e regulamentada; persiste sob a ameaça de morte? Uma das coisas que eu amo em W.E.B Du Bois — e meu trabalho está em diálogo e em dívida com ele — é sua capacidade imaginativa e seu compromisso com a experimentação. Compreender a revolução epistêmica que ocorre em Black Reconstruction (1935) é entender a abolição da escravidão e a reconstrução como a criação da democracia americana e conceber a prática política radical e insurgente dos atores escravizados. Até o C.L.R James se maravilha com a capacidade de Du Bois de conjurar essa consciência revolucionária e reflete sobre suas próprias falhas, em comparação, em Lectures on The Black Jacobins (1971).


Sempre fica aberta uma questão de forma: como alguém traz uma pequena revolução à vista? Na maioria das vezes, queremos manter uma ficção de que o desejo existe de um lado, e de que violência e coerção existem de outro, e que estes são radicalmente distintos e opostos. Em vez disso, poderíamos pensar na violência sexual como uma condição normativa, não a exceção. Sob o heteropatriarcado, violência e estupro são os termos da ordem, a norma; eles são esperados. Então, como alguém deseja ou se relaciona, quer ou ama um outro? Como se reivindica a capacidade de tocar quando o toque é, em muitos casos, a modalidade de violência? Como eu digo repetidamente, Wayward Lives não é um texto de libertação sexual. Mas eu realmente queria pensar na experiência sensorial e em habitar o corpo de uma maneira que não se esgote com a condição de vulnerabilidade e abuso. O que significa — para aquelas pessoas cujos corpos são mais frequentemente sujeitos à vontade, ao desejo e a violência de outras pessoas — imaginar a corporeidade de uma maneira que não está ligada à servidão ou à violência? Para mim, isso foi essencial para pensar em políticas radicais: o que significa amar esse corpo? Amar a carne em um mundo onde ela não é amada ou respeitada? Amar a carne feminina negra. Os assassinos de Breonna Taylor ainda não foram acusados.


A incrível vulnerabilidade à violência e ao abuso é algo que define a vida das mulheres negras . E, desse modo, o que significa querer imaginar e experimentar outra coisa? Não pode ser senão político – simplesmente querer libertar o corpo de seu recrutamento para a servidão, para não estar mais submetida ao projeto de reprodução do mundo – tudo isso faz parte de um imaginário abolicionista. Foi-nos atribuído um lugar na ordem capitalista racial que é o degrau mais baixo; o degrau inferior é o local do trabalhador “essencial”, o local onde ocorre todo o oneroso trabalho de reprodução. Não apenas o trabalho reprodutivo nos termos de manter e ajudar as famílias brancas para que possam sobreviver e prosperar, mas o trabalho reprodutivo que nutre e apoia a vida psíquica da branquitude: que escora a inviolabilidade, a segurança, a felicidade e a soberania desse sujeito mestre, do homem. Em grande medida, este mundo é mantido pela descartabilidade e fungibilidade da vida feminina negra. A intimidade é uma característica crítica desse trabalho coercitivo e de cuidado. A intimidade negra foi moldada pela formação social anômala produzida pela escravidão, pela servidão involuntária, pela extração capitalista e pela anti-negritude, e ainda assim excede essas condições. O reino íntimo é uma extensão do mundo social — é inseparável do mundo social -, portanto, criar outras redes de amor e afiliação, nutrir uma socialidade promíscua, vasta o suficiente para abraçar estranhos, deve estar envolvida no trabalho de desafiar e refazer os termos da socialidade.


O que vemos agora é uma tradução do sofrimento negro em pedagogia branca. Nesse momento extremo, a violência casual que pode resultar em perda de vidas — um policial literalmente matando um homem negro com o peso dos joelhos no pescoço do outro — se torna um ponto de inflamação para um certo tipo de consciência liberal branca, do tipo: “Oh meu Deus! Estamos vivendo em uma ordem racista! Como posso saber mais sobre isso?” Essa pergunta é um sintoma da estrutura que produz a morte de Floyd. Depois, há um outro conjunto de demandas: “Eduque-me sobre a ordem em que vivemos”. E é como: “Ah, mas você está vivendo nessa ordem. Sua segurança, sua riqueza, sua boa vida dependem disso”. Então, isso nos enlouquece. A maior perda de propriedades negras desde a Grande Depressão foi consequência da crise das hipotecas subprime, e atos proliferantes de violência racista do Estado ocorreram sob um presidente negro. A maior população encarcerada do mundo; a eleição de 2016 e o voto público declarado de supremacia branca em 45 anos — todas essas coisas que sabemos, certo? Conhecemos o caráter racialmente excludente dos bairros brancos; como, nos centros urbanos, as pessoas da classe alta monopolizam os recursos públicos para garantir seu futuro e o futuro de seus filhos sobre e contra o futuro de outras crianças. Sou nova-iorquina — a cidade tem o sistema escolar mais racialmente segregado do país. Os eleitores de Obama e Clinton estão investidos em um sistema escolar que prejudica crianças negras e resistem até aos menores esforços para torná-lo mais justo. O investimento possessivo na branquitude não pode ser retificado aprendendo a “como ser mais anti-racista”. Ele exige um desinvestimento radical no projeto de brancura e uma redistribuição de riqueza e recursos. Requer abolição, a abolição do mundo carcerário, a abolição do capitalismo. O que é necessário é refazer a ordem social, e nada menos do que isso fará diferença.


Todo mundo emitiu uma declaração – todas as universidades racistas e instituições culturais de elite, todas as empresas bancárias e de investimento predatórias – emitiram uma declaração sobre o fato de estar do lado do Black Lives Matter. Isso está além da hipocrisia. É cinismo absoluto. Essas instituições sentem-se obrigadas a participar desse tipo de performance e desse tipo de discurso apenas devido às exigências radicalmente amplas daqueles que estão nas ruas, daqueles que estão exigindo a abolição e que disseram: “Nós, que não fazemos parte do contrato social, vamos tumultuar, saquearemos”. São atos políticos legítimos. São formas de lidar com a violência dessa ordem no nível da ordem — a delegacia de polícia, o banco, o varejista, a sede da empresa.


Existe uma grande disparidade entre o que está sendo articulado por esse movimento feminista radical queer, trans e preto, e a linguagem da política partidária e as escolhas eleitorais, que são tão incrivelmente empobrecidas que não são escolhas. A demanda para desfinanciar a polícia foi atendida porque existe um movimento se desenrolando há décadas, uma análise que tem sido colocada – com base no trabalho de Angela Davis, Assata Shakur, The Collective River Combahee, Marsha P. Johnson, Audre Lorde, Ruth Wilson Gilmore, Mariame Kaba, Patrisse Cullors, Opal Tometi e Alicia Garza, Michelle Alexander, Keeanga Yamahtta Taylor. Não é uma surpresa que tantas pessoas na rua sejam jovens. Eles estão nas ruas com essas poderosas ferramentas críticas e conceituais e não estão satisfeitas com uma reforma. Eles entendem que reformar é uma modalidade de reproduzir a máquina, reproduzir a ordem – sustentá-la. Eu sinto que há uma clareza de visão que não será perdida. Isso é o que tem sido tão inspirador sobre esses protestos e revoltas — a clareza e a capacidade da visão.



Saidiya Hartman


tradução de Allan Kardec Pereira

e revisão André Arias



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Nota da edição

* A presente entrevista foi concedida a Catherine Damman e publicada originalmente no site da Artforum, importante revista internacional especializada em arte contemporânea, sob o título Insurgent histories and the abolitionist imaginary, em 14 de junho de 2020. Você pode conhecê-lo clicando aqui.

[1] Nota dos editores: Wayward é uma palavra quase impossível de traduzir para o português sem perder o sentido original, um pouco como queer. Seria uma mistura de rebeldia com malícia, com vadiagem, com fuga, com errância. Preferimos manter no original.


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Saidiya Hartman é escritora e professora na Universidade de Columbia, Nova York. Pesquisa literatura e história cultural afro-americana do pós-escravidão.


Allan Kardec Pereira é doutorando em História pela UFRGS, onde desenvolve pesquisa sobre o Black Lives Matter, Afropessimismo e a tradição radical negra.


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A palavra é vírus

Simultânea e paralelamente à pandemia do novo coronavírus, muitas palavras também ganham a insistência das repetições. A cada segunda-feira, um novo ensaio pensando com as palavras. Quer saber mais sobre a série? clica aqui

Editores: Wander Wilson e André Arias. E-mails de contato: wanderwi@gmail.com / andre.fogli@gmail.com

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