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 CONTEÚDO 

O TRABALHO DIGNIFICA O HOMEM? – agnes de oliveira contra a escala 6X1

Atualizado: 19 de nov.


O presente texto nos foi oferecido pela amiga e colaboradora agnes de oliveira para ocorrer conjuntamente a Brava, plataforma de educação dissidente que vem se tornando, cada vez mais, uma importante parceira da GLAC edições. A finalidade da proposta de agnes é simples e direta: chamar a população de todo o Brasil para os atos que se ergueram em diversas capitais contra a escala de trabalho 6X1, luta iniciada pelo movimento VAT (Vida Além do Trabalho), criado pelo tocantinense Rick Azevedo e atualmente apresentada como proposta de lei por meio de uma PEC encabeçada pela deputada federal Érika Hilton.


No primeiro dia de maio deste ano, um sábado de 2024, dia nacional do trabalhor, o VAT realizou uma importante manifestação para difusão de sua proposta acerca da escala 6X1, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. Na ocasião, as editoras GLAC e n-1 edições realizaram uma intervenção nomeada Memolotov, que foi realizada pelo produtor cultural e ator Luiz Manuel. A ação consistiu em distribuir bexigas amarelas e pretas cheias de gás hélio impressas com um smile que segura um molotov, além das informações de título, subtítulo e autor do livro, coeditado pelas editoras, qual se divulgava: Não existe revolução infeliz — por um comunismo destituinte, do italiano Marcello Tarì. As imagens que acompanham o texto de agnes foram realizadas durante este evento-acontecimento.





O trabalho dignifica o homem?[1]


— agnes de oliveira



 

 


Em meio a luta contra a escala 6x1, o fanatismo do trabalho busca ganhar um novo fôlego. Seus adoradores não demoram em enunciar que o trabalho atribuí dignidade interna e diferencial ao Humano. Pois seria pelo trabalho que o ser humano se autodetermina e dá para si um mundo para além das limitações e restrições da natureza, às quais estão submetidas todos os demais seres não-humanos.

 

Após mais de 500 anos de imposição do "mundo do trabalho" como uma forma (re)produção social específica da modernidade, o trabalho foi naturalizado ao ponto de se confundir com o que há de fundamental e criador na vida. Criticar o trabalho se torna equivalente a um gesto de insanidade: uma ameaça não só à economia, mas, supostamente, à própria vida humana e sua dignidade.

 

Mas essa “honra” do trabalho possuí uma história amarga e sangrenta, à qual precisamos retornar.

           

uma história sangrenta…

 

A modernidade emerge como um grande empreendimento de imposição global do trabalho como um traço distintivo da Humanidade:

 

O trabalho forçado dos povos indígenas – chamado de “ouro vermelho” pelo Padre Antônio Vieira - foi justificado como combate à preguiça, prática de "salvação" e motor do "civilizatório". John Locke – o "pai do liberalismo" -, por exemplo, justificou a expropriação das terras indígenas "incultas" no "Novo Mundo" por não serem trabalhadas pelos seus habitantes indígenas.[2] Nesse contexto, no século XVI, foram construídos aldeamentos missionários, que serviam de “reserva” de trabalho escravo indígena, o que permitiu o “nascimento econômico da Colônia”.[3] Ou seja, o chamado “mundo do trabalho” emerge com e pela violência colonial anti-indigêna, e também anti-negra. A escravidão transatlântica também chegou a ser justificada como um empreendimento humanitário contra a "luxúria" dos povos africanos.[4]  O que colocou como horizonte a recusa do trabalho e a fuga para formação de quilombos.  Por fim, durante o século XX, "O trabalho liberta" (Arbeit macht frei) era a frase que estampava os portões de Auschwitz.

           

A modernidade produz, assim, uma reviravolta violenta na forma de produção da vida coletiva, que está intimamente ligada à afirmação do trabalho como um traço característico do Humano como coisa racional e autodeterminada. Até então, as palavras que remetiam ao trabalho tinham uma conotação negativa e não desempenhavam o papel de fundamento social, como travail, laborare, tripalium, trabajo e por aí vai:

 

Portanto, "trabalho" - também pela sua origem etimológica - não é sinônimo de atividade humana autodeterminada, mas remete a um destino social infe­liz. É a atividade daqueles que perderam sua liberdade. A ampliação do trabalho a todos os membros da socie­dade é, por isso, nada mais que a generalização da de­ pendência servil, e sua adoração moderna consiste apenas na elevação quase religiosa desse estado.[5]

 

Assim, na modernidade, o trabalho passa a ser considerado a atividade por excelência pela qual a Humanidade dá para si um mundo: se torna a substância social. O ser humano seria, antes de tudo, um Homo faber. O cristianismo teve um papel fundamental nessa história sangrenta de imposição do trabalho. Primeiro pela caças às bruxas, depois pelo protestantismo, até que se firmo uma “metafísica secularizada” ligada ao trabalho e ao dinheiro. Antônio Bispo dos Santos observou esse vinculo ao dizer que:

 

O trabalho (castigo) foi criado pelo Deus dos cristãos para castigar o pecado, portanto, o seu produto dificilmente servirá ao seu produtor que, por não ver o seu Deus de forma materializada, muitas vezes se submete a outro senhor que desempenha o papel de coordenador do trabalho (castigo). Talvez por isso o produto concreto do trabalho (castigo) tenha evoluído facilmente para a condição fetichista de mercadoria sob o regimento do "Deus dinheiro"[6]

 

Por fim, é preciso observamos que, apesar de sua história sangrenta, o pensamento de esquerda não escapou da adoração moderna pelo trabalho e da sua afirmação como fundamento da socialidade. Encontramos também em Marx momentos de uma ontologia do trabalho. Em O Capital, por exemplo, dizia que pressupunha “o trabalho numa forma em que lhe diz respeito unicamente ao homem”, se distinguindo da abelha por ter autoconsciência (razão) naquilo que produz.[7] Mas era também isso que dizia John Locke e seu concepção do indivíduo como coisa racional, porque capaz de trabalho e, portanto, de propriedade. Após  Locke e Marx, diria também Bataillle, estabelecendo a intimidade entre trabalho e razão, e recuando até o Homem de Neandertal, diz que: “o mundo do trabalho e da razão é a base da vida humana”.[8] Essa “certeza” e “necessidade” do trabalho, por muito tempo pareceu inquestionável ao pensamento moderno, até que a modernidade começou a desmentir a si mesma.

 

trabalho - ou seja, a razão - é dinheiro...

 

A relação íntima entre trabalho e razão universal só foi estabelecida quando o dinheiro se tornou a forma universal da riqueza. Para a produção de uma riqueza universal é necessária um atividade universal, guiada por uma razão universal posta como propriamente Humana: o trabalho humano em geral. Sem trabalho, portanto, é a própria humanidade que é suspensa.

 

Isso ocorre com a emergência do Capital como relação social global. O trabalho só pode se afirmar como atividade universal de produção da riqueza material, desempenhando o papel de “substância” comum à incomensurabilidade concreta, quando a riqueza assume a forma da universalidade monetária. Trabalho humano em geral e dinheiro são dois lados da mesma moeda: o Capital.

 

Para encurtar a história, o papel do trabalho como fundante da Humanidade, de sua dignidade intrínseca e fonte de produção da vida coletiva, é algo especificamente moderno, mas que demandou para se impor a expropriação de terras, o derramamento de sangue de povos racializados, de mulheres e pessoas dissidentes, bem como o estouro contínuo das armas de fogo, que precipita a combustão do planeta pelas bocas dos canhões.[9]

 

um ponto de partida negativo…

 

Quando olhado a partir da “questão da diferença”, o trabalho se torna um ponto de partida negativo. Mais precisamente, o trabalho se revela como uma forma de dominação social baseada na supremacia branca, no cis-patriarcado e outras formas de diferenciação, como o capacitismo e o especismo. Em outros termos, a centralidade e lógica identitária do trabalho pressupõe a produção de diferenciações: a racialização, sexualização, a animalização, o antissemitismo, a diferenciação de capacidade e de idade como antípodas do trabalho.

 

Desse modo, as atividades feminilizadas são postas como sem valor, pois não são trabalho. E as dissidências de sexualidade e gênero aparecem como vidas sem valor, pois opostas ao trabalho por ameaçarem a reprodução cis-heterossexual funcional à economia e à reprodução do trabalho. As vidas negras e indígenas também são consideradas sem valor, na medida em que negridade e indigeneidade, bem como as terras cultivadas por elas, são determinadas como opostas ao trabalho como atividade de um sujeito e, assim, situadas na exterioridade, ao lado das demais coisas da natureza.

 

Os judeus, por sua vez, são produzidos pela sua identificação com o capital financeiro e o “não-trabalho”, sendo objetos de um anticapitalismo rasteiro contra “parasitas” personificados, e baseado na ética do trabalho e da produção “honesta”. Numa figura inversa ao Judeu, a figura do Cigano é produzida na modernidade como nômades avessos ao trabalho e que ameaçam o corpo social com sua associalidade criminosa.

 

Pessoas com diversidade funcional (PCD’s) e pessoas idosas também são abarcadas pela normalização imposta pelo trabalho. Se tratam de vidas consideradas cada vez mais como “fardos” e “custos” a sere mcortados para a administração da crise da reprodução social.

 

Diante disso tudo, e não por outra razão, o ataque ao Estado Social foi diversas vezes justificado pelo fato das proteções sociais “feminizarem” o tratamento da pobreza. Há, assim, uma relação intrínseca, na reação neoliberal à crise da “sociedade do trabalho”, entre masculinismo e destruição do Estado social. Também os ataques contra a previdência social, que está atualmente na mira do arcabouço fiscal de Fernando Haddad, são há muito tempo justificados pelo alto custo com a improdutividade social das pessoas idosas e a ameaça que seu crescimento significa para a sustentabilidade da economia.

 

O trabalho está, com efeito, não só na base da produção diferencial de superfluidades sociais diversas, mas da “especiação violenta” pela qual o Homem emerge em sua diferença intrínseca pela qual justifica seu domínio sobre a terra e a natureza.[10] Nesse sentido, quando partimos de suas antípodas, o trabalho se revela uma forma de socialidade negativa e baseada no sofrimento, na exclusão e, no seu limite, numa lógica de aniquilação da vida.

                       

a imortalidade e dignidade do trabalho desmente a si mesma...

 

Ocorre que hoje, num contexto de crise fundamental do capitalismo,  o trabalho começa a desmentir a si mesmo e sua universalidade capaz de atribui dignidade a todos seres humanos.

 

Contudo, no momento de crise do trabalho, na qual este perde sua "dignidade" e seu caráter imprescindível, é suscitado um "novo" fanatismo pelo monoteísmo do trabalho: em sua fase terminal, o trabalho "não tolera outro Deus ao seu lado".

 

A imposição da escala 6x1 e jornadas exaustivas de trabalho coexistem com subocupações, trabalho intermitentes e desemprego estrutural crescente. Ter 2 ou 3 trabalhos, na forma de "bico", "viração" ou "empreendedorismo" se tornou tão comum quanto trocar de roupa. É uma situação inversa do processo de emergência e formação da classe trabalhadora. A luta pela redução da jornada de trabalho se dava num contexto de generalização da imposição do trabalho via “proletarização” – atravessada pela racialização e sexualização. Por isso mesmo, a redução da jornada de trabalho e a ampliação dos diretos trabalhistas coexistiu com uma ampliação absoluta da força do trabalho acoplada ao Capital. Atualmente, contundo, o que ocorre é uma expulsão da força de trabalho em relação ao próprio Capital. Assim, a contração global do chamado “mundo do trabalho” coexiste com a intensificação da exploração, da ampliação das jornadas e da subocupação das forças de trabalho restantes.  Sobre isso, Roswitha Scholz observou o seguinte:

 

Aqueles que hoje são precários é porque ainda não caíram completamente fora.... Em outras palavras, a precariedade é apenas a ameaça do perigo realmente existente da superfluidade. (...) A superfluidade objetiva é a verdadeira categoria, aquela que é decisiva, e não simplesmente a precariedade, que é o mero sentimento disso e que parece ser o verdadeiro em termos subjetivos, exigindo a manutenção incondicional de uma atividade profissional qualquer, nem que seja na forma de um empresariado de si próprio pós-moderno numa so-ciedade do trabalho concebida como ontológica.[11]

 

Tal quadro aponta para uma situação histórica do capitalismo em que a próprio trabalho é cada vez mais supérfluo em decorrência da racionalização e cientifização da produção material. Ou seja, se trata do resultado do permanente aprimoramento, que faz, de maneira contraditória, do homem o usufruto do homem, que Moten e Harney nos relatam emTudo Incompleto.

 

Nesse contexto de crise do trabalho, políticos, economistas, empresários e os mais variados adoradores do Deus trabalho passam a justificar, como um "sacrífico" necessário em nome do bem comum, a exploração até a exaustão da força de trabalho cada vez mais descartável: "Não pense em crise, trabalhe!" foi anunciado a pouco tempo como seu novo mandamento. Aliás, à esquerda e à direita se nega que exista qualquer coisa como uma crise do trabalho, dado a sua presunção de imortalidade.

 

um meio que é um fim-em-si

 

Todo esse dilema social em torno do trabalho - e de sua suposta centralidade ontológica como condição da vida - dá mostras que a finalidade do trabalho, bem como da economia e suas leis, nunca foi a satisfação das nossas necessidades e a garantia de uma vida digna partilhada.

 

É preciso termos isso bem demarcado: a finalidade do trabalho é ele próprio numa eterna acumulação que aparece como "crescimento econômico". O fim do trabalho é produzir mais-trabalho.  Por isso se trata de um meio ou uma forma de mediação das nossas relações que é um fim-em-si. A garantia da reprodução da vida das pessoas que trabalham é um mero subproduto da reprodução do trabalho como um meio ou uma forma autonomizada que ganhou vida própria.

 

Assim, o trabalho é mais adequadamente compreendido como uma atividade do capital, não de criação da vida. Na experiência cotidiana, o absurdo fim-em-si do trabalho se manifesta no fato que o que importa é "ter um trabalho", independente de qual seja e mesmo que, em decorrência dos salários de fome, não seja capaz de garantir qualquer condição digna de vida.  O trabalho sempre se impôs como um poder estranho e secretou os mais diversos mecanismos para se fazer algo constitutivo da intimidade e interioridade de cada pessoa: uma atividade própria da razão, do entendimento e da vontade de cada um. Por um breve período e num espaço-tempo muito delimitado e restrito, ter trabalho chegou a ser considerado garantidor de cidadania e dignidade no capitalismo. Mas esse horizonte de expectativa em torno do trabalho se esgotou e entrou numa espiral decrescente.

 

De todo modo, se ter ou não trabalho passa a justificar a produção de vidas indignas de serem vividas, a equação deve ser invertida: é o trabalho que destruiu e destrói permanentemente a dignidade da vida para impor sua superioridade como forma social. O trabalho é uma guerra social e não a terra prometida a ser alcançada. Devemos nos emancipar do trabalho, e não emancipá-lo. Estamos lutando contra uma ferramenta do senhor, não nos enganemos.

 

abolição é, antes de tudo, uma antieconomia...

 

A economia não é apenas aquilo de que devemos sair para deixarmos de ser mortos de fome. É aquilo de que é preciso sair para viver, simplesmente, para estar presente no mundo. Cada coisa, cada ser, cada lugar, é incomensurável enquanto aí está – Comitê Invisível, Motim e destituição agora.

 

Os adoradores do trabalho dizem:

 

Reduzir (e quem dirá abolir!) o trabalho vai acabar com a economia.

 

Quando é a própria economia que está tornando o trabalho supérfluo e desmentindo sua "necessidade", ao mesmo tempo que lança milhares de pessoas na miséria e na fome. Não por outra razão o capitalismo atualmente, em sua crise de superprodução estrutural, é mercado pela predominância do capital fictício. Isto é, por uma forma do capital que busca se acumular sem a mediação do trabalho: D-D’. O endividamento e a especulação se tornaram centrais para o adiamento dos efeitos da crise da reprodução capitalista, porque o trabalho já não é capaz de sustentar a acumulação do Capital. O Capital cerrou o próprio galho no qual se assenta e na administração da sua queda no vazio quer levar o planeta inteiro consigo.

 

Os adoradores do trabalho dizem:

 

Reduzir o trabalho vai produzir pobreza e fome.

 

Quando foi em nome do trabalho que a pobreza, a fome e a morte se alastraram pelo mundo. E, atualmente, é assim cada vez mais: se não tiver um trabalho é justificado que cada um passe e morra de fome.

 

A tudo isso, devemos responder anunciando que uma vida para além do trabalho e da economia é possível, foi e sempre será. Pois a vida está aqui há muito mais tempo que a economia.

 

A antieconomia não é, aliás, uma novidade.[12] A luta contra a emergência do Capital sempre foi marcada por diversas recusas e fugas ao trabalho. Diante dessa fugitividade, o Capital secretou os mais diversos dispositivos, regidos pela lei do racial e do sexual, para fixar a força de trabalho (aldeamentos missionários, casas de correção, escravidão…). Nos anos 60-70, assistimos a um processo recente de recusa do trabalho. Entretanto, do Direito à preguiça de Lafargue à Autonomia Italiana a elaboração da recusa do trabalho se manteve, em larga medida, quantitativa: se tratava de reduzir o tempo necessário do trabalho para reproduzir a vida social.[13]

 

De maneira distinta, hoje a tarefa, cada vez mais urgente, não é reduzir, mas abolir o trabalho!

 

O trabalho não se confunde com toda e qualquer atividade para a reprodução da vida. O trabalho é, fundamentalmente, a forma de atividade social do capitalismo racial e cispatriarcal: a atividade produtora de valor – uma coisa abstrata - expressa na foram monetária. E o valor é, por natureza, indiferente e destrutivo em relação à vida.

 

O que chamamos de economia, essa esfera desvinculada de outros momentos da vida social - e que assume uma “centralidade” - não é algo que sempre existiu. A ideia segunda a qual a economia é uma condição antropológica é uma projeção – colonial - da modernidade sobre outras formas de vida.[14] Segundo essa concepção, todas as relações humanas e sua reprodução seriam, fundamentalmente, relações econômicas (a chamada infraestrutura).

 

Se partimos da consideração que a economia pressupõe a possibilidade de troca entre os produtos produzidos e, nesse sentido, algo de “comum” subjacente a eles. Então, a economia se revela algo especificamente moderno. Só é possível que exista algo de “comum” entre os produtos e ao qual suas diferenças possam ser reduzidas e abstraídas, se os produtos são produzidos, desde partida, como mercadorias, ou seja, coisas dotadas de valor – o terceiro termo de mediação. E, nesse sentido, enquanto mercadorias, tais produtos pressupõem o dinheiro como forma autonomizada de representação do valor. Ora, uma produção orientada para o valor pressupõe o valor como ponto de partida e ponto de chegada. O que torna a sociedade um processo incessante de “valorização do valor”, de produção inacabável de mercadorias. O valor, que pressupõe o trabalho abstrato, só pode se conservar se ampliando, afim de pôr e garantir a si como forma abstrata universal de reprodução social. Nesse sentido, a troca se revela não uma mera relação de equivalência, mas um momento de realização de um processo social de acumulação, que caracteriza o capitalismo: a base do celebrado “crescimento econômico”. Esse movimento constitui a “lei” do que chamamos de economia e que é indiferente à multiplicidades daquilo que constitui e nos pede a vida.

 

Portanto, uma luta contra o Capital e pela incomensurabilidade da vida é, necessariamente, uma luta pela abolição do trabalho e da economia como formas de vida destrutivas.







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Isto não é um programa é um ensaio político, uma análise de conjuntura, uma prosa poética, um exercício de imaginação e um tratado de teoria crítica. O texto parte de uma análise das lutas autonomistas italianas dos anos 1970, opondo o "rastejante" Maio de 77 em Roma ao "triunfante" Maio de 68 parisiense, para lançar as bases de uma teoria política voltada para a ação/transformação radical do mundo existente.


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Notas


[1] Aqui o termo “homem” tem um duplo sentido, que não é aleatório. Primeiro, se refere ao homem como sujeito masculino. Nesse sentido, estabeleço uma relação, que considero estrutural, entre masculinidade e trabalho. Em segundo, homem se refere ao Humano como entidade ética, a coisa moderna dotada de razão e capaz de liberdade, entendida como uma prática de autodeterminação que se realiza pelo trabalho. Contudo, considero que essa entidade abstrata –  o Humano – e sua posição excepcional diante das coisas da natureza, como coisa capaz de “trabalho” - é sempre-já determinada como masculina, pois é uma forma de dominação cis-patriarcal.


[2] “Não há demonstração mais clara deste fato que as várias nações americanas, que são ricas em terra e pobres em todos os confortos da vida; a natureza lhes proviu tão generosamente quanto a qualquer outro povo com os elementos básicos da abundância – ou seja, um solo fértil, capaz de produzir abundantemente o que pode servir de alimento, vestuário e prazer – mas, na falta de trabalho para melhorar a terra, não tem um centésimo das vantagens de que desfrutamos. E um rei de um território tão vasto e produtivo se alimenta, se aloja e se veste pior que um diarista na Inglaterra”. Locke, J. Segundo tratado do governo civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 2021, p.106.


[3] A expansão de fazendas e de engenhos sobre os terrenos habitados pelos indígenas é viabilizada pelos “descimentos” e pela criação de aldeias, que os re-territorializam em espaços mais limitados e sob a supervisão dos missionários. É dessas aldeias que irá sair a reserva de trabalhadores que permite o nascimento econômico da Colônia.”. Oliveira, J. P. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p.63).


[4] Mbembe, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018, p.149.


[5] Grupo Krisis. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003, p.46.


[6] Bispo dos Santos, A. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: INCTI, 2015, p.40.


[7] “Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade.” Marx, K. O Capital. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: boitempo. Essa concepção marxiana do trabalho, como distintivo do humano e ligado à capacidade de autoconsciência, aparece também em seus manuscritos econômico-filosóficos, ao tratar do ser humano como ser genérico: “O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não  uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal”. Ibidem, Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: boitempo, p.84.


[8] “Dessa forma, a coletividade humana, em parte consagrada ao trabalho, se define nos interditos, sem os quais ela não teria se tornado esse mundo do trabalho que ela é essencialmente”. Bataille, G. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p.63.


[9] Sobre a relação entre a revolução das armas de fogo, economia de guerra e emergência do capital e do trabalho abstrato, ver Kurz, R. O estouro da modernidade com tostões e canhões: inovação com armas de fogo, expansão pela guerra: uma olhada pra pré-história do trabalho abstrato. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz94.htm


[10] “Especiação violenta” é o termo que Fred Moten e Setaphano Harney empregam para caracterizar o processo de produção da excepcionalidade do ser humano, a partir da Europa, em relação aos outros modos de vida e à própria terra. “A especiação é essa redução geral da terra à produtividade e a sua submissão às técnicas de dominação que isolam e reforçam acréscimos particulares e acelerações da produtividade. Nesse sentido, o homem (necessariamente europeu), na e como exceção, impõe a si a especiação, em uma operação na qual extrai e excetua a si mesmo da terra para confirmar seu suposto domínio sobre ela” Moten, F; Harney, S. Tudo incompleto. São Paulo: GLAC, 2023, p.52.


[11] Scholz, R. Cristóvão Colombo Forever? Para a crítica das atuais teorias da colonização no contexto do colapso da modernização. In: Geografares, 2019, p.137.


[12] Pierre Clastres já havia observado que, por exemplo, usar a categoria economia e trabalho para descrever as socialidades ameríndias é um equivoco tanto quanto utilizar a categoria de Estado. Uma “antropologia econômica” só faz sentido quando a economia emerge como uma esfera social autonomizada, à qual pertence o “mundo do trabalho” em oposição a outros momentos da vida social e que possui suas próprias “leis ”. A economia como esfera autônoma, contudo, é um fenômeno especificamente capitalista. Nesse sentido, observa Clastres: “Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, as sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusarem a economia”, assim como recusam a emergência do Estado como poder separado. Recusar a economia, o trabalho e o Estado são duas formas de impedir que algo como o capitalismo emergisse. Clastres, P. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosacnaify.


[13] Sobre a luta contra o trabalho na Autonomia Italiana, ver TIQQUN. Isto não é um programa. São Paulo: GLAC, p.59: A autonomia é “também a autonomia dos operários em relação ao seu papel de operários: recusa do trabalho, sabotagem, greve selvagem, absenteísmo, estranhamento das condições de exploração e da totalidade capitalista”.


[14] Uma crítica contra o postulado antropológico da “troca”, reproduzido em teorias antropológicas como o estruturalismo, já havia sido feita por Gilles Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo.



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agnes de oliveira é travesti, autonomista, mãe, mestra em filosofia pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e doutoranda em Ética e Filosofia Política (UFRN). Faz parte do coletivo Quilombo Invisível. Atualmente dedica suas pesquisas na área da filosofia contemporânea, com ênfase em gênero, questões raciais, trabalho, encarceramento em massa e guerra social.


Brava é um espaço de construção de comunidades a partir do compartilhamento de conhecimento. Os caminhos desenhados pela Brava passam por cursos, oficinas, aulões, rodas de conversa e outras iniciativas educacionais, centradas em discussões relevantes sobre raça, classe, sexualidade, gênero, colonialidade e pela formação de um pensamento crítico no geral. Nosso objetivo principal é criar um espaço seguro e acolhedor, que possibilite a partilha de saberes subversivos, estimule afetos e a ampliação de conexões, vivências, perspectivas e ideias, através de atividades idealizadas e facilitadas por sujeites que moldam suas vozes a partir do enfrentamento ao sistema cis-hetero-patriarcal-eurocêntrico-branco.


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