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 CONTEÚDO 

O TRABALHO COMO NEGAÇÃO SUBJETIVA - Comitê Erótico Revolucionário

Atualizado: 9 de jul. de 2020


Legenda: escolhemos essa imagem para ilustrar a situação irônica da própria fotografia, em que diversas mulheres, de classes, cores e etnias diferentes celebram a controversa exploração que costumam receber com as propostas de trabalho subjetivo gratuito do fotógrafo Spencer Tunick. Esta fotografia pertence a Lucas Jackson. Para comemorar o dia do trabalho e, ao mesmo tempo, ir contra trabalhar, nós publicamos hoje o primeiro capítulo do livro-manifesto PARA NOS LIBERAR DO TRABALHO, do Comitê Erótico Revolucionário da França, traduzido por Rachel Pach, qual lançaremos neste ano junto a outros textos dos mesmos não-autores. O texto nos oferece um aprofundamento teórico da crítica ao "trabalho", cada vez mais experimentado como um sofrimento intolerável, mais precário e nunca desejável e reafirmado como único horizonte insuperável de nosso tempo.



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O trabalho é uma questão de honra, de gloria, de valentia e de heroísmo.

Stálin, inscrito no frontão dos campos de trabalho bolcheviques


A existência no interior do capitalismo se apresenta como o eterno retorno do trabalho: da escola ao túmulo. Transporte-trampo-repouso! [I] Mesmo que a gente escape por um momento, passamos a vida fazendo com que o outro trabalhe. Trabalhar, fazer trabalhar, eis o nosso destino neste mundo que se tornou um imenso campo de trabalho, cada um sendo ao mesmo tempo trabalhador forçado e carrasco, enquadrados por um exército de burocratas com o lema: “o trabalho liberta” (lema inscrito no portão de Auschwitz). Nas eleições, as alternativas são: “Trabalho, República, Economia”, ou “Trabalho, Família, Pátria”.


Secundaristas, estudantes, trabalhadorxs, desempregadxs... somos vistos como carnes de abate para o trabalho!


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O trabalho como sofrimento


O ato de alienação da atividade humana, o trabalho, é a atividade que é sofrimento. Karl Marx, Manuscritos de 1844


O agravamento contínuo da crise estrutural do capitalismo (além das questões de financeirização, transnacionalização e da gestão neoliberal), que vem acontecendo ao longo dos últimos 40 anos, leva simultaneamente à intensificação e à precarização continuas do trabalho. Temos, de um lado, uma massa crescente de desempregados detonados por uma sociedade-do-trabalho-porém-sem-trabalho; e de outro, uma organização neocapitalista do trabalho que se reestrutura continuamente, exercendo uma enorme pressão sobre seus assalariados, organizando guerras de todos contra todos no interior de uma mesma empresa, culminando numa imensa acumulação de sofrimentos. O trabalho é, de cabo à rabo, um sofrimento intolerável, e essa milésima reforma trabalhista contribui ainda mais para esse sofrimento, aumentando o tempo de trabalho permitido - mas não seria o sofrimento algo estrutural nesse caso? Trabalhar é sofrer todo dia por ter que se vender como mercadoria produtora de bens-mercadorias ou serviços-mercadorias, ou ter que voltar para casa no fim do dia como mercadoria que não encontrou comprador e ser depreciada(o) por não ser um(a) escrava(o) rentável do capitalismo. Trabalhar é sofrer por ter que obedecer a um imperativo absurdo, aviltante, destrutor, que é o de produzir mercadorias, não importa quais sejam elas, apenas que seja de maneira rentável, a qualquer custo físico, psíquico ou ecológico. Trabalhar é sofrer por ter que obedecer aos chefes e/ou aos clientes, se submeter aos assédios, às humilhações e outros sofrimentos. Trabalhar é sofrer por ter que executar este imperativo em condições desgastantes fisicamente, daí o stress, as depressões, as deformações físicas, os acidentes de trabalho, os burn-out, os suicídios. Trabalhar é ter que cumprir uma atividade que geralmente tanto faz, que é absurda e/ou destrutiva. Trabalhar é sofrer por ser reduzida(o) a um robô, uma máquina, um escravo. Trabalhar é sofrer por voltar para casa vazio, por não poder viver plenamente. Trabalhar é sofrer por estar em perpétua guerra psíquica com suas irmãs e irmãos por causa da concorrência capitalista. Trabalhar é sofrer por estar a todo segundo ameaçada(o) de ser eliminada(o) economicamente, por obsolescência produtiva. Trabalhar é sofrer de uma precariedade permanente. Trabalhar é sofrer por ser tratado como “capital humano”, “fator humano”, “hora-homem”, “vagabundo”, “corpo-mole”, etc. etc. etc. Trabalhar é sofrer como um soldado numa guerra permanente, por ser sacrificada(o) em nome da Pátria econômica. Trabalhar é sofrer pelo aumento contínuo de todo esse sofrimento, promovido pelas incessantes reformas trabalhistas. Trabalhar é sofrer. O sofrimento é o trabalho. A lei “TRABALHE!” contra a qual nos levantamos na última primavera é apenas o aprofundamento mais recente do trabalho no sentido de seu sofrimento intrínseco. Até aqueles que apreciam o trabalho que têm sabem muito bem que realizariam com mais prazer suas tarefas se estas não estivessem submetidas aos constrangimentos econômicos; sabem também que, se eles têm condições de escapar dos trabalhos penosos, estruturalmente outros não têm a mesma escolha. “Nunca trabalhe![II] significa portanto: nunca aceite este mundo onde se deve vender seu tempo de existência, sua atividade humana, seu fazer, como uma mercadoria, como uma mercadoria que produz outras mercadorias e dinheiro, como mercadoria que produz um mundo de sofrimento – e de morte.


Nós somos feitos para viver, para amar, para desejar, para criar e não para produzir mercadorias e nos vender como tais.

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O trabalho como alienação


O trabalhador é uma mercadoria. Sua atividade não é uma livre manifestação de sua vida humana; é, antes, uma mercantilização de suas forças, uma alienação. O “trabalho” é, em sua própria essência, a atividade não-livre, inumana, associal.

Karl Marx, F.List e a burguesia alemã, 1845


O trabalho é uma alienação, não há trabalho não-alienado porque o trabalho trata especificamente do ato de se vender (se alienar) como mercadoria, de se despossuir de si em benefício de um funcionamento estranho a si (alien), que é a produção de mercadorias. Trabalhar é se tornar estranho (aos seus próprios desejos) em benefício de uma atividade-mercadoria. Trabalhar é abstrair-se de si, é esquecer-se de si, é colocar-se a si mesma(o) entre parênteses enquanto se encaixota coisas, se programa coisas ou se adestra coisas (dependendo se você for caixa de mercado, técnica(o) informática(o) ou professor(a)).


O trabalho é uma despossessão da própria vida em benefício de um funcionamento maquínico de produção de mercadorias e de valor; é uma venda de si, de sua existência, de seu tempo de vida, de sua atividade, de seu fazer, como mercadoria. É uma escravidão livre, livre no sentido liberal de que “se pode” recusar a trabalhar, diferente dos escravos, porém, tendo sido despossuídos de toda possibilidade de existência fora do Mercado, para sobreviver é preciso trabalhar. Assim como os escravos, nós também somos compensados: eles eram com os meios físicos, nós com dinheiro. Assim como com os escravos, nos enviam forças de repressão quando nos revoltamos. Seja vendendo as horas de nossa atividade dita “autônoma”, seja de modo “assalariado” ou “uberizado”, nós somos reduzidas(os) à mercadorias produtoras de mercadorias (não importa quais sejam, nem como são feitas, não importa a qual custo humano, social, ambiental, desde que elas continuem circulando).


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O trabalho como prostituição constrangida


Com ou sem cafetinagem, nós somos todas(os) prostituídas(os), na medida em que vendemos nossos corpos: cérebro, músculos, sexo, pouco importa. O trabalho é portanto uma “prostituição generalizada do trabalhador”, dizia Marx, seja ao seu vizinho, a um indivíduo qualquer, um pequeno patrão ou a uma multinacional. Esta prostituição é constrangida, pois ela é o único meio de sobrevivência, alienando nossa atividade contra a atividade alienada de outro, em uma sociedade capitalista que se apropriou de todo o conjunto dos meios de existência. Nós devemos assim trabalhar sob a pena de miséria social. O trabalho é portanto o eterno retorno de uma prostituição constrangida, que tem como “recompensa” um miserável consumo de mercadorias quaisquer, uma sobrevivência que serve de franquia para as superproduções do capital. Só que essa prostituição não é fundamentalmente interpessoal, mas sim uma submissão “às forças interpessoais do mercado” (segundo o que diria um economista ultra capitalista), ou “às leis da economia” (como diria um economista planejador), ao capitalismo como o carro (ou a bola de ferro ou o trem) da acumulação de capital que passa acelerado por cima de tudo, destruindo tudo em seu caminho, como um “sujeito-autômato” (Marx) e cego. Nós temos que trabalhar de modo cada vez mais acelerado em razão do que dita um padrão mundial de produtividade sempre crescente.


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O trabalho como reificação e como negação


Nosso labor não é uma resposta qualitativa às nossas necessidades particulares (que envolvem necessidades coletivas), mas sim uma produção maquínica de mercadorias e de dinheiro, ou (antes) uma aquisição maquínica de saberes formatados. Nessa produção-aquisição maquínica, nós nos tornamos robots (essa palavra quer dizer “trabalhador” em tcheco), indivíduos reduzidos à maquinas. O trabalho é assim uma reificação, uma coisificação de si, como coisa produtora de mercadorias, “capital humano” (expressão que já podíamos encontrar num discurso de Stálin de 1935), ou “recursos humanos”. A reificação produz, do mesmo modo, subjetividades reificadas em variáveis medidas: que pensam sua existência em termos de trabalho, de carreira, de promoção e de meios maquiavélicos de conquistas; ou que vê nesta sociedade do trabalho o horizonte intransponível da humanidade, defendendo com corpo e alma a esta sociedade diante das eleições, dos debates políticos e das guerras. Esta reificação da nossa subjetividade, esta transformação de nós mesmos em meios e instrumentos de produção de coisas mortas, esta destruição do mundo da vida por causa de uma finalidade absurda, tudo isso constitui uma negação dos nossos desejos, de nossa subjetividade viva – ou seja: de nós mesmas(os).


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Notas I - Métro, boulot, dodo ! II - “Ne travaillez jamais!”, famosa inscrição que Guy Debord fez nos muros de uma rua de Paris em 1953.


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Comitê Erótico Revolucionário é um grupo anônimo francês que vem escrevendo e publicando texto-manifestos de caráter autonomista que se articulam entre as bases da teoria crítica e da política radical insurrecionaria. O primeiro livro do grupo foi publicado em 2017 pelos nossos amigos da Editions Divergences, Liberons-nous du travail. Rach Pach é geógrafa.

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