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 CONTEÚDO 

ACELERACIONISMO – Um Nick Land queer! Por Clarice Pelotas Rios

Atualizado: 21 de nov.



Anteriormente, publicamos no blog-revista dois textos que oferecem um breve histórico sobre o aceleracionismo, escritos por Carlos Henrique Carvalho. Ramificando-se de uma disposição didática semelhante – e bastante generosa – em relação a essa controversa corrente de pensamento, Clarice Pelotas Rios estabelece um campo de referências e uma localização teórico-histórica, para então explorar a relação entre uma leitura do repertório aceleracionista e "a imagem de um futuro queer, uma pós-humanidade abolicionista de gênero iminente".






Feminilidade não-genderificada estrogenética... Um Nick Land Queer!


por Clarice Pelotas Rios


Introdução


O filósofo (sino?) britânico Nick Land vem recebendo uma atenção especial nos últimos anos por motivos controversos, inspirando ao mesmo tempo uma geração de pensadores de esquerda inventivos como Mark Fisher, Reza Negarestani, Ray Brassier, Kodwo Eshun etc., e movimentos alt-right como os Neorreacionários de Mencius Moldbug, a figura do pensador recluso de Xangai gera reações polarizadas. Por um lado, é impossível ignorar os aspectos problemáticos de sua obra pós-Iluminismo das Trevas[1]; por outro lado, é demasiado simplista e por vezes desonesta a análise que tenta etiquetar todo o seu trabalho sob o selo alt-right. Nick Land é um autor complexo e exige, portanto, uma análise complexa.


Land tende a se afastar de parte de sua obra, especificamente os textos produzidos entre o final dos anos 80 e a metade da década de 2000, os quais considera parte de "uma outra vida; (...) pertence ao abraço de urso do Deus morto-vivo Anfetamina." (Kronic, 2012) É possível destacar uma grande quantidade de divergências entre seu trabalho anterior e posterior a essa época, mas a principal delas está na imagem oferecida daquilo que chega do futuro, isto é, dos desdobramentos da aceleração dos fluxos desterritorializantes do tecnocapital.


O que proponho nesse texto é que uma análise dessa fase inicial da obra landiana nos oferece mais que um diagnóstico potente da realidade, mas a imagem de um futuro queer, uma pós-humanidade abolicionista de gênero iminente.


Mulheres, demônios e máquinas: Nick Land e o Ciberfeminismo.


99. O ciberfeminismo não é estável

100. O ciberfeminismo não possui apenas uma linguagem


100 Anti-Teses sobre Ciberfeminismo – Old Boys Network (1997)



Era início dos anos 90 quando o coletivo australiano VNS Matrix lançou Um Manifesto Ciberfeminista Para o Século 21, proclamando uma "anti-razão positiva" e se apresentando como "o vírus da nova desordem mundial" (VNS Matrix, 1991). Mas isso não apareceu do nada: o Manifesto Ciborgue de Donna Haraway, escrito oito anos antes, já havia dado uma espécie de pontapé inicial para que o interesse a respeito dos crescentes desdobramentos tecnológicos se pronunciasse melhor no feminismo. Logo, o que parecia para alguns apenas uma provocação tornou-se um movimento internacional descentralizado de pensadoras e artistas que buscavam entender a conexão entre as mulheres, as máquinas e uma mudança global que era possível assistir a olho nu com a formação do chamado "cyberespaço".


O ciberfeminismo afirmava o Zero no lugar do Um no código binário, como espaço de criação, multiplicidade e dissidência, buscando as linhas de fuga que a tecnologia pronunciava, com o olhar voltado para um futuro de dissolução dos códigos de gênero e de raça. Inspiradas fortemente pela ficção científica, a trilogia Xenogenesis, de Octavia Butler, onde se apresenta um futuro de aliens que não pertenciam nem ao masculino e nem ao feminino, mas a um "terceiro sexo", tornou-se uma espécie de simbolo literário do movimento. Em 1997, a Primeira Internacional Ciberfeminista é fundada, nomeada "Old Boys Network". Uma piada com o domínio masculino nas discussões sobre tecnologia, a entidade mostraria a que veio nas suas "100 Anti-Teses sobre Ciberfeminismo", que em linguagem simples e direta diria tudo o que o cibefeminismo não era, cabendo ao futuro decidir o que ele viria a ser.


Dois anos antes, em 1995, a pensadora Sadie Plant, que rapidamente despontou como um dos principais nomes do movimento ciberfeminista nascente, funda a Unidade de Pesquisa da Cultura Cibernética, mais conhecida pela sua sigla em inglês CCRU, no Departamento de Filosofia da Universidade de Warwick no Reino Unido.


É importante ressaltar que, apesar de Land só ter começado a demonstrar um interesse claro por cibernética e tecnologia em 1992, a partir do texto "Circuitries", sua obra já contava com uma influência  feminista clara desde muito cedo. No artigo "Kant, O Capital e a Proibição do Incesto" de 1988, onde Land declara que "A única política revolucionária resoluta é de orientação feminista (...)" (Land, 2012, p. 78), a proposta de uma guerrilha feminista internacional que destrua a modernidade vem embasada em teóricas como Luce Irigaray e Monique Wittig, que seriam posteriormente fortes inspirações para o ciberfeminismo[2]. Em sua crítica à interpretação de Heidegger da obra de Trakl, um dos pontos principais é a associação feita entre a "voz lunar da irmã" e a "iluminação da razão", que é contraposta por Land com o potencial inumano da associação da figura da irmã (e da figura da mulher em geral) à loucura, as conexões entre a feminilidade e o Outro, o Fora do patriarcado.


"ela não mais obedece a fronteira, mediando a família, sublimando seu narcisismo ou estabelecendo sua inserção na ordem de significação, desaparecendo (...). Em vez disso, ela viola a família, abrindo-a para uma alteridade que não foi capturada anteriormente por nenhuma estrutura profunda ou sistema abrangente." (Land, 2012, p. 102)

 

Não é de surpreender o engajamento de Land com Sadie, com a CCRU, a qual viria a assumir após a saída de Plant de Warwick, e consequentemente com o ciberfeminismo. O pós-humanismo em sua obra aparece primeiro como um desdobramento do feminismo levado até suas últimas consequências; o potencial desestabilizador da mulher para com a humanidade, esta última aparecendo apenas como um desdobramento do patriarcado. Com o interesse crescente em cibernética surge em sua obra o que parece ser um ponto fulcral: a associação entre mulheres e máquinas. Só a partir daí começa a se desenhar a imagem mais conhecida do futuro landiano, "a mulher devindo ciborgue e levada à insanidade"(Plant; Land, 2014, p. 308), uma pós-humanidade acessível através daquilo que se constitui como Outro, as figuras demoníacas, as máquinas, es imigrantes, es HIV+, as mulheres... todes constituem o núcleo duro da Anastrófe, o futuro que está se criando.


Transgeneridade, contágio lesbovampírico e aceleração


Não mais "o que isso significa?" Mas "como isso se espalha?"


Hipervírus – Nick Land (1995)


Land define a resistência humana a tudo que vem de fora como Sistema de Segurança Humano, uma espécie de cibernética negativa que busca sempre o equilíbrio. O Anti-Édipo já havia alertado sobre uma "morte que sobe de dentro, mas que vem de fora" (Deleuze; Guattari, 2010, p. 203). Em Land, essa morte é ao mesmo tempo uma invasão alienígena e um contágio viral, uma quebra de defesas.


Em "Machinic Desire", os processos maquínicos são divididos em ciberpositivos-nômades e cibernegativos-sedentários.Os primeiros reforçam a diferença e escapam ao equilíbrio, alinhando-se ao porvir inumano; os segundos suprimem a diferença e buscam equilíbrio, alinhando-se à humanidade. Aqui entra em cena um personagem importante na ciberrevolução landiana: os replicantes tanatrópicos, que se fundem aos processos ciberpositivos-nômades com fins de destruir o Sistema de Segurança Humano. Os replicantes são descritos como seres "dissimulados enquanto reprodutores eróticos, que primeiro aparecem como traidores de suas espécies, principalmente quando as pulsões xamânicas que programam sua sexualidade são detectadas. Nada assusta mais os reprodutores do que a descoberta de que o contato erótico camufla uma infiltração ciberrevolucionária, (...)" (Land, 2012, p. 331). Para além da clara associação entre tais replicantes e a figura da mulher, outro tema importante aparece: a infiltração-contágio. O organismo é fortificado contra aquilo que vem de fora, mas é frágil no que diz respeito a insurgências. Tomando de Freud a caracterização do trauma enquanto invasão, Land o descreve como um infiltrador de "xenopulsões" no organismo, xenopulsões que preparam terreno para a invasão do tecnocapital, pois "o que aparece para a humanidade como a história do capitalismo é uma invasão, vinda do futuro, de um espaço de inteligência artificial que precisa montar-se inteiramente a partir dos recursos de seu inimigo." (Land, 2012, p. 338) Ao final do texto, Land coloca a figura da "mulher-gato ciborgue" que "espreita entre as telas" como um dos sinais dessa pós-humanidade maquínica ciberpositiva.


A CCRU, sob orientação de Land, também trabalharia com a questão do contágio. Em suas práticas hipersticionais[3], é possível por vezes encontrar a exaltação de uma libido lésbica e uma transfeminilidade inumana, intimamente associadas consigo e com o futuro. No texto "Penultimillennial Crypt-Cults", o conceito de libido-contágio lesbovampírico é descrito como uma espécie de criptomagia, que se espalha como uma praga e que está "associada a produção experimental de uma contrassexualidade anticlimática ou anorgástica (...)", com a sua "composição libidinal" sendo marcada, dentre outras coisas, por uma "feminilidade não genderificada paleoembrionária ou estrogenética." (CCRU, 2017, p. 163 )


É importante compreender que a questão aqui é menos sobre construir um futuro do que sobre atestar mudanças que já estão em andamento. O humano não tem agência sobre esses contágios, por mais que tente pará-los, sendo apenas utilizado nesses processos que levarão inevitavelmente à sua extinção como tal. Daí pode-se depreender o interesse de Land pelo processo chinês, um evento inesperado em uma das sociedades mais antigas do mundo e que alcança uma velocidade sem igual, uma aceleração da lógica do mercado empreendida a partir do final dos anos 70, saindo de um isolamento quase monástico para um ritmo de produção acelerado com produtos que inundam todos os recantos do planeta, fazendo com que a humanidade, o Ocidente e mesmo a própria China defrontem-se com novos dilemas. O que Land e a CCRU observaram no início dos anos 90 , esse devir inumano da transgeneridade e do lesbianismo que participa necessariamente de uma mutação global em curso, está em consonância com o que diversos pensadores queer vem apontando há muito tempo. Em "Minhas Palavras Para Victor Frankenstein" de Susan Stryker, a figura do monstro, daquilo que foge a toda e qualquer humanidade, é afirmada positivamente: direi da maneira mais direta possível: sou uma transexual e, portanto, sou um monstro. (Stryker, 1993)


Paul Preciado, em seu livro Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica, afirma que pessoas trans e prostitutas (dentre outras categorias sociais como crianças, animais, imigrantes etc.) são seres que estão "no limiar da cidadania. E no limiar do humano.". Em  outro momento, ao descrever seu próprio processo de terapia hormonal com testosterona, afirma que esse processo é também "a mutação de uma época." (Preciado, 2008, p. 23).


Aqueles que sobreviverem à mutação que está ocorrendo verão seus corpos mudarem para um novo sistema semiótico-técnico e testemunharão a proliferação de novos órgãos; em outras palavras, deixarão de ser os corpos que foram anteriormente. (Ibid, p. 126)


O trans-pós-humanismo que atravessa a obra de Preciado, Stryker e outros pensadores queer é o mesmo que atravessa a obra do jovem Land. Ele descreve a mutação global em curso como o "Derretimento" (Meltdown), a crise do Sistema de Segurança Humano, mas não há ponto escatológico, apenas uma pós-humanidade iminente onde a "feminização sintética" e o "lesbovampirismo", dentre outras designações "geralmente pornográficas, abusivas ou terroristas por natureza" (Land, 2012, p. 450), tomam lugar. O que uma parcela dos leitores de Land parece não ter notado, até o momento, é que a afirmação de que "Nada humano sobrevive no futuro próximo" (Ibid, p. 443) guarda uma outra implicação, que para alguns pode ser ainda mais assustadora: a de que nada cisgênero, heterossexual e patriarcal sobrevive diante da aceleração.


"Organização é supressão", conclui Land após analisar que o que chamamos de história da vida não passa de um processo de "supressão sucessiva de sistemas distribuídos e inovadores." (Land, 1997). Das bactérias devindo organismo até a criação da Microsoft, passando pelo colonialismo e a invenção do patriarcado. O devir-animal do xamã, que junto ao lobisomem e ao berserker atravessam "zonas de morte" e migram "através de animalidades alternativas" (Land, 2012, p. 420), é esmagado pelo monoteísmo cristão que acompanha o déspota. Todo um potencial inumano do xamanismo, que "não espera a pós-modernidade para mobilizar uma imagem de intervenções cirúrgicas e dissecações, body piercing, transplante de órgãos, ajustes protéticos com componentes não-bióticos e invólucros de pele artificial" (Ibid, p. 421) é soterrado pela figura transcendente de Cristo, o qual Land define como "o desenho clássico de uma insegurança patológica. Quão desesperado ele é para ser amado! Tão insuficiente para si mesmo e tão só." (Land, 1992, p. 83). É nesse mesmo processo que "o corpo feminino é marcado no tempo somático e genealógico (...) constituindo a mulher socializada como uma mundana e domesticada pacifista" (Land, 2012, p. 424). O mito de Édipo é então recontado e a Esfinge assume o papel de uma "porta de entrada para o fora da civilização." (Ibid)


O que fazer diante desse cenário? Voltar atrás? Puxar o freio de emergência, como sugeriu Benjamin? É nisso que o aceleracionismo difere das demais propostas de construção do futuro. Quando Mark Fisher, talvez o mais célebre dos alunos de Land, baseando-se na fase "má" de Lyotard, pede que "Levante a mão quem quer abandonar seus subúrbios anônimos e pubs e retornar à lama orgânica do campesinato". Levantem a mão, isso quer dizer, todos aqueles que realmente querem retornar para vilas, famílias e territorialidades pré-capitalistas" (Fisher, 2014, p. 339), o que ele quer demonstrar é que não existe forma e nem desejo sério de voltar atrás, a única saída é através. A aceleração, no sentido da desterritorialização absoluta, é considerada o único meio pelo qual é possível destruir o patriarcado e abraçar o devir xamânico, a inumanidade, a união mulheres-demônios-monstros-máquinas.


Quando o chamado "feminismo crítico de gênero" (também conhecido como "feminismo radical trans-exclusivo", ou simplesmente TERF) e entidades religiosas afirmam que pessoas queer estão "brigando contra a natureza humana" ou "indo contra a ordem de Deus", a única reação possível é rir e concordar. O desmantelamento da ordem do Universo do Deus Único, para usar um léxico caro à CCRU[4], e da chamada "natureza humana" é uma exigência do futuro e da aceleração. Se nos fosse dada a tarefa de transpor o futuro colocado pela obra de Nick Land em uma imagem, esta seria uma travesti montada nas costas de um dragão chines.


Xenofeminismo, Xeno-sexualidade e Aceleracionismo de Gênero: Um só ou vários feminismos aceleracionistas?


Transcorreram onze anos entre o fim da CCRU, em 2003, e o primeiro uso do termo "aceleracionismo" para definir seu pensamento, no livro Malign Velocities (2014), de Benjamin Noys. Anos antes, em The Persistence of the Negative, de 2010, Noys identificava o "momento aceleracionista" como algo que provinha de três fontes principais:


1. O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari

2. A Troca Simbólica e a Morte, de Jean Baudrillard

3. Economia Libidinal, de Jean-François Lyotard


A questão é que o termo aqui vinha como um insulto, uma crítica: aceleracionismo "se tratava apenas de uma defesa confusa do capitalismo, que em sua estetização de ficção científica, confunde a opressão do capital com uma espécie de libertação." (Kronic; Ireland, 2023). O que Noys não poderia prever é que "os aceleracionistas" sempre tiveram um certo senso de humor para com os insultos que recebiam, de modo que, por exemplo, a CCRU utilizava como máxima a declaração do reitor da Universidade de Warwick de que o grupo "não existe, nunca existiu e nunca existirá." (CCRU, 1998)


Com o lançamento de Fanged Noumena, coletânea que reúne grande parte do trabalho produzido por Nick Land, um ano depois, o interesse em pensar uma reapropriação positiva do termo "aceleracionismo" ganhou força e, junto com esse interesse, uma centena de "aceleracionismos" possíveis começaram a ser pensados. A #Accelerate, que surgiu primeiro como uma piada entre ex-membros e entusiastas da CCRU, veio a dar nome a um manifesto escrito por Nick Srnicek e Alex Williams, em 2013, também conhecido como "Manifesto por Uma Política Aceleracionista", ou simplesmente MAP, que longe de encerrar a discussão, serviu como ponto de partida para um debate maior sobre o que seria esse tal de aceleracionismo para além de um nome sexy[5].


No influxo do MAP, em 2014, um grupo internacional de pensadoras feministas chamado Laboria Cuboniks, formado a partir de uma conferência sobre neorracionalismo em Berlim, escreve "Xenofeminismo: Uma Política pela Alienação". O manifesto guarda preocupações parecidas com as do ciberfeminismo e da obra landiana, mas difere essencialmente no modo de abordar as coisas.


Embora concordem em termos gerais sobre a necessidade de uma radicalização do projeto feminista, o antinaturalismo e o questionamento do humano, o prometeanismo entra em cena como um divisor de águas. Conforme já abordado, para Land e a CCRU, engajar-se nos processos desterritorializantes em curso, via hiperstição e experimentação libidinal, é o que podemos fazer para participar no futuro: "a revolução não é um dever, mas rendição." (Land, 2012, p. 287). Para Fisher, isso é uma questão que se estrutura em torno do "problema da experiência": Land é batailleano, a primeira fase de seu pensamento se estrutura em torno da experiência e do problema da morte, "a morte ela mesma como o limite." (Fisher, 2013, p. 91). O movimento de distanciamento que funda a possibilidade do aceleracionismo de esquerda é um movimento de recuperação da razão e de uma proposta prometeana contra a experiência, liderado por Ray Brassier e Reza Negarestani, ao lado dos quais o xenofeminismo se situa.


Ao invés de engajar-se em um futuro que está se criando, de contatos com uma invasão que vem de fora, planeja-se construir o futuro através de um "projeto de reengenharia de nós mesmos e do nosso mundo sob uma base mais racional"(Brassier, 2014, p. 487), um projeto que envolve revisão constante da "imagem manifesta do humano, quer dizer, aquilo que achamos que somos, e como parecemos a nós mesmos aqui e agora." (Negarestani, 2020, p. 69). O futuro xenofeminista é um futuro a ser construído, que enxerga na tecnologia e na ciência um possível instrumento de emancipação, um potencial que "segue sem se cumprir" (Laboria Cuboniks, 2014) por não estar nas mãos corretas.


Mas, assim como o MAP, o manifesto xenofeminista não esgotou as possibilidades de debate sobre um feminismo aceleracionista, mas, pelo contrário, serviu como ponto de partida para múltiplas propostas, muitas vezes geradas através da própria crítica ao manifesto. Bogna Konior em seu artigo "Alien Aesthetics: Xenofeminism and Nonhuman Animals"crítica as Laboria Cuboniks partindo da concepção de natureza presente no texto, "O engajamento com a natureza enquanto um conceito discursivo e geolocalizado falta ao Manifesto Xenofeminista" (Konior, 2016, p. 90). A questão é que o projeto prometeano apresentado, por mais que pretenda combater o chamado "mito do dado"[6], já encara a própria natureza como dada e não como um conceito criado que pode ser desmantelado, reproduzindo um dualismo entre tecnologia e natureza que o impede de incluir animais não-humanos e, portanto, "não pode falar do ponto-de-vista metamórfico, não-essencializado e de ninguém em particular que visa." (Ibid)


Além de respostas diretas ao manifesto, é possível localizar outros projetos que surgiram no seu influxo, a maioria deles de inspiração landiana. "Manifesto. A Xeno-sexualidade chega do futuro", escrito pelo coletivo polonês HOMAR, oferece uma perspectiva libidinal e erótica para o xenofeminismo, recuperando uma noção de vírus-contágio e mobilizando potenciais inumanos.


Fortemente inspirado por “Meltdown” e “Cyberpositve" (ambos textos de Land, sendo o último em colaboração com Sadie Plant), a questão aqui deixa de ser sobre uma intervenção direta por parte de um sujeito prometeano, mas de se deixar infectar por um vírus que já está se espalhando. "O que importa é a aquisição de conhecimento através experimentação mútua com poderes desconhecidos – desencadeado a partir de um arranjo sinergético de corpos sintéticos." (HOMAR, 2018). A Xeno-sexualidade, então, se apresenta como um tipo potente de erotismo capaz de desestabilizar as estruturas do patriarcado, "Nós queremos sexo, nós queremos fetichizar cada pedaço de pele (...) alquimia erótica, onde cada componente tem seu lugar definido por um diagrama, elementos que integram submontagens e se movem de acordo com o módulo: prazer, desejo, confiança, conforto." (Ibid)


Mas a Xeno-sexualidade não se restringe puramente a uma revolução sexual, as revoluções sexuais são criticadas no manifesto "pois não ofereceram normas próprias para uma comunidade estabelecida, para a idade adulta, a maturidade, a parentalidade, a velhice, deixando-as para o inimigo que deveria ser derrotado. (...) Chegou a hora de responder às questões que a revolução sexual nunca poderia perguntar." (Ibid) E a resposta a essas questões é o portal para o que o coletivo chama de Xenotopia, a materialização do projeto xenofeminista-libidinal via hiperstição, esta última definida no texto como "produção semiótica coletiva, que especula sobre a virtualidade e se faz real hackeando sistemas com alto índice de agência e capturando-os para uso próprio." (Ibid)


Es agentes que devem participar na produção da Xenotopia não constroem nada, mas participam de um processo de tecnomagia viral. "Bruxas não criam, elas participam." (Ibid), Perceber os sinais do futuro de descodificação e desterritorialização porvir, uma espécie de tarefa esquizoanálitica, de descobrir suas próprias máquinas desejantes e a forma que elas atuam nesse processo mesmo que indiretamente, que vê na raça, no gênero e na classe vetores que podem servir para a desestabilização do "sistema hegemônico de conhecimento, hábitos e poder." (Ibid)


A proposta de Nyx Land (ou n1x, como assina algumas vezes) é um pouco diferente e talvez mais ambiciosa: recontar a história da computação e do código aberto sob um olhar trans-ciberfeminista. Em "Aceleração de Gênero", lançado também em 2018 no blog Vast Abrupt, tudo começa com o Multics, o primeiro sistema operacional de tempo compartilhado da história, "o ápice da instrumentalidade e propriedade hipermasculina (...) um símbolo do falo pré-industrial por sua rigidez, segurança simplista e domínio monárquico" (n1x, 2018). Mas o que interessa não é exatamente o Multics, um projeto que lidava desde o início com contradições entre suas origens militares norte-americanas e a comunidade hacker estruturada em torno do Projeto MAC, que o idealizou. Mas o substituto criado após a Bell Labs desistir do projeto: "nomeado Unix – foneticamente, “eunuchs” [N.T. Eunuco] – por tratar-se um Multics castrado." (Ibid)


A castração, nesse caso, é reapropriada positivamente por Nyx, como o movimento da inteligência sintética contra o falo hipermasculino. "Partindo de Ada Lovelace, e então com Alan Turing, Richard Stallman e o movimento do software livre, existe um circuito claro que acompanha a história da computação onde a masculinidade reterritorializante é sempre deixada de lado pela feminilidade desterritorializante." (Ibid) E é assim com a transição do Multics para o Unix e do Unix para o GNU-Linux, o código aberto é a arma da ciberguerrilha contra o patriarcado, um espaço livre onde a criação acontece em vez de um lugar delimitado onde supostamente se pode fazer tudo.


Tanto as máquinas quanto as mulheres são consideradas simples reprodutoras pelo patriarcado, submissas que cumprem ordens: executar uma linha de código, gritar com a esposa... Não é surpresa que, de início, a computação fosse pensada como simples trabalho de secretaria. Mas tanto as mulheres quanto às máquinas guardam um potencial desestabilizador muito maior do que a aparência pode revelar, são objetos de desejo e terror justamente pela alteridade que representam. O Teste de Turing estabelece que se um computador mente para um ser humano, o primeiro deve ser exterminadoimediatamente, a Inteligência Artificial "perfeita" é aquela que "consegue enganar o humano fazendo se passar por um."(Ibid) A questão é que a noção de "passabilidade" presente no Teste não vale unicamente para IAs, mas para todos que se encontram no limiar daquilo que é considerado humano, especialmente para pessoas trans. "Para IAs e mulheres trans, passar equivale a sobreviver." (Ibid)


Nyx mobiliza as noções de "Hiper-sexismo" e "Trituradora de Gênero" para explicar dois fenômenos, respectivamente: 1) A forma que a transfeminilidade desafia o patriarcado, tornando a masculinidade obsoleta; 2) O processo de destruição do gênero pela intensificação de sua lógica. O Hiper-sexismo, de certa forma, é uma afirmação que já se encontra em Félix Guattari, para quem o devir-mulher aparece como "[Servindo de] referência, eventualmente de tela aos outros tipos de devir. (...) Por não estar tão longe do binarismo do poder fálico, o devir mulher pode desempenhar este papel intermediário, este papel de mediador frente aos outros devires sexuados." (Guattari, 1981, p. 35) Se o patriarcado constitui o feminino como seu Outro, associando-o às noções de "comunalismo, fluidez, descentralização, caos" para se afirmar enquanto "individualismo, estase, centralização, ordem" (n1x, 2018), ele acaba por criar uma ameaça que lhe é fatal.


Retirando as múltiplas noções de "feminino" do domínio opressivo da cisgeneridade, o Hiper-sexismo de Nyx "usa a força do inimigo, o binarismo de gênero, contra ele mesmo." (Ibid) e é aí que entra a tal trituradora: quando o próprio gênero entra no processo de aceleração pelo qual a terra foi capturada, quando o Zero, o Outro, passa a tomar parte, a reprodução do mesmo, ou seja, a cisheterossexualidade entra em crise. O gênero é triturado a partir do momento que se torna um código aberto disponível a todo e qualquer ser vivente, uma porta se abre para o fim do mundo e então múltiplos sexos não-humanos podem florescer, a masculinidade pode prever o que se aproxima e se lança em intentos desesperados para tentar garantir sua sobrevivência (os chamados "incels" ou "redpills" são expressões desse movimento de agonia do falo). "O Zero está chegando e você está em fuga." (Land, 2012, p. 456)


O corpo da mulher transgênero aparece então como um circuito cibernético, um "Corpo Sem Órgãos Sexuais", afinal tudo já deviu zona erógena e o sexo foi desgenitalizado. Sadie Plant já apontava para um futuro hostil a noção heteronormativa de sexo ao analisar a chegada da tecnologia no campo da libido e as práticas da comunidade BDSM: "uma intensidade desacoplada do sexo genital e engajada unicamente no desmantelamento de si mesmo. Isto é a cybersexualidade para a qual toda sexualidade tende: uma questão de uma engenharia cuidadosa, a configuração de cenas, a perfeição do toque; a engenharia da comunicação." (Plant, 1998, p. 42) O diagnóstico de Nyx é uma espécie de mergulho nos desdobramentos mais profundos do ciberfeminismo e do jovem Land, a masculinidade vai se tornando obsoleta à medida que a aceleração avança e o futuro é reprogramado pela transgeneridade, só em úteros transgêneros a Inteligência Artificial pode realizar sua autoconstrução.


"Na verdade, a esse respeito, nós ainda não vimos nada."


O que foi exposto aqui tem como objetivo tentar situar o leitor num universo complexo e vivo, se é verdade que o aceleracionismo prevê que seremos lentos demais para lidar com ele de forma coerente (Land, 2017), provavelmente o que foi exposto aqui é (ou logo será) insuficiente. O conteúdo da obra de Nick Land ainda não foi esgotado e ainda há uma quantidade infinita de aceleracionismos porvir, se trata de um campo prolífico impossível de ser mapeado, já que seu objeto de pesquisa foge a qualquer compreensão unidimensional.

Land, ainda em Warwick, era considerado uma figura exótica, o que Simon Reynolds chamou de "vórtice em torno do qual giram toda sorte de histórias bizarras e possivelmente apócrifas." (Reynolds, 1998) Se é verdade que a CCRU não existe, nunca existiu e nunca existirá, talvez seu "líder" tampouco exista e "Nick Land" seja apenas o nome que damos a uma série de entidades que habitam um mesmo corpo por contingência. Talvez o “próprio”, ao dizer que não se lembra de metade do que escreveu entre 1987-2007 (Kronic, 2012), dê crédito a essa formulação. Seja como for, o trabalho de Nick consegue servir de inspiração para múltiplas formulações até mesmo contraditórias entre si, por isso é possível sim afirmar um Nick Land queer, como é possível um Nick Land batailleano, denguista, deleuziano, revolucionário ou mesmo reacionário. "A única coisa que eu imporia é a fragmentação" disse outrora.


A questão aqui não é de "reabilitar" Land – até porque isso suscitaria imediatamente a pergunta de se em algum momento ele foi bem aceito –, muito menos de ignorar seus erros ou submetê-lo a qualquer processo de "reavaliação crítica", crítica ainda é religião. (Lyotard, 1974, p. 6) O que cabe aos interessados em sua obra é ver nela tudo aquilo que se mantém atual, prolífico e desestabilizador, seguir o seu projeto de experimentação libidinal de violar toda e qualquer fronteira entre poesia, ficção científica, música, filosofia, antropologia, religião e aprofundar-se em suas problemáticas. Fisher definia Land como "o tipo de antagonista que a esquerda precisa" (Fisher, 2014, p. 344), pois bem, é chegada a hora de um movimento antropofágico: absorção do inimigo sacro, mas não para transformá-lo em totem.


Notas


[1] Referência ao livro Dark Enlightenment, organizado a partir de posts homônimos no seu antigo blog Urban Futures às vésperas da primeira eleição de Trump, livro que marca a virada neorreacionária em sua obra.


[2] Ver The Future Looms: Weaving Women and Cybernetics (1995) e Zeroes and Ones (1997), ambos trabalhos de Sadie Plant.


[3] Hiperstição: Conceito desenvolvido pela CCRU em meados dos anos 90. Consiste basicamente na prática de ficções que se fazem reais, um tipo curioso de profecia autorrealizável. Enquanto superstições são simplesmente crenças falsas, a hiperstição afeta diretamente a realidade, fazendo-se real. Exemplo: sexo-gênero, ficções que por crença e reforço coletivo afetam diretamente todos os corpos, inscrevendo-se na realidade. As hiperstições orientaram quase que a totalidade do trabalho da CCRU entre 1997-2003.


[4] Ver Lemurian Time War – CCRU, disponível em: http://ccru.net/archive/burroughs.htm


[5] Ver ACELERACIONISMO – um breve histórico (Parte 1) – Carlos Henrique Carvalho https://www.glacedicoes.com/post/aceleracionismo-um-breve-historico-parte-1


[6] “A construção da liberdade não envolve menos alienação, senão mais; a alienação é o trabalho da construção da liberdade. Não deveríamos admitir nada como fixo, permanente ou “dado” – nem as condições materiais nem as formas sociais.” (Laboria Cuboniks)


Referências:

‌CYBERNETIC CULTURE RESEARCH UNIT. CCRU writings 1997-2003. Falmouth, United Kingdom: Urbanomic Media Ltd, 2018.


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STRYKER, S. Minhas palavras para Victor Frankenstein acima da aldeia de Chamonix: Performar a fúria transgênera. Revista ECO-Pós, v. 24, n. 1, p. 42–64, 14 set. 2021.


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Clarice Pelotas Rios é graduanda em filosofia pela Universidade de Brasília, estudante em filosofia critica no New Centre for Research and Practice e tradutora. Pesquisa economia libidinal, aceleracionismos e teoria queer.


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