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 CONTEÚDO 

E A GUERRA APENAS COMEÇOU — vídeo e transcrição de anônimo, de 2001

Atualizado: 27 de ago.




Assista aqui o vídeo completo e legendado


Como introdução, segue um curto histórico sobre o assunto do texto/filme traduzido por Victor Galdino e Cris Ambrosio, assim como os motivos de sua publicação por nós e alguns avisos para sua boa leitura.


O aparecimento deste pequeno excerto de lampejos conscientes acerca do presente inabitável ocorreu em 2001, pouco tempo depois de dois grandes eventos que abalaram estridentemente o mundo: as muitas manifestações e batalhas contra a reunião do G8 em Gênova (Itália), que ocorreram de 19 a 22 de julho; e o atentado às Torres Gêmeas (World Trade Center), em 11 de setembro. Por isso, as imagens que recebem a narração desconcertante, que sofrem intervenções do texto, e o texto que desvela lentamente as imagens, ambos movimentos, são inseparáveis dos acontecimentos de luta e horror tratados, quase que tornando-os similares. É um filme perigoso, como dizem por aí, mas também um ensaio necessário, como acreditamos. O filme remonta ideias, propostas e conceitos provindos da revista francesa anônima Tiqqun, que viria deixar de existir no mesmo ano. A Teoria do Bloom, a Teoria da Jovenzinha, a guerra civil, a biopolítica, a comunidade terrível e o Império são trabalhados para dois objetivos que se interligam: a crise da singularidade, ou melhor, da identidade, que nos faz corroborar para o abandono de si mesmos, dá espaço e esperança para a constituição do abstrato Partido Imaginário. Mas, este lampejo audiovisual não pára apenas em filosofias políticas não metodológicas que analisam e desenham uma conjuntura sempre insuperável, que nos relega à falta de esperança, ele vai além, e por isso é tão radical quanto qualquer outra aparição anônima que surgiu após a dissolução da pretensa revista.


Nós, da GLAC edições, traduzimos, legendamos e publicamos "E a guerra apenas começou" porque ele faz parte do conjunto de estudos e intentos que realizamos com nossas publicações. Por isso, avisamos sobre o livro LIVRE-SE DE SI, do coletivo multidisciplinar franco-estadunidense Bernadette Corporation (com a participação de anônimos, do vídeo-artista Antek Walczak, do curador Bennett Simpson, do editor Eric Hazan, da artista Fulvia Carnevale e do filósofo Giorgio Agamben), que tem como principal o texto "Jogue o seu eu fora", tradução e transcrição do filme "Get rid of yourself", irmão siamês de "E a guerra apenas começou".


Avisos:


• A formatação do texto, isto é, as junções de frases em parágrafos, as próprias construções das frases, a pontuação das vígulas, a separação dos parágrafos, tudo isso, foi concebida por nós ao longo da interpretação do texto-vídeo, que se deu no processo de sua transcrição e de sua tradução. Comparamos com edições transcritas do original, em francês, e também com as transcrições traduzidas do inglês e espanhol e, com algumas diferenças, as vezes grosseiras e outras quase imperceptíveis, deixamos nossa edição à público.


• Todo texto contido entre colchetes e em itálico refere-se à textos que aparecem no vídeos como imagem e não são narrados. Eles foram colocados em nossa edição porque para nós funcionam vezes como epígrafes em meio ao corpo textual e vezes como intertítulos.


• Esta edição do filme, participa da exposição "Jogue o seu eu fora", dos coletivos Claire Fontaine e Bernadette Corporation, com curadoria de Leonardo Araujo Beserra, ocorrida na Casa de Cultura do Parque (Rua Professor Fonseca Rodrigues, 1300, São Paulo – SP, Brasil) de 24 de agosto a 08 de setembro de 2024.







E a guerra apenas começou



Anônimo

transcrição e tradução de Victor Galdino e Cris Ambrosio

 


E a guerra apenas começou

— Anônimo


[às crianças perdidas]

 

No enorme corpo social do Império, no enorme corpo social do Império, que tem a consistência e a inércia de uma água-viva encalhada. No enorme corpo social do Império que é como uma enorme água-viva encalhada com toda a sua redondeza, sobretudo a redondeza da Terra, eletrodos são plantados.

 

Centenas, milhares, um número quase inacreditável. Eletrodos de tipos tão variados que mal parecem eletrodos. Há eletrodos de TV, claro, mas, também, o eletrodo do dinheiro, o eletrodo farmacêutico e o eletrodo Jovenzinha

 

Mediante desses milhares, esses milhões de eletrodos, com suas naturezas tão distintas que desisti de contá-las, sustentamos o raso o encefalograma da metrópole imperial.

 

A todo momento, transmitimos, por meio desses condutores, informações quase imperceptíveis, os movimentos da alma, os afetos e os ​​contra-afetos prolongando, assim, o sono universal.

 

E reparem que todos os sensores que são adicionados a esses eletrodos a todos os jornalistas, sociólogos, policiais, intelectuais, professores, e outros agentes, agentes que sabe-se lá qual incompreensível voluntariado lhes delegou a tarefa de orientar a atividade dos eletrodos.

 

Não foi por acaso que difundimos, neste ou naquele momento oportuno, este ou aquele sentimento de terror, de satisfação ou ameaça. Faz sentido manter certo nível de ansiedade na população visando preservar a disposição geral para a regressão, o gosto pela dependência. Ninguém deve poder se libertar dessa posição infantil de passividade briguenta de uma saciedade entorpecida ou de uma militância chorona que constitui o murmúrio da incubadora imperial.

 

Dizem que o tempo dos heróis passou, na esperança de enterrar, com ele, todas as formas de heroísmo. 

 

O sono da nossa época não é o sono saudável que traz descanso. É, na verdade, o sono permeado de ansiedade, e que deixa ainda mais exausto, com vontade de reencontrá-lo apenas para fugir um pouco mais de uma realidade irritante.

 

É a narcose que demanda uma narcose ainda mais profunda. Aquele que, por infortúnio ou sorte, escapa do sono que lhe é prescrito, renasce neste mundo como uma criança perdida.

 

Onde estão as palavras? Onde está minha casa? Onde estão meus ancestrais?  Onde estão meus amores?  Onde estão meus amigos? Não há nenhum, meu filho. 

 

Tudo deve ser construído. Será preciso construir a língua que você habitará. Será preciso construir a casa. Você não vai morar sozinho. Deve encontrar os ancestrais que te farão mais livre, construir sua educação sentimental mais uma vez para amar mais uma vez. 

 

E terá que construir tudo isso sobre uma hostilidade generalizada porque quem acordou é o pesadelo de quem ainda dorme.

 

[a superação sempre vem de outro lugar]

 

Aqui prevalece a regra de não-ação, que se expressa assim: a fecundidade da ação verdadeira reside dentro de si mesma. Eu poderia dizer isso de outra maneira, poderia dizer: a ação real não é um projeto que realizamos um processo ao qual nos abandonamos. 

 

Quem age hoje, age como criança perdida. 

 

A errância governa esse abandono. Nós vagamos. Vagamos em meio às ruínas da civilização. E, precisamente, pelo fato de que essa civilização está em ruínas, não podemos enfrentá-la mais. 

 

É uma guerra bastante curiosa, essa em que nos engajamos, qual se quer a produção de mundos e línguas, que espaços sejam criados e oferecidos, que os lares sejam estabelecidos em meio ao desastre.

 

Existe essa noção antiga, bolchevique e um pouco frígida, claro: a construção do Partido. Acredito que nossa guerra, no presente, é para construir o Partido. Ou melhor, é dar um novo conteúdo a essa ficção desabitada. É dar para esta ficção despovoada novo conteúdo.

 

[Uma sociedade que esgotou todas as suas possibilidades vitais tem boas razões para julgar como “terrorista” o que é vivido fora dela]

 

Conversamos, nos soltamos. Preparamos um filme, uma festa, um tumulto. Encontramos um amigo ou uma amiga, compartilhamos uma refeição, uma cama. Nos amamos. Dito de outro modo, estamos construindo o Partido. Ficções são coisas sérias, precisamos delas para acreditar na realidade do que vivenciamos. O Partido é a ficção central, a que recapitula a guerra de uma época. 

 

Nos últimos séculos do Império Romano, tudo se desgastava de maneira semelhante. O corpo estava ali, as divindades morrendo a presença em crise. Aos poucos, do nosso exílio, ressoou o grande chamado: “Acabemos com tudo isso!”. 

 

O fim de uma civilização é a busca de outro começo. 

 

Para muitas pessoas, a errância aliviou a sensação de serem estrangeiras em todos os lugares. Foi preciso desertar desse comércio civil. Enquanto famosas seitas experimentavam formas singulares de comunismo, algumas pessoas procuravam o êxodo necessário na solidão. Elas eram chamadas de monakhoí, As solitárias, as singulares. Elas foram ao deserto, sozinhas, a dezenas de quilômetros de Alexandria. Foram tantas que assim fizeram, as solitárias, as desertoras, que tiveram que criar normas para uma vida coletiva.

 

E o Império, tendo sobre si o ascetismo cristão, fez daquelas comunidades os primeiros monastérios.

 

[para o feiticeiro, o fora é aqui mesmo]

 

Pode-se dizer que desses mosteiros em pouco tempo nasceu uma civilização ainda mais detestável do que aquela que a precedeu. Mas, enfim, digo isso para ilustrar e defender o valor estratégico da retirada ofensiva. 

 

É de acordo com a arte da guerra que, em determinados momentos, o melhor a se fazer é construir espaços e amizades, não armas e escudos. Quem vai para o exílio, exila. O estrangeiro leva consigo a cidade habitável.

 

[isso pode ser o fim do mundo, que avança]

 

Os pais desapareceram primeiro. Eles foram para a fábrica, para o escritório. Então, por sua vez, as mães, elas foram para a fábrica, para o escritório. E toda vez, não era o pai ou a mãe que estava desaparecendo. Foi uma ordem simbólica, um mundo. O mundo dos pais desapareceu primeiro depois o das mães, a ordem simbólica da mãe, que nada, até aquele momento, tinha conseguido sacudir. E esta perda é tão incalculável, e é um luto tão total, que ninguém aceita fazê-lo.

 

O Império resume este desejo, que um neomatriarcado tome mecanicamente a sucessão do falecido do patriarcado. Não há revolta mais absoluta do que aquela que desafia essa dominação benevolente, esse poder caloroso, essa influência materna.

 

As crianças perdidas são os órfãos de todas as ordens conhecidas. Bem-aventurados os órfãos. O caos do mundo pertence a eles.

 

Você chora por tudo que perdeu. Perdemos tudo, de fato. Mas olhe ao nosso redor. Ganhamos irmãos e irmãs. Tantos irmãos e irmãs. Agora, apenas a nostalgia nos separa, baseada em algo novo. Você olha, você está perdido. Não consegue encontrar a medida de seu valor em lugar algum. Você olha, e não sabe quem você é. Mas esta ignorância é uma bênção e você está destituído de valor, como esteve o primeiro humano. 

 

Siga pelos caminhos.

 

Se você não estivesse tão perdido, você não carregaria em você tal inevitabilidade de encontros. Vamos fugir! Já é hora. Mas por favor, vamos fugir juntos. Veja nossas ações, graça nascente dentro de nossas ações. Veja esse abandono. Como ele é lindo! Não deixemos que nada chegue até nós. Olhe para nossos corpos, como eles trocam com fluidez. Quanto tempo faz que tanta gratuidade caiu sobre o mundo. Mas você sabe disso, ainda há paredes contra este comunismo.

 

Existem paredes dentro de nós, entre nós, que constantemente nos ameaçam. Nós não estamos fora deste mundo. Ainda há ciúme, estupidez, o desejo de ser alguém, ser reconhecido, a necessidade de valer alguma coisa e pior, a necessidade de autoridade. Estas são as ruínas que o velho mundo deixou em nós e não estamos livres disso.

 

À luz de certos holofotes, nossa queda às vezes nos faz o efeito de um declínio. Para onde estamos indo? Há os cátaros que odeiam os maridos mais que os amantes. Existem gnósticos que encontram mais charme na orgia do que no acasalamento solitário. Há esse bispo do século XV na Itália, que sustenta à excomunhão uma mulher, que recusa seu corpo a um homem que lhe pede por caridade, que comete um pecado.

 

Existem os Begardos e Beguinas, que vivem em casas coletivas e em extrema ociosidade passam a visitar uns aos outros. Existem os espirituais que garantem que para o Perfeito não há mais pecado. Eles se chamam de irmãos e irmãs. E o Dia dos Namorados não é mais a celebração do casal, mas no dia em que a senhora casada pode estar com quem ela quiser.

 

Bom, agora temos as metrópoles.  Apropriar-se do inapropriável, fingindo ignorar toda perdição. Brincar de homem, de mulher, marido, amante, brincar de casal. Manter-se ocupado ou ocupada com algo. Firmar-se o mais seriamente possível no mais doloroso dos infantilismos. Esquecer. Esquecer em uma confusão de sentimentos, o cinismo que condena a vida nas metrópoles.

 

E falar sobre amor, ainda e sempre, depois de tantas rupturas. Os que dizem que "outro mundo é possível", os que não transmitem qualquer educação sentimental distinta daquela que encontramos nos romances e filmes de TV, merecem levar cusparadas na cara.

 

[ATTAC aos penicos !!!]

 

Não conheço nenhum estado mais abjeto que o estado apaixonado. Entre amar e estar apaixonado, há toda uma diferença, de um destino que assumimos, e de uma condição que suportamos.

 

A questão é saber se o comunismo é propriedade coletiva ou ausência de propriedade. E então, existe a questão de saber o que é a ausência de propriedade. Nós, ou a maneira como praticamos o comunismo, é o compartilhamento, o uso comum. Nós decidimos sobre o uso livre de um determinado número de coisas que possuímos. O que fazemos é preencher a forma externa da propriedade com um conteúdo que a sabota, isto é, a partilha absoluta entre as pessoas.

 

E o importante nisso, não é o objeto da partilha, e sim o seu modo contingente, que ainda será construído. A orgia apenas prova isso, que a sexualidade não é nada, apenas um certo ponto na distância entre os corpos.

 

[a ATENÇÃO como conteúdo terrestre da ideia de amor]

 

Se tivesse de definir o velho mundo, diria que é um modo de vincular os afetos e os gestos, os afetos e as palavras. É uma educação sentimental, e não queremos mais disso.

 

[não há “transição ao comunismo”, a transição é a categoria do comunismo, do comunismo ENQUANTO EXPERIMENTAÇÃO]

 

E se eu tivesse que definir uma orgia, eu diria que ela é aquilo que começa a cada vez que uma pessoa ou outra rompe com os vínculos existentes entre os afetos e os gestos, entre os afetos e as palavras. E as outras seguem esse movimento.

 

[ISTO NÃO É UM PROGRAMA]

 

Toda posse, qualquer identificação para finalmente nos tornarmos capazes de amar. Em cada situação, existe uma distância entre os corpos. Essa distância não é uma distância espacial, é uma distância ética. Esta é a diferença entre as formas de vida. 

 

A noção de amor, de afinidade amorosa, tudo isso, foi inventada para que não pudéssemos mais assumi-la, brincar com ela. Para impedir que os corpos dancem, e assim desenvolvam uma arte das distâncias. Porque toda distância é uma proximidade, e toda proximidade, ainda é uma distância.

 

Uma certa ideia do jogo combinada à certeza da construção do Partido, mantém-nos equidistantes do casal e do liberalismo sórdido. 

 

Veja, o Partido são os corpos que circulam, são lugares e corpos que circulam. Lembre-se, foi no fundo da separação que encontramos o comunismo. Não podíamos mais compartilhar nada que não quiséssemos compartilhar.

 

Se você quiser, eu gostaria de construir o Partido com você, enfim, se você estiver livre...




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Conheça o filme-texto irmão siamês de "E a guerra apenas começou":




LIVRE-SE DE SI — Bernadette Corporation


com anônimos, Antek Walczak, Bennet Simpson, Eric Hazan, Fulvia Carnevale e Giorgio Agamben


Se atribuindo da mentalidade de gangue e da “recusa de identidade” do Black Bloc, o que o livro nos auxilia localizar são as implicações do artista na arte e do militante na política. Os Black Bloc's são uma alegoria da própria Bernadette Corporation, ou simples representações de como o artista de hoje poderia, mas raramente realiza, refletir e fugir de sua própria instrumentalização. Há uma ode: os jovens de hoje precisam de um pouco mais de estratégia, acredita-se que eles estão um pouco confusos sobre as suas próprias identidades. Este problema, de representação e de identidade, se esclarece pelo deserto do real que a personagem Chloe Sevigny descreve sobre o prazer imenso que teve ao quebrar um caixa eletrônico com um martelo. Ela é um contraponto à multidão dos Black Bloc's em meio aos quebra-quebras durante o G8 de Gênova em 2001, mas no ponto em que sua visão cansada do mundo fornece ironia ou certa consciência histórica para nós, sua personagem flerta com o desejo de caos do grupo. Sevigny fala como atriz, uma atriz que fala com um manifestante e o texto fala com o Black Bloc. A certa altura, um manifesto rola sobre um fundo preto, e o que fica é “Eles dizem: 'outro mundo é possível'. Mas eu sou outro mundo. Eu sou possível?".


PRÉ-VENDA até 10/10/24, de R$ 65,00 por R$ 52,00




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Cris Ambrosio trabalha com artes visuais e texto, como artista, curadora, pesquisadora e escritora. É Bacharel em Artes Visuais pela ECA-USP e em Letras - Português e Francês pela FFLCH-USP. Atualmente, dentre outras atividades, é responsável pela comunicação da GLAC edições.


Victor Galdino

Pesquisador e professor, tem formação em Filosofia (graduação, mestrado e doutorado) pela UFRJ e formação em Psicanálise no Corpo Freudiano. Trabalha com temas como: imaginário social e imaginação política, identidade e subjetividade, herança colonial e fenomenologia da raça, fugitividade e políticas da recusa, metafilosofia e linguagens filosóficas. Integrante do Laboratório Filosofias do Tempo do Agora (Lafita/UFRJ).

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