Ilustração de fundo para Ghost in the Shell (1995), de Hiromasa Ogura e Shirow Masamune.
Publicamos a segunda parte da breve apresentação da história por trás da filosofia do aceleracionismo, feita por Carlos Henrique Carvalho. O autor vem se dedicando ao estudo dos desdobramentos por trás do aceleracionismo há alguns anos e divulga esse debate tanto no ambiente acadêmico quanto no canal no YouTube Aceleracionismo Brasil, fundado por ele. A primeira parte é composta por ''Entrando na selva: aceleracionismo e tecnologia no século XXI'' e ''Cowboys do ciberespaço''. Boa leitura!
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O fantasma na casca
Carlos Henrique Carvalho
''Estaria ele revivendo sua vida, em todos os detalhes, com os seus desejos, tentações e entregas, naquele supremo momento de total conhecimento? Gritou, então, num sussurro, para alguma imagem, alguma visão – gritou duas vezes, um grito que não era mais do que um sopro: 'O horror! O horror!'''
Coração das Trevas, Joseph Conrad
É 2010 quando Benjamin Noys, um filósofo acadêmico publicaria The Persistance of the Negative, identificando o aceleracionismo como uma tendência da filosofia pós marxista e influenciada pelo pós-estruturalismo. São citados os já conhecidos Deleuze e Guattari, mas também Jean Baudrillard e seu Troca Simbólica e Morte (1976), e Economia Libidinal (1974) de Jean-François Lyotard. A tendência paradoxal descrita inicialmente no famoso fragmento "aceleracionista" no Anti-Édipo[1] é o ponto chave de qualquer análise que busca pensar de onde a CCRU [Unidade de Pesquisa em Cultura Cibernética] extraiu essa tal aceleração. Se o capitalismo desempenha essa tendência paradoxal: esquizofreniza os fluxos e desterritorializa as sociedades humanas, ele paranoicamente o recodifica e o reterritorializa. O capitalismo teria então a conjuração necessária para as tendências libertadoras serem aceleradas a tal ponto capaz de transformar as estruturas mais controladoras e hegemônicas (o tecido social, o próprio conceito de humano etc.).
Nossos personagens retornam quando Noys determina essa leitura como um pensamento que a CCRU de Warwick não só identificou, mas desenvolveu. É importante destacar: a palavra aceleracionismo nunca foi usada no contexto de produção própria da CCRU. As colocações de Nick Land acerca o potencial de dissolução do capitalismo e de suas formas e restrições sociais hereditárias, sendo o negativo de todas as formações sociais, não um sistema social em si, influenciam Land a perceber que quaisquer acepções sobre a política humana baseada nessas visões exclusivamente repressivas são uma espécie de barreira para o processo de autodesenvolvimento de novas inteligências e a própria mutação planetária que é o capitalismo. Plant veria as mulheres e máquinas como os lados constituintes da repressão da economia patriarcal-humanista do sujeito, bastante influenciada pelo feminismo pós-estruturalista e notava esses mecanismos também como representantes desse sistema representativo e biopolítico. Os potenciais dos mecanismos maquínicos como desintegração para uma possível aliança entre mulheres e máquinas também parecia claro, especialmente pela própria história de gênese de certas categorias como as calculadoras ou até a própria história da programação e dos computadores. O que digo é: o aceleracionismo nunca sequer foi um movimento inicialmente pensado.
A crítica mais feroz de Noys ao pensamento emergente da CCRU é a de que não passava de uma estética promovente da política neoliberal da época (Thatcher no Reino Unido e Reagan nos EUA), uma abdicação do pensamento particularmente marxista. Uma defesa confusa do capitalismo que pela estetização de ficção científica confundiria opressão do capital e um tipo de libertação. É assim que surge o termo aceleracionismo. Lord of light [O Senhor da Luz], romance de ficção científica escrito por Roger Zelazny e vencedor do Prêmio Hugo de Melhor Romance de 1968 é usado por Noys como inspiração para o termo criado, um romance que misturava mitologia hindu e viagens cósmicas, retrato perfeito da época de explosão hippie e em uma das tramas, um grupo de revolucionários almejava transformar a humanidade a outro grau de evolução, a colocando em outro patamar a partir de sua relação com a tecnologia – estes eram os aceleracionistas no romance.
Em 2011, a editora Urbanomic publicaria o livro Fanged Noumena, uma coletânea de escritos de Land. O desdobramento talvez tenha acontecido de maneira oposta ao ataque de Noys: a chegada do livro gerou um crescente interesse no pensamento do autor e no próprio termo aceleracionismo. A conceituação dada por Noys ganhou outra força e esse retorno sequente sobre o trabalho de Land desdobrou-se em pelo menos alguns movimentos interessantes: desde a defesa de Mark Fisher positivamente pelo termo, no texto "Exterminador vs Avatar: notas sobre aceleração"[2] até um pequeno grupo entre 2011 e 2014 que acabaram adotando a hashtag #accelerate e essa nova onda de interessados se espalhando em ambientes online. Vários pensadores políticos, pesquisadores e ideias começaram a serem articuladas a partir do desdobramento sobre o aceleracionismo e a hashtag de certa maneira ganhou um peso real. O turning point foi a publicação de Nick Snircek e Alex Williams "Manifesto para uma política aceleracionista" em 2013, produzindo então o que se desdobraria oficialmente como Aceleracionismo de esquerda.
Esse 1/acc (maneira que se populariza o emprego de alguma forma de antecessor do /acc e suas variações) gira em torno de uma preocupação que consiga combinar os aspectos venenosos do diagnóstico aceleracionista, enquanto ainda percorre caminhos e rotas bastante caros para o pensamento da esquerda. Em um mundo que é irremediavelmente conectado e global, a política de esquerda não pode apenas se concentrar na localidade e no orgânico – sob o conceito de humano restrito e fechado – mas em uma postura que afirme cada vez mais o sentido de constante transformação e mudança a partir da complexificação da sociedade humana pela tecnologia. O design, processos de informações, teoria política, horizontalismo de linhas como o Occupy nos EUA e estratégias organizacionais de acessos ao poder por diferentes vias do sistema partidário democrático tradicional são algumas das matérias que informam essa linha. Mas a tendência do #accelerate produziu uma variedade de autores e setores em diversos sentidos. O livro #Accelerate: The Accelerationist Reader publicado em 2014 seria então uma espécie de coletânea da história mais ampla do aceleracionismo, envolvendo o século XX, com fragmentos de autores anteriores como Karl Marx e Samuel Butler. Kronic se pergunta: "Você poderia dizer que nós 'inventamos' essa história, como um exercício especulativo. E se o aceleracionismo realmente fosse 'uma coisa'?".
Land em 2012 havia publicado "Dark Enlighment" ["O Iluminismo das Trevas"]: uma espécie de texto que se tornaria um dos outros giros de complicação nessa história estranha. Seria o texto definitivamente conclusivo acerca de outra virada que Land estaria passando nesses anos recentes, se aproximando especialmente de certas linhas emergentes de um pensamento de renovação de uma nova direita. É importante situar que o próprio Land não havia se afastado por inteiro das discussões teóricas e acadêmicas apesar de sua ida para China. Há alguns fragmentos em blogs do que Land continuou produzindo, até certos "guias turísticos" de cidades chinesas chegou a escrever, como um texto também para a coletânea #Accelerate. Land havia também sido buscado por uma outra figura importante nesse movimento pós-CCRU, o filósofo iraniano Reza Negarestani. Este que teria escrito Cyclonopedia (2008) essa primeira obra com certa influência direta de Land e da hiperstição, da teoria ficção e as capacidades inventivas da escrita, enquanto anos depois participaria mais ativamente na formação de certa linha (também influenciada pelo aceleracionismo, podendo-se pensar como um possível desdobramento dessa discussão) conhecida como inumanismo, ou neo-racionalismo[3]. Negarestani havia criado uma proximidade razoável com Land através das redes sociais, onde o próprio Land chegava a ministrar cursos no "The New Centre for Practice and Research'' – uma unidade de pesquisa multidisciplinar e internacional pensada por vários pesquisadores próximos de Negarestani e interessados nessas reformulações da tecnologia, do humano, etc. – mas é a partir da publicação do seu novo trabalho em 2012 que algo parece definitivamente mais alarmante e Land se afasta mais abruptamente desse ambiente.
O coletivo Laboria Cuboniks também ficaria famoso durante os anos citados. Próximas do pensamento também inumanista, Cuboniks seria formado por Diann Bauer, Katrina Burch, Helen Hester, Lucca Fraser, Amy Ireland e Patricia Reed, o coletivo transfeminista publicaria Xenofeminismo: uma política para alienação (2015) um manifesto com essa abordagem crítica e inspiradora para se pensar novas construções de linguagem e as supostas identidades da transgeneridade, do queer, uma defesa da natureza como um essa matéria (trans)formável, uma tendência que incorpora tanto o materialismo, o antinaturalismo e uma defesa da abolição de gênero.
''A parte mais incrível do CCRU é que eles eram uma gangue de estudantes de PhD com atitude!'; diz [Kodwo] Eshun. Abominando 'o lado neurótico da filosofia, a mastigação das entranhas de velhos autores mortos': profundamente entediados pela 'atmosfera deslibidinal' dos seminários acadêmicos, o CCRU costumava participar dos eventos acadêmicos, afirma Eshun, 'para tumultuar, minar e ridicularizar... Eles entrariam em batalhas campais com os Derridadianos!'" (Kronic)
O que parece estar em jogo e que essa apresentação talvez busque ousar lembrar é que a origem da CCRU e o percurso do aceleracionismo vão de contramão da história recente e dos desdobramentos que pelo menos certo Land e sua proximidadecom o campo político da direita produziu. Sua gênese ultra-feminina, informada por teóricas do feminismo pós-estruturalista como Luce Irigaray ou Monique Wittig, como também do ciberfeminismo emergente de Donna Haraway (Land chega a citar todas em textos variados) demonstram esse amálgama teórico da década. As próprias referências a esse futuro de transformações de gênero, identidade, aos fluxos culturais de povos diaspóricos como o afrofuturismo ou a imagem de umfuturismo pós-colonial como o sinofuturismo – esse projeto de um futuro global orientado pela sinosfera – levam a ver que a emergência cultural do início do século XXI caracterizam a CCRU e os próprios desdobramentos da aceleracionismo como reflexões bastante ambientadas em tudo aquiloque vai no sentido da fragmentação, dos sonhos pós utópicos, das anarquias livres do pensamento e das experimentações teóricas da certa ousadia (heresia) que pouco foi injetada na política radical das últimas décadas.
Às vezes tratada como uma “teoria terrorista”, uma ideia que envolva "acelerar o caos e a destruição" e citada por alguns manifestos neo-nazistas e de grupos extremistas como uma fonte prognóstica, o aceleracionismo talvez cause pânico em variados setores justamente por essa capacidade codificante: intensificação de um fluxo, independente da moralidade circunscrita em um programa ou uma agenda que um movimento político ou social construiria. Diferente de qualquer outra bandeira da política humanista como o liberalismo ou o socialismo, talvez o aceleracionismo se diferencie radicalmente por: 1) não ser um programa ideológico, não construir uma agenda política ou uma arena necessária para desenvolvimento e 2) lida como humanismo sempre a partir da extrema repulsa, quer afastar quaisquer traços dessas caracterizações humanistas como esfera central de observação e imaginação. Não há um ser aceleracionista, assim como o significado de ser liberal supostamente deveria representar – um sujeito que em termos gerais observa a relação de Estado e Mercado de certa maneira, acredita na liberdade individual, propriedade privada etc. – assim como um socialista, também pensando tradicionalmente, teria como horizonte político certas pautas gerais como internacionalização, universalismo, distribuição de renda e revolução social.
O aceleracionismo não lida com agência humana, e tampouco com as instituições sociais políticas que formam forças como o Estado. De fato, é o mercado que interessa nesse processo, e não a impressão às vezes bastante nacional, ou até muito do que parte do ideário da esquerda sobre o que seria esse mercado, mas uma imagem de poder corrosivo que os potenciais dissolutivos da troca, das interações frenéticas e da própria criação de valor poderiam gerar. Nesse aspecto, não faz sentido ser aceleracionista de maneira intencional, pois todos já somos aceleracionistas, no sentido de já estarmos imersos em um instante ditado por essa dinamização do tempo.
O visitante parece ouvir uma canção mais suave vinda ali do interior do apartamento, da escada que parecia vazia e de um estranho silêncio que parecia preencher cada buraco e molécula ao seu redor. Os rostos sumiram e lá fora parecia chover, ostecidos das roupas perderam o brilho, tudo pareceu cinzento e passageiro demais. Sequer a sombra do homem alto estava mais ali. O apartamento parecia completamente vazio, apenas com uma estática velha no fundo. Todos haviam abandonado o lugar e sobraram apenas os ratos. Os velhos ratos nos cantos dos tetos e nos buracos comidos pela umidade. Talvez só fantasmas estivessem ali.
Notas
[1] “... qual é o caminho revolucionário? Existe um? – Retirar-se do mercado mundial, como Sarnir Amin aconselha que os países do Terceiro Mundo façam, em um curioso renascimento da ‘solução econômica’' fascista? Ou poderia ser ir na direção oposta? Ir ainda além, isto é, no movimento do mercado, de decodificação e desterritorialização? Pois talvez os fluxos não estejam ainda desterritorializados o suficiente, nem decodificados o suficiente, do ponto de vista de uma teoria e de uma prática de um caráter altamente esquizofrênico. Não se retirar do processo, masir além, “acelerar o processo”: como Nietzsche colocou: nesta questão, a verdade é que não vimos nada ainda.”
[2] Fisher chega a apontar que o marxismo não é nada senão aceleracionista. E que todos também já o somos em alguma medida.
[3] Bem mais presente no seu outro livro Inteligência e Espírito (2018).
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Carlos Henrique Carvalho é Técnico em Meio Ambiente pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás - Campus Águas Lindas (2018) Graduando em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Desenvolveu, durante o curso técnico, duas pesquisas de iniciação científica na modalidade PIBIC-EM, a saber: Máquinas Pensantes: imaginação ficcional e filosofia (2016-2017, como bolsista), Ecologias Futuras, Crises Presentes: uma aproximação ao Duna de Frank Herbert (2017-2018, como voluntário), ambas explorando a relação entre Filosofia e Ficção Científica. Na graduação, desenvolve a pesquisa de iniciação científica "A NEO-CHINA CHEGA DO FUTURO: SINOFUTURISMO E O PÓS-HUMANO NA FILOSOFIA DE NICK LAND E YUK HUI" orientado pelo professor PhD Hilan Bensusan. A pesquisa se desdobrou também no número "Sinofuturismo no Antropoceno", no qual publica dois textos. Atualmente pesquisa nas áreas de antropologia da técnica, filosofia da tecnologia, aceleracionismos, pós e transhumanismos e cibercultura.
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