
Legenda: imagem do filme Zero de conduta do cineasta anarquista Jean Vigo.
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Há palavras que ao serem lidas ou pronunciadas, contagiam. Instigam uma ação, uma vontade, um direcionamento. Elas modificam os sentidos que damos para as coisas e nos fazem deslocar, sempre que desejamos a vida em expansão. É difícil não ser contaminado pela curiosidade se alguém lhe diz que aquele acontecimento está um tesão; que tal filme é um tesão; ou que a beleza daquela obra é um tesão. Queremos ter contato com aquilo ou com quem carrega algo tesudo, pois possivelmente ativará nossa potência de viver.
Em tempos de pandemia, isolamento social, medos dos mais variados (morte, miséria, futuro etc.), buscar o tesão de viver parece um desafio difícil, senão, impossível. Mas são justamente nos momentos limítrofes, como este que estamos passando, que perceber e procurar ativar nossos tesões é fundamental. Trata-se de uma inflexão ética, alinhada com a estética, para então afirmar uma existência solar, diante de tantos obscurantismos. Se há um vírus que ameaça a vida, precisamos contagiar e ser contagiados por outras formas de viver, mais corajosas e apaixonadas. A palavra tesão carrega consigo uma provocação sempre que criamos uma dobra sobre nós mesmos e questionamos como estamos, se nossos caminhos de vida e ação política estão tesudos, enfim, se a vida anda tesuda mesmo.
O escritor anarquista Roberto Freire (1927-2008) sempre foi também o Bigode para os amigos. Sujeito de boa conversa, costumava dizer que, inspirado em Federico Fellini (1920-1993), gostava de mentir, mas só um pouco, e por respeito aos leitores, para tornar suas histórias mais atraentes. Entre tantas, gosto daquela em que narrava como descobriu a expressão sem tesão não há solução, que depois tornou-se título de um de seus mais conhecidos livros. Segundo contava, encontrou a frase escrita nos muros do cemitério, enquanto caminhava pelas calçadas da Rua da Consolação, em São Paulo. Rabiscada com letras miúdas, a frase inusitada lhe chamou a atenção: é possível viver, viver prá valer, uma existência sem tesões? O que diferencia o ato de viver e apenas sobreviver?
Mais do que saber da inteira veracidade dessa história, parece certo que Roberto havia encontrado não apenas o título do livro, mas o entendimento de algo que já observara convivendo com jovens em diferentes lugares do Brasil. Em suas interações, Freire percebeu que a palavra tesão mudara de sentido semântico, ela havia sofrido uma mutação. Não mais expressava desejo sexual, mas passava a significar uma mistura de beleza, alegria e prazer no ato de viver. Palavra que possui a raiz latina tensionem, ainda figura nos dicionários brasileiros como algo chulo e vulgar; ou, quando muito, um substantivo masculino associado a algo teso, que se manifesta com força ou vigor. Mas, na linguagem das pessoas, especialmente dos jovens, tesão é muito mais que isso.
Assim, é possível dizer que a música de Milles Davis é um tesão; que o quadro Guernica, de Picasso, é um tesão, apesar de todo o horror que evidencia; ou que fazer sexo com quem se ama é um tesão. Fica fácil perceber a força que estas designações trazem, entendemos facilmente o que carregam porque quase conseguimos sentir juntos o que expressam. Em seu livro, Bigode descreve como o “tesão, agora, é muito mais do que tesão, porque de substantivo passou a ser adjetivo e está a pique de virar verbo quase completamente transitivo e pronominal”. É um estado de encantamento diante da vida que move a liberdade de ser e estar no mundo, uma potência para existir livre e criadoramente.
A palavra tesão passou a ser uma espécie de “bandeira” de seu pensamento e de sua vida. O anarquista do tesão criou a Soma, uma anti-psicoterapia libertária, que entre tantas outras questões, trabalha a importância de cada pessoa conhecer e exercer seus tesões como forma de promover uma grande saúde. Alinhada a uma prática libertária, o tesão é a arma revolucionária trabalhada por nós na Soma, como forma de afirmar uma política da autonomia. São instantes que ativam nossa originalidade única e reforçam nossa coragem para guerrear contras as forças massificantes e alienadoras que nos habitam e estão a nossa volta. Nos auxiliam ainda a afastar qualquer noção que junte ativismo político com sacrifício e sofrimento. A vida libertária pode e deve ser tesuda, feita de alegria, beleza e prazer.
Viver o tesão é agora. Não se trata de um futuro melhor, pois ele não é o agora. É preciso execrar a poupança existencial, gastar a vida, pois este é o seu principal valor, e não será eterno. Nas políticas de rebanho que prometem a época vindoura, alimenta-se a esperança de que distante de nós haverá a redenção. Esta é prática das igrejas, que investem na fábula do além mundo; dos capitalistas, que dizem que o acúmulo garantirá um futuro seguro; e mesmo dos marxistas, que fizerem crer no paraíso comunista pós a ditadura do proletariado. Agora se fala do sugestivo novo normal, neologismo sinistro que ronda a promessa do amanhã.
Na invenção da existência como percurso autoral, instaurar o tesão no cotidiano funciona como uma espécie de bússola, auxiliando cada um a aproximar-se do que lhe produz paixão e traz sentidos, e distanciar-se de tudo o que lhe aniquila ou enfraquece. Esta elaboração de si como obra de arte aproxima a estética da ética, para então pensar em um modo singular de viver, na qual as práticas de liberdade ocorrem na permanente relação junto ao outro. Se a arte não está circunscrita aos museus e aos objetos, podemos pensá-la atrelada à própria vida cotidiana de todos e de cada um. Será em casa, no trabalho, nas ruas e praças, e em todos os ambientes que ativamos nossos tesões. São jeitos e formas de existir que funcionam como contraponto aos modelos que são cotidianamente ofertados como verdades. Quase sempre alienantes e destesudos.
Apesar dos inimigos do tesão continuarem mais presentes do que nunca, querendo impor uma vida asséptica, moderada e obediente, ele será sempre uma força ingovernável. É justamente nesses tempos em que a pandemia emerge, que vivemos também um forte acirramento do conservadorismo e um flerte aberto com práticas fascistas, que visam aniquilar o que há de tesudo em nossas vidas. Não que seja algo realmente novo entre nós. Mas, busca-se fazer vigorar o apreço pelo mágico, o temor à autoridade e o predomínio da caretice. Para aquelas pessoas que exercem seus tesões com demasiada exuberância, temos ainda a Psicologia e a Psiquiatria convencionais que agem como policiais de branco, corrigindo os desvios da boa conduta.
O tesão sempre irá aparecer como um vírus outro, capaz de fazer sacudir o que somos e o que fazemos de nós. É também com ele que se faz acontecer associações entre libertárias e libertários pela cumplicidade. São amizades que ocorrem por livres associações e instauradas a partir do que nos produz beleza, alegria e prazer no encontro. Elas estarão distantes de qualquer noção contratualista ou por interesses, comuns nos acordos entre Estados e capitalistas. O tesão de estar junto cria amizades que se inscrevem no equilíbrio de dar e receber, equalizando as trocas entre as partes, a partir de um acordo mútuo, para então promover um princípio virtuoso de relação, inscrevendo-se no campo das sociabilidades horizontais e livres.
O tesão é um vírus. Deixe-se contaminar por ele; e o espalhe, sem culpa.
João da Mata
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João da Mata é Doutor em Psicologia/UFF; Doutor em Sociologia Econômica e das Organizações/Universidade de Lisboa; Pós-Doutor em História/ UFF. Trabalha com a Soma – uma terapia anarquista há 25 anos.
Para conhecer a Soma: www.somaterapia.com.br
No Youtube: Somaterapia
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O livro “Sem Tesão não há Solução” (1987) tornou-se um dos best-seller do Roberto Freire. Continua circulando por aí...
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A palavra é vírus
Simultânea e paralelamente à pandemia do novo coronavírus, muitas palavras também ganham a insistência das repetições. A cada segunda-feira, um novo ensaio pensando com as palavras. Quer saber mais sobre a série? clica aqui
Editores: Wander Wilson e André Arias. E-mails de contato: wanderwi@gmail.com / andre.fogli@gmail.com
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