Legenda: Extension n.1. de William R. Maginnis, Jr, citado por John Cage em Notations (1968).
A série A palavra é vírus tem a proposta de abrir as palavras e o campo da percepção. Nesta edição, Galo se propõe a escrever com os ruídos, ou a trazer os ruídos para a escrita. Caminhando pela Avenida Doutor Arnaldo e gravando as palavras que formam o texto, Gustavo Simões captura os ruídos das movências da caminhada e do pensamento, transcrevendo-os para o texto. Aqui, vos apresentamos os dois momentos do processo.
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Legenda: escute o texto no botão para o áudio acima.
Agradeço ao convite de vocês para pensar sobre a palavra ruído, palavra que eu gosto muito e que está presente no título do meu último disco, do meu último trabalho chamado se tudo ruir deixa entrar o ruído.[i]
Na última semana fiquei pensando em como apresentar esse texto. Eu estava lendo uma entrevista da poeta Joan Retallack com o John Cage, em um livro dela chamado Musicage. Ela comenta no prefácio que John Cage, o artista anarquista, muito bem humorado, ria muito durante as conversas. O editor do livro sugeriu que ela retirasse todas as indicações dos risos nas transcrições. Retallack marcava com “(risos)”, assim entre parênteses, a cada instante de uma gargalhada. Ela evidentemente disse que não excluiria as marcações. Segundo ela, o editor tinha receio de prejudicar a imagem de John Cage como artista sério, um dos “grandes artistas” da segunda metade do século XX. Lendo a Retallack pensei em como apresentar um texto sobre o ruído com o próprio ruído presente. Então, pela primeira vez depois de um convite para escrever um texto, em vez de sentar para escrever, saí para caminhar. Estou caminhando nesse exato momento e pensando sobre essa palavra ruído. Estou com um caderno com algumas poucas anotações. Estou caminhando no quarteirão onde eu moro, com uma máscara e um óculos escuros para me proteger do contágio do novo coronavírus. Depois vou transcrever o texto. Mas quem quiser ouvir o áudio [gravado em um smartphone] pode ser uma experiência interessante também.
Fiquei pensando no caminhar, no ato de caminhar, na caminhada. E pensei no Henry David Thoreau, autor da Desobediência Civil, do Walden e de um livro, um pequeno livro chamado Caminhando. No livro, Thoreau coloca que caminhar não é praticar exercício, não é seguir uma rota já conhecida. Caminhar é uma aventura, uma viagem ao desconhecido. Cage descobriu o Thoreau na metade dos anos 1960. Mas antes de descobrir o Thoreau ele também caminhava para procurar cogumelos (ele era um pesquisador de cogumelos) e plantas selvagens. Durante quinze ou vinte anos ele, Cage, morou em uma comunidade chamada Stonypoint, uma comunidade rural no estado de Nova York, onde viviam muitos anarquistas. Diariamente ele saía pela mata procurando cogumelos. Ao contrário da identificação como um primeiro hippie, um ermitão, alguém que fugiu da sociedade – Thoreau construiu uma cabana em Walden, próximo a Concord, onde viveu sem dinheiro e sem usufruir nada produzido pela sociedade industrial –, Cage encarava Thoreau como um “ouvido contemporâneo”. Segundo ele, Thoreau quando ia para as matas, anotava cada som que ouvia. O som de um pássaro, o som de um galho quebrando, o crepitar do fogo, tudo isso era registrado. Cage valorizou esse trabalho e o chamou de um “ouvido contemporâneo”.
Para falar de ruído o que me vem primeiro é o John Cage, suas invenções, sua vida. Cage muito jovem ainda, em 1936, com vinte e quatro anos, era aluno do Arnold Schoenberg, inventor do dodecafonismo. E ele rompeu com o Schoenberg porquê não queria ser obrigado a estudar Harmonia. Um dia Schoenberg disse a ele que a Harmonia era como um muro. Cage respondeu que bateria a cabeça contra o muro até derrubá-lo. Cage considerava Schoenberg autoritário. A partir da ruptura com Schoenberg, Cage foi experimentar a música percussiva, os ruídos, em vez de estudar os chamados sons musicais. Em 1937, escreveu um texto que mais tarde abriria o seu livro Silence. Concluiu: “se no passado a disputa foi entre consonância e dissonância, no futuro será entre os ruídos e os chamados sons musicais”.
Uma das invenções mais conhecidas do Cage foi 4’33, em 1952, em Woodstock. Cage sempre antes, inclusive em Woodstock. Esse número, 4’33, a duração da obra, foi o resultado de operações ao acaso usando o I-Ching, o oráculo chinês. As pessoas foram lá para assistir, se posicionaram. Era um galpão grande com piano. Durante os quatro minutos e trinta e três segundos, David Tudor, o pianista responsável pela apresentação, não tocou uma nota sequer. O que se ouviu naquela noite foi o começo do barulho da chuva no telhado, algumas cadeiras rangendo, tosses. Algumas pessoas começaram a se levantar, outras xingaram ou exigiram o dinheiro de volta. Muitas vezes Cage escreveu e falou sobre a experiência. O que ele quis mostrar ou valorizar é que os sons do lado de fora das salas de concerto, os sons não musicais, podem ser muito mais interessantes do que os sons que ouvimos como música. Eu poderia pensar ainda em outros trabalhos do Cage. Poucas pessoas comentam sobre a sua militância anarquista. Eu estudei essa militância durante um tempo e concluí um trabalho chamado o desconcerto anarquista de John Cage. [ii]
Em 1936, mesmo ano do rompimento do artista com o Schoenberg, acontecia uma revolução anarquista na Espanha, na qual, aparece uma outra conversa com a palavra ruído. Mas aqui ruído como o rumor daquilo que já ruiu, desmoronou.[iii] Nesta revolução, em 1936, os anarquistas aboliram o dinheiro, aboliram as prisões. Pelas ruas, os cumprimentos não eram mais reverenciais. Não se ouviam mais “senhor” ou “senhora” e as pessoas se cumprimentavam com a palavra “saúde”. Em meio ao fogo da revolução, em uma entrevista ainda em 1936, perguntaram ao anarquista Buenaventura Durrutti se ele não temia se sentar em um monte de ruínas. Ele respondeu “nós não temos medo das ruínas”.
Penso no Cage e no Durrutti. Penso neles em 1936, dois contemporâneos. O que eles colocaram abriu meus ouvidos de maneira decisiva. Eu escolhi chamar a palavra ruído, colocar no título do meu disco por conta da leitura que fiz dos dois. E também por conta de uma canção do Mauricio Pereira chamada “Tudo tinha ruído”. Ouvi muitas vezes essa faixa. A canção dele, do Maurício, abriu espaço para a minha.
Enfim, isso é o que queria dizer. Após o disco algumas leituras confirmaram essa perspectiva do ruído como afirmação livre. A leitura do Parque das Ruínas de Marília Garcia, onde ela comenta: “temos falado muito essa palavra ultimamente: ruína”.[iv] E o Ricardo Aleixo, poeta de quem me tornei parceiro (musiquei seu poema “Homens”). Em um poema (”poética”), o Aleixo, expõe: “construir sobre ruínas”.[v]
Isso era o que eu queria falar sobre o ruído. E fico pensando. Me vem a imagem dos recentes monumentos derrubados, ruídos, a ruína dos monumentos, dos monumentos que exaltam as violências do Estado. Fiquei pensando nisso, o ruído é vital.
O que quis era somente tornar possível a leitura do texto (vou transcrever ele) e também a audição dessa caminhada. Acabei de voltar ao meu prédio, na Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo. Esse texto, essa conversa, era para fazer um pouco como a Joan Retallack e não tirar os “risos” e nem os ruídos. Para quem preferiu ler o texto conto que ao longo do percurso de um quarteirão ouvi buzina, freio de ônibus, cantos de pássaros, carros próximos, motor de moto dando a partida, barulho de folha de caderno sendo virada, entre outros quase inaudíveis.
Há sempre o que ouvir, John Cage afirmou. O que tentei foi ouvir os barulhos da rua e fazer com que vocês também pudessem ouvir, dividir esses sons com vocês.
Uma boa noite!
Gustavo Galo / Gustavo Simões
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Gustavo Galo e Gustavo Simões são a mesma pessoa. O primeiro gravou três discos ASA, SOL e o último, se tudo ruir deixa entrar o ruído. O segundo pesquisou o anarquismo de John Cage, no Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), da PUC-SP.
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Notas
[i] Para ouvir (se tudo ruir deixa entrar o ruído): https://www.youtube.com/watch?v=g1-7tZzrjJs&t=1247s
[ii] Para ler (o desconcerto anarquista de john cage): Https://tede2.pucsp.br/handle/handle/20153
[iii] Uma das definições de ruído encontrada no Houaiss, “rumor causado pela queda de um corpo”.
[iv] Marília Garcia. parque das ruínas. São Paulo, luna parque, 2018, pp. 17. Depois de enviar a primeira versão do texto ganhei umteste de resistores, livro da Marília Garcia. No “blind light”, texto que abre o livro, ela conta de seu livro 20 poemas para o seu walkman e de algumas experiências de caminhada com seu amigo, o artista/compositor Rodolfo Caesar, “gravando a leitura do poema e captando os sons ao redor”. Ver um teste de resistores. Rio de Janeiro, 7 letras, 2014, pp.37.
[v] Ricardo Aleixo. pesado demais para a ventania – antologia poética. São Paulo, todavia, 2018, p.79.
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A palavra é vírus
Simultânea e paralelamente à pandemia do novo coronavírus, muitas palavras também ganham a insistência das repetições. A cada segunda-feira, um novo ensaio pensando com as palavras. Quer saber mais sobre a série? clica aqui
Editores: Wander Wilson e André Arias. E-mails de contato: wanderwi@gmail.com / andre.fogli@gmail.com
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