Gilles Deleuze por Gérard Uféras (1968)
Como introdução, segue um curto histórico sobre o assunto do texto, a leitura de Jean Hyppolite de Hegel, pelos olhos de Gilles Deleuze, traduzida por Francisco Cannalonga.
Jean Hyppolite (1907-1968) foi um filósofo francês mais conhecido por estudar o trabalho de Georg Wilhelm Friedrich Hegel e outros filósofos alemães, e participar da formação de alguns dos mais proeminentes pensadores do pós-guerra da França. Gilles Deleuze estudou Hegel com ele no Lycée Henri-IV – Deleuze lembra anos mais tarde que Hyppolite “bateu ritmicamente as tríades hegelianas com o punho, pendurando suas palavras nas batidas” (Dialogues, 12). As principais obras de Hyppolite incluem Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel (1947) e Lógica e Existência (1952).
Hyppolite se formou na École Normale Supérieure (ENS) em 1924, na mesma classe que Jean-Paul Sartre. Após a formatura, ele embarcou em um estudo aprofundado de Hegel, aprendendo alemão por conta própria para ler a Fenomenologia do Espírito no original. Em 1939, ele saiu com sua própria tradução e seu comentário mais tarde formaria a base do livro Gênese e Estrutura. Em 1952, Hyppolite publicou Lógica e Existência (Logique et existence), livro sobre a qual publicamos a seguir a resenha de Deleuze. Esse trabalho relaciona a Fenomenologia de Hegel às suas Lógicas (mais longas e mais curtas), e levanta questões de linguagem, do ser e da diferença, que se tornariam as características da filosofia francesa no final do século XX.
Em 1954, ele se tornou o diretor do ENS, onde Jacques Derrida, Gérard Granel e Étienne Balibar estavam entre seus alunos. Em 1955, ele produziu um estudo do período mais hegeliano de Karl Marx, em um momento em que o interesse francês em Hegel estava no ápice. Em 1963, ele foi eleito para o Collège de France e recebeu uma cadeira de A História do Pensamento Filosófico: ele foi o sucessor de Martial Guerout e antecessor de Michel Foucault nesse cargo. Em 1965, Hyppolite foi entrevistado para a televisão por Alain Badiou, então com apenas 28 anos, como parte de uma série de entrevistas com filósofos franceses que incluíam Michel Foucault, Georges Canguilhem, Raymond Aron, Paul Ricoeur, Michel Henry e Michel Serres. A entrevista pode ser acessada na página Gallica do BNF (aqui). Hyppolite era lembrado principalmente como expositor, professor e tradutor. Ele morreu em Paris em outubro de 1968, alguns meses após os protestos de maio de 68.
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Resenha de Lógica e existência, de Jean Hyppolite
Gilles Deleuze
tradução de Francisco Cannalonga
Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito conservou o todo de Hegel e foi seu comentário. A intenção desse novo livro é muito diferente. Jean Hyppolite questiona a Lógica, a Fenomenologia e a Enciclopédia a partir de uma ideia precisa e sobre um ponto muito preciso. A filosofia deve ser ontologia, ela não pode ser outra coisa; mas não há uma ontologia da essência, há apenas uma ontologia do sentido. Aí está, aparentemente, o temadesse livro essencial, cujo próprio estilo é de uma grande força. Que a filosofia seja uma ontologia significará, primeiro, que ela não é uma antropologia.
A antropologia quer ser um discurso sobre o homem. Ela supõe, como tal, o discurso empírico do homem, no qual este que fala e este do qual fala são separados. A reflexão está em um lado e o ser em outro. O conhecimento assim compreendido é um movimento que não é um movimento da coisa, ele se encontra para além do objeto. O conhecimento é, então, um poder de abstrair e a reflexão uma reflexão exterior e formal. Assim, o empirismo se refere a um formalismo, assim como o formalismo se refere a um empirismo. “A consciênciaempírica é uma consciência que se dirige ao ser preexistente e relega a reflexão àsubjetividade”. A subjetividade será então um fato, e a antropologia se constituirá como ciência deste fato. O fato de que, com Kant, a subjetividade se torna um direito não muda nada no essencial. “A consciência crítica é uma consciência que reflete o si da consciência,mas que relega o ser na coisa-em-si”. Kant se eleva até a identidade sintética do sujeito e do objeto, mas somente de um objeto relativo ao sujeito: essa mesma identidade é a síntese da imaginação, ela não é posta no ser. Kant vai além da psicologia e do empírico, mas o faz permanecendo no antropológico. Enquanto a determinação não for mais que subjetiva, nós não sairemos do antropológico. Deve-se sair dele e como? As duas questões formam apenas uma: o meio de sair é também a necessidade de sair. Que o pensamento se ponha como pressuposto, Kant admiravelmente viu: ele se põe porque se pensa e se reflete, e se põe como pressuposto porque o todo dos objetos o supõe como aquilo que torna um conhecimento possível. Assim, em Kant, o pensamento e a coisa são idênticos, mas o que é idêntico ao pensamento é somente uma coisa relativa, não mais a coisa enquanto ser, em si mesma. Trata-se, portanto, para Hegel, de se elevar até a verdadeira identidade da posição e do pressuposto, quer dizer, até o Absoluto. Na Fenomenologia, nos é mostrado que a diferença geral entre o ser e a reflexão, do em-si e do para-si, da verdade e da certeza, se desenvolve nos momentos concretos de uma dialética na qual o próprio movimento é de suprimir tal diferença ou de a conservar somente como aparência necessária. Nesse sentido, a Fenomenologia parte da reflexão humana para mostrar que tal reflexão humana e sua sequência conduzem ao saber absoluto que elas pressupõem. Trata-se, como diz Hyppolite, de “reduzir” o antropológico, de “superar a hipótese” de um saber cuja fonte lhe é estranha. Mas isso não é somente o fim, como também o começo do que o saber absoluto é. Ele já estava em todos os momentos: uma figura da consciência é de um outro modo um momento do conceito; a diferença exterior da reflexão e do ser é de um outro modo a diferença interna do próprio ser, dito de outro modo, o ser é idêntico à diferença, à mediação. “Porque a diferença da consciência retorna no si, esses momentos de apresentam agora como conceitos determinados e como seu movimento orgânico fundado sobre si mesmo.”
Jean Hyppolite (dir.) e Alain Badiou (esq.), 1965
Alguns dirão que há “orgulho” em se tomar por Deus, em se atribuir o saber absoluto. Deve-se compreender, no entanto, que é este ser com relação ao dado. O ser, segundo Hyppolite, não é mais a essência, e sim o sentido. Dizer que este mundo aqui é suficiente não é somente dizer que ele nos é suficiente, mas que ele é suficiente a si, e que ele se refere ao ser não mais como a essência para além da aparência, não mais como um segundo mundo que será o inteligível, mas como o sentido deste mundo. Essa substituição da essência pelo sentido, sem dúvida se encontra já em Platão, quando ele nos mostra que o próprio segundo mundo é o tema de uma dialética que faz dele o sentido deste mundo, não mais de um outro mundo. Mas o grande agente da substituição novamente é Kant, porque a crítica substitui a possibilidade formal pela possibilidade transcendental, o ser do possível pela possibilidade do ser, a identidade lógica pela identidade sintética do reconhecimento, o ser da lógica pela logicidade do ser – em suma, a essência pelo sentido. Que não há um segundo mundo é, assim, segundo Hyppolite, a grande proposição da Lógica hegeliana, porque ela é ao mesmo tempo a razão de transformar a metafísica em lógica, e a lógica em lógica do sentido. Que não há um além significa que não haja um além do mundo (porque o ser é somente o sentido), e que não há no mundo um além do pensamento (porque no pensamento é o ser que se pensa) e, enfim, que não há no próprio pensamento um além da linguagem. O livro de Hyppolite é uma reflexão sobre as condições de um discurso absoluto; os capítulos sobre o inefável e sobre a poesia são essenciais nesse sentido. São as mesmas pessoas do falatório que acreditam no inefável; porque o ser é o sentido, o verdadeiro saber não é um saber de um Outro, nem de outra coisa. De certo modo, o saber absoluto é o mais próximo, o mais simples, ele está lá. “Por trás da cortina não há nada a server”, ou, como diz Hyppolite, “o segredo é que não há segredo”.
Vê-se, então, qual é a dificuldade, a qual o autor fortemente enfatiza: se a ontologia é uma ontologia do sentido e não da essência, se não há um segundo mundo, como pode o saber absoluto ainda se distinguir do saber empírico? Não caímos novamente na simples antropologia que havíamos criticado? Deve, por sua vez, que o saber absoluto compreenda todo o saber empírico e não compreenda nada mais, porque não há nada além a se compreender, e, portanto, compreenda sua diferença radical com o saber empírico. A ideia de Hyppolite é a seguinte: o essencialismo, apesar das aparências, não é o que nos assegurará contra o empirismo e nos permitirá superá-lo. Na visão da essência, a reflexão não é menos exterior que no empirismo ou na crítica pura. O empirismo põe a determinação como puramente subjetiva; o essencialismo vai somente até o fundo dessalimitação, opondo as determinações entre elas e ao Absoluto. Um está do mesmo lado que o outro. Ao contrário, a ontologia do sentido é o Pensamento total se conhecendo apenas emsuas determinações, que são momentos da forma. No empirismo e no absoluto, é o mesmo ser e o mesmo pensamento; mas a diferença empírica externa do pensamento e do ser dá lugar à diferença idêntica ao ser, à diferença interna do ser que se pensa. Desse modo, o saber absoluto se distingue efetivamente do saber empírico, mas se distingue apenas negando também o saber da essência indiferente. Na lógica não há, portanto, mais, como no empírico, o que digo de um lado e do outro lado o sentido do que digo – sendo a busca de um pelo outro a dialética da Fenomenologia. Meu discurso é lógico ou propriamente filosófico quando, ao contrário, digo o sentido do que digo e quando, assim, o ser se diz. Um tal discurso, estilo particular da filosofia, não pode ser senão circular. Sobre isso se notará as páginas de Hyppolite sobre o problema do começo na filosofia, problema que não é somente lógico, mas pedagógico.
Hyppolite se volta contra toda interpretação antropológica ou humanista de Hegel. O saber absoluto não é uma reflexão do homem, mas uma reflexão do Absoluto sobre o homem. O Absoluto não é um segundo mundo, e, portanto, o saber absoluto se distingue efetivamente do saber empírico, assim como a filosofia de toda antropologia. Contudo, a esse respeito, caso deva-se considerar como decisiva a distinção que faz Hyppolite entre a Lógica e a Fenomenologia, não teria a filosofia da história uma relação mais ambígua com a Lógica? Hyppolite diz: o Absoluto como sentido é devir; e sem dúvida não é um devir histórico, mas qual é a relação do devir da lógica com a história - o histórico designando aqui tudo aquilo além do simples caráter de um fato? A relação do ontologia e do homem empírico é perfeitamente determinada, mas não a relação da ontologia e do homem histórico. E, se Hyppolite sugere que se deve reintroduzir a própria finitude no Absoluto, não se arrisca um retorno do antropologismo sob uma nova forma? A conclusão de Hyppolite permanece aberta; ela cria o caminho de uma ontologia. Mas nós gostaríamos de indicar que a fonte da dificuldade esteja, talvez, já na própria Lógica. Que a filosofia, se ela tem uma significação, possa ser apenas uma ontologia e uma ontologia do sentido, se reconhecerá seguindo Hyppolite. No empírico e no absoluto, é o mesmo ser e é o mesmo pensamento; mas a diferença do pensamento e do ser é superada no absoluto pelo pôr do ser idêntico à diferença e que, como tal, se pensa e se reflete no homem. Essa identidade absoluta do ser e da diferença se chama sentido. Mas há um ponto nisto tudo onde Hyppolite se mostra de plenamente hegeliano: o ser só pode ser idêntico à diferença na medida em que a diferença é levada até o absoluto, quer dizer, até a contradição. A diferença especulativa é o ser que se contradiz. A coisa se contradiz porque, distinguindo-se de tudo o que não é, encontra seu ser nessa própria diferença; ela se reflete somente refletindo-se no outro, porque o outro é o seu outro. Esse é o tema que Hyppolite desenvolve analisando ostrês momentos da Lógica: o ser, a essência e o conceito. Hegel censurará Platão, assim como Leibniz, por não terem ido até a contradição, por terem permanecido, um na pura alteridade, o outro na pura diferença. Isso supõe, ao menos, que não somente os momentos da Fenomenologia e os momentos da Lógica, não são momentos no mesmo sentido, mas também que há duas maneiras, fenomenológica e lógica, de se contradizerem. Após o riquíssimo livro de Hyppolite, poderá se perguntar o seguinte: não será possível criar-se uma ontologia da diferença que não tivesse de chegar até a contradição, porque a contradição será menos que a diferença, e não mais?
Não é a contradição apenas o aspecto fenomenal e antropológico da diferença? Hyppolite diz que uma ontologia da pura diferença nos restituiria a uma reflexão puramente exterior e formal, e se revelaria no final das contas uma ontologia da essência. Contudo, a mesma questão poderia ser posta de outro modo: é a mesma coisa dizer que o ser de exprime e que ele se contradiz? Se é verdade que a segunda e a terceira parte do livro de Hyppolite fundam uma teoria da contradição no ser, na qual a própria contradição é o absoluto da diferença, por sua vez, na primeira parte (teoria da linguagem) e em todo o livro (alusões ao esquecimento, à reminiscência, ao sentido perdido) Hyppolite não funda uma teoria da expressão, na qual a diferença é a própria expressão, e a contradição somente seu aspecto fenomenal?
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Notas
[N. E.] Publicado originalmente em Revue philosophique de la France et de l’étranger, vol. CXLIV, nº 7-9, julho-setembro de 1954, pp 457-460.
Logique et existence foi publicada em 1953 pela Presses Universitaires de France - PUF, e não tem edição em português. Existe uma edição em espanhol, Lógica y existencia, lançada pela Herder Editorial (Barcelona, 1996) traduzido por Luisa Medrano.
[N. E.] Uma outra tradução desta resenha fo feita por Luiz Orlandi e publicada na seguinte edição: DELEUZE, Gilles. LAPOUJADE, David. (Org.). A ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2008.
Enquanto DARK DELEUZE espera pela nova edição, conheça os lançamentos da GLAC:
COMBO SINTOMA GREVE — Não existe revolução infeliz + Greve humana
Com o recente lançamento de Greve humana: por uma prática da liberdade, do coletivo feminista de arte conceitual Claire Fontaine, decidimos dar vazão aos aspectos da "curadoria" editorial que realizamos na seleção dos títulos a serem publicados. Por isso, este Combo torna evidente a relação direta com outro livro, também lançado recentemente, Não existe revolução infeliz: por um comunismo destituinte, do intelectual de pés-descalços italiano Marcello Tarì.
R$ 128,00 (Preço promocional)
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Gilles Deleuze foi um filósofo francês. A obra filosófica de Deleuze é considerada uma das principais representantes da filosofia continental e do pós-estruturalismo, e ocupa um lugar de destaque nos debates contemporâneos sobre sociedade, política e subjetividade, apesar de seu distanciamento das principais tendências filosóficas do século XX.
Jean Hyppolite foi um filósofo francês que se notabilizou por seus trabalhos sobre Hegel e outros filósofos alemães, além de ter sido mestre de alguns dos mais proeminentes pensadores franceses do pós-guerra. Francisco Cannalonga é graduado em Filosofia pela PUC-SP, (2021) Mestrando em Filosofia pela PUC-SP. Pesquisa temas relativos à epistemologia, filosofia da sociedade e ontologia social, sobretudo a partir do idealismo alemão e do pensamento marxista.
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