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 CONTEÚDO 

O PROBLEMA DO ESTADO - Georges Bataille em meio à ascensão nazista

Atualizado: 5 de ago.


desenho sem título, G. Bataille, 1925



O presente artigo, publicado em 1933, faz certamente parte das reflexões de Georges Bataille que deram origem no mesmo ano à Estrutura psicológica do fascismo. O tema, conteúdo e vocabulário específico podem sugerir que “O problema do Estado“ teria sido inicialmente previsto como mais um subcapítulo de Estrutura..., mas seu tom admoestava mais diretamente os leitores da época do que o seu texto irmão. “O problema do Estado“ mobiliza, além disso, outros conceitos de origem hegeliana, como consciência dilacerada e consciência infeliz, com os quais Bataille entra em contato através da Fenomenologia do Espírito - e entra em embate desde pelo menos 1929 na revista Documents - e dos cursos de Kojève na École Pratique des Hautes Études entre 1933 e 1939 [ver, a esse respeito o artigo de Bataille “Hegel, la mort et le sacrifice” (1955), Œuvres Complètes XII, Paris, Gallimard, 1988, p. 326-345]


Tais conceitos, voltados às possibilidades de sustentação da revolta e da realização da revolução, provavelmente complicariam a equação final de Estrutura... “O problema do Estado“ faz parte, por fim, de um período de produção intensa sobre as formações autoritárias, a guerra e a revolução, passando pelos primeiros textos de A Noção de Despensa, e de elaboração intelectual coletiva como a revista Acéphale (1936-1939), na qual, entre outras coisas, ele livrou a obra de Nietzsche das mão dos fascistas, e o Collège de Sociologie (1936-1939), onde Bataille apresenta, por exemplo, a conferência “A sociologia sagrada do mundo contemporâneo” que retoma, sob novas perspectivas, as questões dos textos de 1933.

João Gomes

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O Problema do Estado


 Georges BATAILLE

 traduzido por João Gomes

 

 

Em contradição com a evolução do século XIX, as tendências históricas atuais parecem dirigidas no sentido da imposição e da hegemonia do Estado. Sem prejulgar o valor último de uma tal apreciação – que poderia na sequência se revelar ilusória – é evidente que ela agora domina, de uma maneira esmagadora, a inteligência confusa e as interpretações divergentes da política. Certas coincidências de resultados do fascismo e do bolchevismo têm criado as perspectivas gerais de uma consciência da história desconcertada – de uma consciência que, nas novas condições, se transforma pouco a pouco em ironia e se habitua a considerar a morte.


Pouco importam as medíocres aspirações do liberalismo atual – que encontram aqui uma saída trágica –, visto que o próprio movimento operário está ligado à guerra contra o Estado. A consciência operária se desenvolveu em função de uma dissolução da autoridade tradicional. A menor esperança da Revolução foi descrita como perecimento do Estado: mas são, ao contrário, as forças revolucionárias que o mundo atual vê perecer e, ao mesmo tempo, toda força viva tomou hoje a forma do Estado totalitário. A consciência revolucionária que desperta nesse mundo da coerção é também levada a se considerar historicamente como não-sentido: ela se tornou, para empregar as velhas fórmulas de Hegel, consciência dilacerada e consciência infeliz. Stalin, a sombra, o frio, projetados por esse único nome sobre toda a esperança revolucionária, assim é, associado ao horror das polícias alemã e italiana, a imagem de uma humanidade onde os gritos de revolta tornaram-se politicamente negligenciáveis, onde esses gritos são apenas o dilaceramento e a infelicidade.


Nesta situação, cuja miséria se traduz em cada parte da atividade, a reação do comunismo oficial foi de uma vulgaridade indizível: uma cegueira jovial... Verdadeiros periquitos humanos que aceitaram as piores contorções feitas aos princípios revolucionários fundamentais como se fossem a própria expressão da autenticidade proletária. Em nome de um otimismo abjeto, formalmente contradito pelos fatos, eles começaram a conspurcar aqueles que sofriam. Não se tratava de uma persistência pueril em esperar; nenhuma esperança real estava ligada a afirmações peremptórias, mas somente a uma covardia inconfessada, uma incapacidade de perceber e de suportar uma situação terrível.


O otimismo é talvez a condição de toda ação, mas sem que se fale da mentira vulgar que lhe é frequentemente a fonte, o otimismo pode se tornar o equivalente da morte da consciência revolucionária. Esta consciência (que reflete um sistema dado de produção com as relações sociais que ele implica) é pela sua natureza mesma consciência dilacerada, consciência de uma existência inaceitável. Ela é de todas as maneiras incompatível, basicamente, com as beatitudes de um partido de mercenários oficiais. Com ainda mais razão, no período atual, ela se relaciona e se liga necessariamente ao caráter trágico das circunstâncias: ela foi levada assim à realização e à angústia de uma situação desesperada como à sua própria necessidade. O otimismo que se opõe a esta atitude de reflexão acabada é a derrisão e não a salvaguarda da paixão revolucionária.


Em um tal movimento de retração – tal que,além disso,se produz independentemente das vontades – as reivindicações profundas da Revolução não são abandonadas: elas são retomadas, pelo contrário, na sua fonte, no contato estreito com o que o movimento histórico dilacera e rejeita em direção à infelicidade. E se uma concepção renovada não representa mais as reivindicações revolucionárias, ingenuamente, como um soldo cujo depósito está implícito, e dolorosamente, como uma força perecível, esta força, inscrevendo-se em um caos cego, perde o caráter mecânico que ela assumia em uma concepção fatalista: da mesma maneira que em toda paixão ansiosa, ela é liberada e aumentada pela consciência da morte possível.


Nessa tomada de consciência do perigo que se aproxima da humanidade inteira desaparece a velha concepção geométrica do porvir. O velho futuro regular e honesto cede o lugar à angústia. Há dois séculos, a sorte das sociedades futuras foi descrita conforme os sonhos dos legistas[1], com o objetivo imediato de fazer desaparecer qualquer sombra das perspectivas da existência burguesa: nesse momento toda imagem assustadora da desordem e da desolação possível foi expulsa como um espectro. Foi em parte erroneamente que o movimento operário retomou por sua conta o ingênuo apocalipse burguês: foi quase insensato carregar a matéria, a produção material, com as mais tocantes promessas, como se, a partir de um certo ponto, necessariamente, esta produção não devesse mais se assemelhar em nada às outras forças materiais que, por todas as partes, deixam indiferentemente livres as possibilidades de ordem e de desordem, de sofrimento e de prazer. Seria necessário, atualmente, renunciar a toda compreensão para não ver que a admirável confiança ao mesmo tempo própria à Marx e ao conjunto do socialismo foi justificada afetivamente e não cientificamente: a possibilidade (talvez o dever) de uma tal justificação afetiva não desapareceu senão em uma data recente.


Mas hoje, se a afetividade revolucionária não tem outra saída exceto a infelicidade da consciência, ela retorna para ela como para a sua primeira amante. Somente na infelicidade ela encontra a intensidade dolorosa sem a qual a resolução fundamental da Revolução, o nem Deus nem mestre dos operários revoltados, perde a sua brutalidade radical. Desorientados e desunidos, os explorados devem hoje se bater contra os deuses (as pátrias) e contra os mestres mais imperativos dentre todos aqueles que já os escravizaram. E eles devem ao mesmo tempo suspeitar uns dos outros, com medo de que aqueles que conduzem a luta tornem-se por sua vez seus mestres.


Ora, é verossímil que muitas das conquistas humanas tenham dependido de uma situação miserável ou desesperada. O desespero é, de maneira prática, apenas o comportamento afetivo cujo valor dinâmico é o maior. Ele constitui assim o único elemento dinâmico possível – e necessário – nas circunstâncias atuais, quando os dados teóricos se encontram colocados em questão. Seria impossível de fato abalar suficientemente um aparelho teórico que tem o defeito de ser a fé comum – e cega – de um número grande demais sem recorrer à justificativa do desespero, sem se beneficiar de um estado de espírito desorientado e ansioso. Nessas condições, as soluções prematuras, os reagrupamentos precipitados sobre as fórmulas mal modificadas, e mesmo a simples crença na possibilidade de tais reagrupamentos são também obstáculos, é verdade, negligenciáveis, para a sobrevivência desesperada do movimento revolucionário. O futuro não repousa nos esforços minúsculos de alguns ajuntadores de um otimismo incorrigível: ele depende completamente da desorientação geral.


Não é nem mesmo certo de que o trabalho teórico atual possa ultrapassar sensivelmente uma desorientação profunda, tornada um fato dominante desde o colapso do movimento operário na Alemanha. Se é possível, com efeito, ter acesso às causas que dão conta da ineficácia, mesmo que provisória, da atividade revolucionária, a possibilidade de suprimir ou de modificar as causas não está dada; consequentemente, o trabalho que revela uma tal situação aparece em primeiro lugar como vaidade completa.


Todavia, é evidente que o tempo, quer dizer, a necessidade do movimento histórico, permanece capaz de realizar as transformações que não podem depender diretamente da ação de um partido. E vivendo na espera de uma tal transformação é ainda necessário não sucumbir a forças destrutivas que, hoje, têm contra o movimento operário a iniciativa do ataque. Ora, é chegado talvez o tempo em que aqueles que, de todas as partes, falam de “luta contra o fascismo” deveriam começar a compreender que as concepções que, em seu espírito, acompanham esta fórmula, não são menos pueris do que aquelas das feiticeiras lutando contra as tempestades.


E como, por outro lado, acontecimentos imprevisíveis e precipitados podem – mesmo em um tempo relativamente próximo – suspender os obstáculos que se opõem hoje ao sucesso da atividade revolucionária, apenas a “violência do desespero” é suficientemente grande para fixar a atenção – como é necessário fazer desde agora – sobre o problema fundamental do Estado. Diante de um tal problema, existe nos meios revolucionários uma má vontade desconcertante, uma cegueira doentia. Contra toda probabilidade, parece ainda a inúmeros comunistas que o livro de Lenin continua a responder a toda dificuldade possível, o que prova suficientemente a má consciência de agitados cegos que pensam, no fundo deles mesmos, que o problema é insolúvel, que consequentemente é necessário negá-lo. Decretar, como fazem, que depois de Lenin, a simples enunciação do problema provém doanarquismo pequeno-burguêssó faz revelar ainda mais esta má consciência (humanamente, não existe desprezo suficientemente definido para responder ao emprego desta velha argúcia, derisório insulto a toda boa fé, insulto à recusa em se cegar). O problema do Estado se coloca com efeito com uma brutalidade sem nome, com a brutalidade da polícia, como um tipo de desafio para toda esperança. Tanto quanto negar sua existência, não pode ser possível se esconder atrás de princípios puros (como fazem ingenuamente os anarquistas). As dificuldades sociais não são resolvidas com princípios, mas com forças. De que as forças sociais possam se compor e se organizar em contradição com a soberania do Estado socialista ditatorial, é evidente que só uma experiência histórica poderia dar a certeza. Mas não é menos evidente que um tal Estado, dispondo dos meios de subsistência de cada participante, dispõe assim de uma potência de coerção que deve encontrar a sua limitação de dentro ou de fora: ora, toda limitação externa é inconcebível se nenhuma existência social, nenhuma força independente do Estado é possível.


Instituições democráticas – realizáveis e, portanto, exigíveis, no interior de um partido proletário – podem dar, por outro lado, uma limitação interna. Mas o princípio da democracia, desacreditada pela política liberal, não pode, pois, voltar a ser uma força viva senão em função da angústia provocada nas classes operárias pelo nascimento de três Estados todo-poderosos. Sob a condição de que esta angústia se componha como uma força autônoma, baseada no ódio da autoridade do Estado.


É nesse sentido que é necessário dizer atualmente diante das três sociedades servis que nenhum futuro humano merecedor desse nome pode ser esperado a não ser advindo de uma angústia libertadora dos proletários.





Notas


[Referência do artigo] G, BATAILLE, Œuvres Complètes, tome I, présentation de Michel Foucault, Paris, Gallimard, 1970, p. 332-336 [Originalmente publicado em La Critique Sociale, n. 9, setembro de 1933, p. 105-107].


[1] O termo, traduzindo o francês légistes, se refere evidentemente aos indivíduos que são especialistas nas leis [N.T].


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Georges Bataille, ensaísta e romancista francês, nasceu em 1897. Ao longo da sua carreira, envolveu-se com o marxismo, psicanálise, misticismo e surrealismo. Fundou a revista literária Critique em 1946, que editou até sua morte em 1962, e também foi fundador da revista Documents, que publicou muitos dos principais escritores surrealistas. Sua escrita é uma mistura de poesia e filosofia, fantasia e história, e seu primeiro romance, História do Olho, foi escrito sob o pseudônimo de Lord Auch. Outras obras de Bataille incluem o romance Madame Edwarda, e os livros de ensaios O Erotismo e A Literatura e o Mal.


João Gomes é professor, historiador e pesquisador independente. Bacharel em História pela PUC-SP, Mestre em História Social (História Medieval) pela Unesp e doutor em História Medieval pela Université Paris-I La Sorbonne e EPHE-Paris.





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