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 CONTEÚDO 

SITUAÇÕES DE CONTATO - Paloma Durante

Atualizado: 27 de set. de 2023


Neste ano, a GLAC edições tem a alegria de publicar pela primeira vez no contexto brasileiro o livro Políticas do Toque: sentidos, movimento e soberania, da filósofa canadense Erin Manning. No livro, a autora discorre sobre como os aspectos sensoriais de um corpo constantemente se deparam com estruturas políticas coercitivas, gerando a necessidade de reformularmos a nossa própria estrutura e percepção dos sentidos – dando ênfase principalmente ao toque e sua capacidade de informar e reformar um corpo –, como meio de propor intervenções políticas que nasçam da experiência sensível de estar em contato com uma matéria-mundo.


Como forma de ampliar o debate acerca do pensamento de Erin Manning, ao longo das próximas semanas, o blog-revista da editora disponibilizará uma seleção de materiais relacionados à autora, incluindo a tradução de alguns de seus artigos e ensaios, bem como pesquisas de agentes e coletivos com práticas que teçam diálogos com a sua obra.


A seguinte proposta, elaborada por Paloma Durante, é o começo de uma pequena coleção de situações em que o contato se torna o protagonista para que algo aconteça, reunindo a narrativa de trabalhos de arte e situações de ordem íntima como pequenos contos para pensar estas relações.




Situação de Contato 1


Um dia, Bruce Nauman decidiu se pressionar contra uma parede. Nessa investigação, foi entendendo quais eram as negociações necessárias que deveria fazer para que seu corpo continuasse em contato com um máximo de área possível dessa parede, modelando e modulando uma percepção de sua fisicalidade por meio dessa ação. A primeira coisa que descobriu é que tocar é, também, além da imbricação de fricção do corpo no e com o mundo, habitar a tensão profunda entre o corpo e sua representação. O toque cria trajetos para outras consciências de si quando quaisquer coisas se revelam tocadas. Depois, que o sentir altera as dimensões de um corpo. E por fim, que tudo aquilo que você toca também te toca, e que são os desejos gerados por essa experiência que incitam um corpo a continuar movendo. Desde então, Nauman convida a uma série de pessoas a também se pressionarem contra a parede.


Situação de Contato 2


Para mim, as passagens mais bonitas que li no livro de Scholastique Mukasonga eram as descrições dos pés descalços de sua mãe e das mulheres de sua comunidade, em que o rápido e frágil espanto da imagem dos calos e da pele rasgada pela aridez do terreno em que pisavam era substituída por uma admiração profunda pela sabedoria neles depositada. Pés que abriram caminhos, que lavraram campos e que conheciam tão bem por onde andavam que, se por conta da escuridão a vista faltasse, ainda assim fariam com que chegassem onde deveriam, lendo a geografia pela sola dos pés, como se na ponta de seus dedos existissem um tanto de olhinhos esquadrinhando as hachuras da terra. Com a memória falha, agora não sei se essa passagem de fato está no livro, ou se é apenas um truque dela, mas me comovo bastante quando imagino ela dizendo de alguém que teve que vestir um sapato pela primeira vez, e que, ao se ver restrito de tocar o chão com a sola dos seus pés, tropeçou.


Situação de Contato 3


Dentro de todas as estratégias de controle empregadas pelo Estado Soviético para conter as transformações político-sociais insurgentes no final dos anos 1960 na Tchecoslováquia, a mais conservadora e eficiente foi a proibição de encontros de grupos de pessoas no espaço público, a não ser daqueles que tivessem uma autorização prévia cedida pela autoridade local. Parar na rua para conversar com outra pessoa, ou sair de algum lugar em companhia, era o suficiente para que os envolvidos fossem lidos como potenciais suspeitos, alimentando um estado constante de neurose que fazia com que as pessoas não demorassem nem mesmo o olhar sobre alguma coisa, criando um excêntrico ambiente formada por sujeitos que caminhavam estranhamente verificando os próprios pés. Neste ínterim, um jovem, Jiři Kovanda, se propôs a caminhar dando leves esbarrões nestas pessoas, distraindo-as da própria neurose por meio da intimidade inusitada e instantânea que se constrói quando um corpo dá de encontro com outro.


Situação de Contato 4


Era um exercício em dupla e, para cada dupla, a professora deu um abanico. Uma pessoa teria a função de abanar; a outra ficaria deitada recebendo o vento formado pelo abano. A instrução para quem estava com o abanico era para que a abanasse direcionando o ar para apenas um dos lados do corpo do outro, percorrendo toda a extensão entre os dedos dos pés e o topo da cabeça. A pessoa deitada apenas recebia, dando escuta ao que estava acontecendo consigo. Rigorosamente, comecei a abaná-la colocando um esforço maior nas partes do corpo cobertas pelo tecido de sua roupa, intencionando um gesto que pudesse vencer a trama miúda dos materiais sintéticos. No rosto dela, a estranheza de um meio sorriso, enquanto o outro canto da boca pendia estúpido. Veio então a instrução para que pausasse o abano, para deixar que a pessoa abanada se percebesse. Nos minutos seguintes, a minha pessoa deitada narrava aflita a sensação de uma metade do corpo – a que não tinha recebido o vento – flácida e amorfa, como se atrofiada estivesse, enquanto a outra – a que fora lambida pelo contato do vento com a pele – continha uma certa excitação, delineada e sensível ao espaço, receptiva como uma antena, esculpida pelo ar. Tive então que abanar o seu outro lado, o que não a restaurou completamente da assimetria, visto que cada lado do seu corpo parecia carregar experiências muito diferentes, mas reintegrou as suas duas metades, resolvendo pelo menos o seu sorriso entortado.


Situação de Contato 5


O Dabkeh é uma dança comum em muitas culturas do Oriente médio. É uma dança coletiva, dançada em linha ou em uma quase-roda, e seus participantes a dançam tradicionalmente de mãos dadas. Os passos que compõem a coreografia são oriundos de uma técnica coletiva e ancestral de construção, rememorando o tempo em que os moradores de uma comunidade se reuniam para amassar o barro que seria utilizado na estrutura dos telhados das casas, pisando sobre essa matéria de modo compassado. As pisadas hoje, ritmadas pelo som rouco do Tabel, foram transferidas do ambiente do vilarejo para o palco e salões de baile, dançadas em casamentos ou celebrações específicas. Apesar desse deslocamento, para os grupos em diáspora, como os palestinos, dançar o Dabkeh não só os reaproxima deste sentido da reunião de uma coletividade para a construção de habitações para todos, mas é também tido como uma forma de preparar a terra, reconstruindo o território que lhes foi usurpado, reerguido por meio desse toque ombro-no-ombro, das mãos dadas pulsando junto nessa coreografia que se repete tantas e tantas vezes no tempo, avizinhando uma esquina qualquer da América do Sul aos vales arenosos da Cisjordânia.


Situação de Contato 6


Aos sábados, geralmente, eu vou à feira de orgânicos do meu bairro para comprar couve toscana. Não preciso nem bem dizer bom dia ao dono da banca, ele já sabe o que eu fui fazer. Por vezes, apalpo algumas cenouras ou monto um buquê de alcachofras, mas só a couve volta comigo para casa, apertado contra o meu peito. De todas as imaginações que temos sobre nós mesmos ao longo da vida, comprar couves foi uma das que nunca me ocorreram. Chego em casa, abro o pacote e começo a lavar folha por folha. Elas são suaves e fibrosas, suas rugosidades formam uma paisagem estranha e convidativa. Com a ponta de um dos dedos começo a contorna-la com cuidado, deslizando atenta sobre cada centímetro de sua superfície, a torneira jorrando sobre as minhas mãos fazendo com que meu dedo deslize por entre seus sulcos com maior facilidade. Qualquer coisa nesse instante me causa um constrangido suspiro. Agora a faca, a qual afio como se preparasse uma espada. Espalho as folhas sobre a tábua de corte e começo a cortá-las em tirinhas que logo se tornam quadradinhos. Um cheiro exageradamente verde me invade, fazendo suar a língua. A panela está sobre o fogão. Dentro dela um fio de azeite e um alho inteiro, amassado por um golpe. O volume dos quadradinhos será reduzido ao seu terço e o frescor do cheiro verde será substituído pelo odor acre de verdura refogada. Já no prato, cada pequena e libidinosa saliência da folha irá sumir, triturada pelo movimento impiedoso da minha mordida.



Situação de Contato 7


É possível encontrar dentro alguns textos de estudiosos do corpo a ideia de que o erótico é uma ferramenta de desprivatização do corpo; que torna público, ou ao menos compartilhável, uma produção de sentido que nasce do próprio sentir, e por isso encara a sensualidade não como uma fantasia, tantas vezes atrelada à visão de algo, a uma imagem daquilo que se deseja, mas com o ingovernável da experiência. O que é um seio, por exemplo? E com certeza, só de ler esta palavra, a imagem de um seio chove na imaginação, um seio destacado de um corpo, flutuante como uma invulgar entidade, irreal como um fantasma que, quando finalmente encarnado, provoca e constrange na mesma medida. Para testar esta tensão entre corpo e representação, Valie Export, certa vez, construiu uma miniatura de palco italiano e acoplou a maquete ao seu corpo, usando-a para tapar os seus seios que estavam por trás da cortininha de veludo do palco. Assim, ela parou na rua de diferentes cidades e convidou as pessoas a colocarem a mão por entre o vão das cortinas para que lhe tocassem o peito.


Situação de Contato 8


A última vez que eu vi meu companheiro foi em uma madrugada de agosto. Meu rosto no dele, nas bochechas uma sensação molhada. De um lado as nossas mãos atônitas e entrelaçadas; do outro, uma outra mão solitária arrastando a alça da mala com alguma dificuldade. Ele insiste em manter as nossas mãos juntas quando eu entro na fila. Quanto mais perto do portão de embarque, mais eu roçava os meus dedos entre os dele, como se nesse movimento eu pudesse produzir uma cola que me atasse a ele e me impedisse de partir. Paro por alguns instantes para tirar o bilhete de embarque do bolso. Passo o portão com um dos braços para o alto, nossas mãos juntas e firmes, ameaçando desertar do corpo. O segurança grita qualquer coisa para qual eu estou surda e, como se o mundo sofresse de uma brusca desaceleração, vejo nossos braços estendidas no alto, nossos dedos deslizando em sentidos opostos, construindo distância, e então, as duas mãos – finalmente apartadas. Depois do choque, tive tempo apenas de olhar por cima do ombro e encontrar o sorriso triste do meu companheiro ficando para trás enquanto meu corpo era empurrado por um rio furioso de gente, a outra mão ainda alienada em sua função de puxar a mala. Essa é a minha história, mas poderia ser a história de tantas outras pessoas se despedindo em um aeroporto.




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sentidos, movimento e soberania











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Paloma Durante pesquisa a mediação como prática artística, desenvolvendo projetos relacionados a arte-educação, escrita e técnicas do corpo.





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