top of page

 CONTEÚDO 

BUTECO – dramaturgia cotidiana de Silvestre, um musical do jornaleiro da Praça





O texto a seguir é a segunda contribuição de Silvestre Mendes de Oliveira, ou simplesmente Silva da Banca, ao blog-revista da GLAC edições. Neste roteiro musical de teatro, é quase certo que, com a ajuda da memória, quem lê vai formar as imagens do bar, das figuras que o frequentam, das discussões, brincadeiras e conflitos. As cenas que Silvestre constrói mexem com o imaginário coletivo do que é um buteco e ativa as lembranças de todos nós que somos assíduos frequentadores desses estabelecimentos. Em meio a essas imagens, Silvestre ainda cria entrecruzamentos com a violência policial, opressão de classe e de gênero, e discriminação religiosa – todos (inclusive o buteco), talvez, elementos indissociaveis da vivência brasileira.



_____________________




BUTECO

por  Silvestre Mendes de Oliveira



Roteiro musical de teatro



Atores atrizes

João / Pretinha / Manú / Mané / Ronaldinho / Medina / Bem Dito / policial / Dinorá / delegado / Guedes / Zé Bedeu


————————————————————



ATO I




 João ENTRA EM CENA


Levanta a porta do bar

Se benze

Liga a luz

Entra e abaixa a porta

Olha o relógio que marca 13:30

Caminha até o balcão

liga o rádio

sintoniza a estação

Sai do balcão

começa a arrumar o bar.

(arruma as cadeiras e limpa as mesas)

Confere se está tudo certo

Levanta de novo a porta do bar

Olha pro céu num gesto de agradecimento

 

————————————————————

 

Pretinha sentada na manicure da esquina

Fazendo as unhas

Ouve o som da porta do bar abrindo.

Levanta vai até a porta do salão e olha pro bar.

Volta pra terminar as unhas com Manú

 

————————————————————


Diálogo

Pretinha / Manú (manicure)

 

MANÚ

Esse seu João é um cara de compromisso: abre às duas da tarde em ponto, há mais de vinte anos!

 

PRETINHA

Pois é, Manu, o cara rala pra caramba e não dá conta de pagar o sistema nem os fornecedores, tá foda... Hoje vai ter um samba lá, e justo hoje, que tô de folga, ele me chamou. Vô lá dá uma ajuda pra ele --- a rua tá difícil, amiga... Tenho que chegar às 3 horas, senta o alicate aí, Manú.

 

MANÚ

Já tô terminando, só falta essa última cutícula, já que você não quer pintar.

 

PRETINHA

Ai, ai, aaaai!...

 

MANÚ

 Fica quieta, Pretinha, foi só um bifinho!

 

PRETINHA

Então, queria até pintar, mas como vou ajudar o João, vai acabar estragando. Coloca só uma base mesmo e tá bom.

 

MANÚ 

Prontinho, viu como foi rápido?

 

PRETINHA 

Valeu, Manú, bom trabalho, ficou linda. Assim que o João me pagar, venho acertar contigo. Beijo.

 

MANÚ

Vai em paz, Nega. À noite eu encosto lá, tchau.

 

——————————————————————


(Pretinha sai Manú fala consigo mesma)

 

MANÚ

Essa “Bruninha” é foda.. Rala pacarai...


——————————————————————

 

Pretinha sai do salão

destrava a bicicleta

Não monta vai empurrando a bike

atravessa a rua andando até o João

Encosta a bike

 

————————————————————


 Diálogo

João / Pretinha


JOÃO

Oi, celebridade... tudo bem?

Chegou cedo hoje.

  

PRETINHA

E aí, seu João, tudo beleza?

Eu estava ali na Manú fazendo as unhas... Vô lá na goma guardar a magrela, tomar uma ducha, e já, já eu volto.

 

JOÃO

Conto contigo, irmã!

 

PRETINHA

Estou viva, seu João, não se preocupe. Confia na mãe que não vou ramelar na missão. O senhor sabe que a vida não dá colher de chá, trabalhei até de madrugada mas tô na área, se eu for viver só da rua, morro de fome. Até daqui a pouco. Hoje o bicho vai pegar.

 

JOÃO

Vai lá, fia.

 

PRETINHA

É nós, seu João, partiu chuveiro.

 

————————————————————

 

Pretinha monta na bike

O traseiro fica bem empinado

João não tira os olhos até ela virar a esquina.

 

————————————————————

(João entra pensativo, falando sozinho)

 

JOÃO

 Ah, se eu tivesse uns 20 anos a menos...Nem precisava do azulzinho.... Rá, rá, rá, rá! Mas a preta tá em outra, nem tão cedo vai querer homem fixo na caminha dela.


João pega os tacos de sinuca em cima da mesa, coloca no suporte. Vai pra detrás do balcão.


Chega o primeiro freguês.

 

————————————————————

Primeiro cliente: Mané

 

Mané entra no bar

Vai até o balcão

Apoia o braço


Diálogo

Mané / João

 

MANÉ

Salve, seu João, vamos começar os trabalhos, põe aquela e passa a régua.

 

JOÃO

Começando cedo, camarada!

 

MANÉ

A gente tem que se hidratar... Aproveita e me dá aquele torresmo peludo, não, não, me dá aquele ovo rosa.

 

JOÃO

Vai pimentinha?

 

MANÉ

Manda!

 

(Mané fica batucando no balcão, acompanhando o samba no rádio.)

 

JOÃO

Conhece esse samba, Mané?

 

MANÉ

Já ouvir muito no rádio. Bom pacaralho !

Quem são esses cara?

 

JOÃO

Ah, esse pessoal é o “Lado B”, que as grandes gravadoras não querem gravar. São os “Bocas de Versos” um grupo que toca aqui nas quebradas da zona leste. Aliás, hoje eles vão fazer uma roda de samba aqui. Pinta aí de noite.

 

MANÉ

Pode crê, sei quem são. Rapaziada promissora, sempre fazendo coisa nova. Uma hora eles vão estourar!

 

JOÃO

É isso aí! Puxa uma cadeira aí, Mané, deixa eu esquentar o mocotó.

 

————————————————————


Panela no fogão

João cantando ao som do rádio


————————————————————

 

 

Cliente chegando (MEDINA)

Sotaque (nordestino)

 

————————————————————

 

Diálogo

Medina / João 


MEDINA

Salve, seu João!

 

JOÃO

Fala aí, mano Medina!

 

MEDINA

Tô sentindo cheiro de mocotó, vou querer um pra segurar a bebedeira. Tá reservada aquela mesa ali ou posso sentar?

 

JOÃO

O que é isso, camarada? Malandro não senta, malandro se acomoda... rá, rá, rá, rá!

 

MEDINA

Vacilei, seu João, um a zero pra você. Olha: junto com o mocotó, manda aquela gelada pra mim!

 

JOÃO

Ao seu dispor, camarada! Se acomode que eu já chego aí;


—————————————————————


João leva cerveja e o mocotó até a mesa, e já cumprimenta outro casal que acabou de chegar.

 

JOÃO 

Vamo chegando que eu já vou trazer o cardápio, o mocotó acabou de sair.

 

—————————————————————


O Bar começa a encher.

Pretinha chega de vestido curto e o pessoal torce o pescoço pra admirar a moça.

 

————————————————————

 

Cochichos dos clientes

 

CLIENTES 

(Seu João é que é feliz, uma funcionária assim todo mundo queria!)


(Eu pagava o dobro pra ela trabalhar pra mim...)

 

(Quero ser servido por ela!)

 

(A cerveja pode até vim quente, mas bebo assim mesmo!)

 

————————————————————


PRETINHA

Tamo na área seu João, já vou atender ali.

 

—————————————————————

 

Pretinha chega pra atender “Bem Dito”.

 

—————————————————————

 

(João olha de lado

Fala consigo mesmo)

 

JOÃO

Isso não vai prestar...

 

—————————————————————

 

Bem Dito nem espera pretinha mostrar o cardápio e começa o xaveco.

Em dueto musical


————————————————————

 

Primeira cena musical

 

( dueto musical)

PRETINHA x BEM DITO



BEM DITO 

Vamo lá pra casa, Pretinha

Tira esse avental

Quero você só pra mim

Deixa esse povo pra lá

 

PRETINHA

Sai pra lá, seu vagabundo

Vê se deixa de xaveco

Vim aqui pra trabalhar

Respeite o nosso boteco


BEM DITO

Pra que tanta brabeza

Eu só quero te ajudar

Não me maltrate assim, Ó Pretinha

Senão eu posso gamar.


PRETINHA

Tu não merece resposta, malandro

Não vê que eu vim trabalhar

Pra você eu dou as costa

Vê se tu vai te catar

 

BEM DITO

 Por você eu cato lixo

Posso até lamber o chão

Não me maltrate assim, ó Pretinha

Tu manda no meu coração.

 

(Breque pra terminar )

 

PRETINHA

Vixi, eu nunca vi malandro que é malandro lamber o chão!

 

(Sai, vai atender outra mesa)


————————————————————

 

Bem Dito fica revoltado na mesa


————————————————————

 

Pretinha continua em movimento, limpando mesa,

enquanto o pessoal vira o pescoço pra acompanhar.

 

———————————————————


Mulher discutindo por ciúmes da Pretinha,

Repreendendo o companheiro.

 

(Bar lotando)

 

Samba tocando no rádio

 

Pretinha sai no rebolado, chega no balcão.

————————————————————

 

PRETINHA

Seu João, vou no banheiro.

 

————————————————————

 

Ela sai, Bem Dito vai atrás da Pretinha no banheiro e começa a xavecar.


————————————————————

 

Diálogo

Bem Dito / Pretinha


BEM DITO

Olá, minha beldade, tem um tempinho pra mim?

 

PRETINHA

Vaza, malandro, que não quero papo e tenho muito serviço!

 

BEM DITO

Acredita em amor à primeira vista?

 

PRETINHA

Quem vai na conversa de pato é ganso, essa cartilha eu conheço de cor e salteado. Deixa eu voltar que o bar tá lotado, e não quero saber de lorota.

 

BEM DITO

Nem depois do expediente?

 

PRETINHA

Nem depois do funeral! Vaza, malandro!

 

————————————————————


(João-chama pretinha pelo nome)

Bruninha, tem mesa pra ser atendida.

 

(PRETINHA)

Tô indo, seu João, deixa eu despachar esse mala!

 

Pretinha mostra o canivete e ameaça Bem Dito:

 

(PRETINHA)

Respeito é bom e conserva as bolas no lugar, malandro! Sai fora!

 

—————————————————————-

 

(Bem Dito volta magoado, senta, bebe o copo de um trago e começa a cantar _

 

————————————————————


Segunda cena musical

 

Melodia de valsa

 

(Bem Dito cantando )

 


Mesmo que me acabe com seu veneno 
     

Eu mordo a maçã...

   No seu conto de fadas em vez de príncipe 
   

Eu sou só o vilão.

    Parece que nossa história
 

 Até agora não tem solução...

  Mas no seu conto de fadas

Caio na cilada com satisfação...

 

Neste show da vida nossa canção ainda não tocou

Como um botão de rosa que ainda não desabrochou

Daí eu volto pro bar, na cachaça vou me afogar

E vou beber cada lágrima que rolar...

 

(João chega pra conversar com Bem Dito)

 

JOÃO

Eita, Bem Dito, hoje é dia de festa, sem chororô no meu bar!