O texto a seguir é a segunda contribuição de Silvestre Mendes de Oliveira, ou simplesmente Silva da Banca, ao blog-revista da GLAC edições. Neste roteiro musical de teatro, é quase certo que, com a ajuda da memória, quem lê vai formar as imagens do bar, das figuras que o frequentam, das discussões, brincadeiras e conflitos. As cenas que Silvestre constrói mexem com o imaginário coletivo do que é um buteco e ativa as lembranças de todos nós que somos assíduos frequentadores desses estabelecimentos. Em meio a essas imagens, Silvestre ainda cria entrecruzamentos com a violência policial, opressão de classe e de gênero, e discriminação religiosa – todos (inclusive o buteco), talvez, elementos indissociaveis da vivência brasileira.
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BUTECO
por Silvestre Mendes de Oliveira
Roteiro musical de teatro
Atores atrizes
João / Pretinha / Manú / Mané / Ronaldinho / Medina / Bem Dito / policial / Dinorá / delegado / Guedes / Zé Bedeu
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ATO I
João ENTRA EM CENA
Levanta a porta do bar
Se benze
Liga a luz
Entra e abaixa a porta
Olha o relógio que marca 13:30
Caminha até o balcão
liga o rádio
sintoniza a estação
Sai do balcão
começa a arrumar o bar.
(arruma as cadeiras e limpa as mesas)
Confere se está tudo certo
Levanta de novo a porta do bar
Olha pro céu num gesto de agradecimento
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Pretinha sentada na manicure da esquina
Fazendo as unhas
Ouve o som da porta do bar abrindo.
Levanta vai até a porta do salão e olha pro bar.
Volta pra terminar as unhas com Manú
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Diálogo
Pretinha / Manú (manicure)
MANÚ
Esse seu João é um cara de compromisso: abre às duas da tarde em ponto, há mais de vinte anos!
PRETINHA
Pois é, Manu, o cara rala pra caramba e não dá conta de pagar o sistema nem os fornecedores, tá foda... Hoje vai ter um samba lá, e justo hoje, que tô de folga, ele me chamou. Vô lá dá uma ajuda pra ele --- a rua tá difícil, amiga... Tenho que chegar às 3 horas, senta o alicate aí, Manú.
MANÚ
Já tô terminando, só falta essa última cutícula, já que você não quer pintar.
PRETINHA
Ai, ai, aaaai!...
MANÚ
Fica quieta, Pretinha, foi só um bifinho!
PRETINHA
Então, queria até pintar, mas como vou ajudar o João, vai acabar estragando. Coloca só uma base mesmo e tá bom.
MANÚ
Prontinho, viu como foi rápido?
PRETINHA
Valeu, Manú, bom trabalho, ficou linda. Assim que o João me pagar, venho acertar contigo. Beijo.
MANÚ
Vai em paz, Nega. À noite eu encosto lá, tchau.
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(Pretinha sai Manú fala consigo mesma)
MANÚ
Essa “Bruninha” é foda.. Rala pacarai...
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Pretinha sai do salão
destrava a bicicleta
Não monta vai empurrando a bike
atravessa a rua andando até o João
Encosta a bike
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Diálogo
João / Pretinha
JOÃO
Oi, celebridade... tudo bem?
Chegou cedo hoje.
PRETINHA
E aí, seu João, tudo beleza?
Eu estava ali na Manú fazendo as unhas... Vô lá na goma guardar a magrela, tomar uma ducha, e já, já eu volto.
JOÃO
Conto contigo, irmã!
PRETINHA
Estou viva, seu João, não se preocupe. Confia na mãe que não vou ramelar na missão. O senhor sabe que a vida não dá colher de chá, trabalhei até de madrugada mas tô na área, se eu for viver só da rua, morro de fome. Até daqui a pouco. Hoje o bicho vai pegar.
JOÃO
Vai lá, fia.
PRETINHA
É nós, seu João, partiu chuveiro.
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Pretinha monta na bike
O traseiro fica bem empinado
João não tira os olhos até ela virar a esquina.
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(João entra pensativo, falando sozinho)
JOÃO
Ah, se eu tivesse uns 20 anos a menos...Nem precisava do azulzinho.... Rá, rá, rá, rá! Mas a preta tá em outra, nem tão cedo vai querer homem fixo na caminha dela.
João pega os tacos de sinuca em cima da mesa, coloca no suporte. Vai pra detrás do balcão.
Chega o primeiro freguês.
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Primeiro cliente: Mané
Mané entra no bar
Vai até o balcão
Apoia o braço
Diálogo
Mané / João
MANÉ
Salve, seu João, vamos começar os trabalhos, põe aquela e passa a régua.
JOÃO
Começando cedo, camarada!
MANÉ
A gente tem que se hidratar... Aproveita e me dá aquele torresmo peludo, não, não, me dá aquele ovo rosa.
JOÃO
Vai pimentinha?
MANÉ
Manda!
(Mané fica batucando no balcão, acompanhando o samba no rádio.)
JOÃO
Conhece esse samba, Mané?
MANÉ
Já ouvir muito no rádio. Bom pacaralho !
Quem são esses cara?
JOÃO
Ah, esse pessoal é o “Lado B”, que as grandes gravadoras não querem gravar. São os “Bocas de Versos” um grupo que toca aqui nas quebradas da zona leste. Aliás, hoje eles vão fazer uma roda de samba aqui. Pinta aí de noite.
MANÉ
Pode crê, sei quem são. Rapaziada promissora, sempre fazendo coisa nova. Uma hora eles vão estourar!
JOÃO
É isso aí! Puxa uma cadeira aí, Mané, deixa eu esquentar o mocotó.
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Panela no fogão
João cantando ao som do rádio
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Cliente chegando (MEDINA)
Sotaque (nordestino)
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Diálogo
Medina / João
MEDINA
Salve, seu João!
JOÃO
Fala aí, mano Medina!
MEDINA
Tô sentindo cheiro de mocotó, vou querer um pra segurar a bebedeira. Tá reservada aquela mesa ali ou posso sentar?
JOÃO
O que é isso, camarada? Malandro não senta, malandro se acomoda... rá, rá, rá, rá!
MEDINA
Vacilei, seu João, um a zero pra você. Olha: junto com o mocotó, manda aquela gelada pra mim!
JOÃO
Ao seu dispor, camarada! Se acomode que eu já chego aí;
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João leva cerveja e o mocotó até a mesa, e já cumprimenta outro casal que acabou de chegar.
JOÃO
Vamo chegando que eu já vou trazer o cardápio, o mocotó acabou de sair.
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O Bar começa a encher.
Pretinha chega de vestido curto e o pessoal torce o pescoço pra admirar a moça.
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Cochichos dos clientes
CLIENTES
(Seu João é que é feliz, uma funcionária assim todo mundo queria!)
(Eu pagava o dobro pra ela trabalhar pra mim...)
(Quero ser servido por ela!)
(A cerveja pode até vim quente, mas bebo assim mesmo!)
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PRETINHA
Tamo na área seu João, já vou atender ali.
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Pretinha chega pra atender “Bem Dito”.
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(João olha de lado
Fala consigo mesmo)
JOÃO
Isso não vai prestar...
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Bem Dito nem espera pretinha mostrar o cardápio e começa o xaveco.
Em dueto musical
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Primeira cena musical
( dueto musical)
PRETINHA x BEM DITO
BEM DITO
Vamo lá pra casa, Pretinha
Tira esse avental
Quero você só pra mim
Deixa esse povo pra lá
PRETINHA
Sai pra lá, seu vagabundo
Vê se deixa de xaveco
Vim aqui pra trabalhar
Respeite o nosso boteco
BEM DITO
Pra que tanta brabeza
Eu só quero te ajudar
Não me maltrate assim, Ó Pretinha
Senão eu posso gamar.
PRETINHA
Tu não merece resposta, malandro
Não vê que eu vim trabalhar
Pra você eu dou as costa
Vê se tu vai te catar
BEM DITO
Por você eu cato lixo
Posso até lamber o chão
Não me maltrate assim, ó Pretinha
Tu manda no meu coração.
(Breque pra terminar )
PRETINHA
Vixi, eu nunca vi malandro que é malandro lamber o chão!
(Sai, vai atender outra mesa)
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Bem Dito fica revoltado na mesa
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Pretinha continua em movimento, limpando mesa,
enquanto o pessoal vira o pescoço pra acompanhar.
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Mulher discutindo por ciúmes da Pretinha,
Repreendendo o companheiro.
(Bar lotando)
Samba tocando no rádio
Pretinha sai no rebolado, chega no balcão.
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PRETINHA
Seu João, vou no banheiro.
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Ela sai, Bem Dito vai atrás da Pretinha no banheiro e começa a xavecar.
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Diálogo
Bem Dito / Pretinha
BEM DITO
Olá, minha beldade, tem um tempinho pra mim?
PRETINHA
Vaza, malandro, que não quero papo e tenho muito serviço!
BEM DITO
Acredita em amor à primeira vista?
PRETINHA
Quem vai na conversa de pato é ganso, essa cartilha eu conheço de cor e salteado. Deixa eu voltar que o bar tá lotado, e não quero saber de lorota.
BEM DITO
Nem depois do expediente?
PRETINHA
Nem depois do funeral! Vaza, malandro!
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(João-chama pretinha pelo nome)
Bruninha, tem mesa pra ser atendida.
(PRETINHA)
Tô indo, seu João, deixa eu despachar esse mala!
Pretinha mostra o canivete e ameaça Bem Dito:
(PRETINHA)
Respeito é bom e conserva as bolas no lugar, malandro! Sai fora!
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(Bem Dito volta magoado, senta, bebe o copo de um trago e começa a cantar _
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Segunda cena musical
Melodia de valsa
(Bem Dito cantando )
Mesmo que me acabe com seu veneno
Eu mordo a maçã...
No seu conto de fadas em vez de príncipe
Eu sou só o vilão.
Parece que nossa história
Até agora não tem solução...
Mas no seu conto de fadas
Caio na cilada com satisfação...
Neste show da vida nossa canção ainda não tocou
Como um botão de rosa que ainda não desabrochou
Daí eu volto pro bar, na cachaça vou me afogar
E vou beber cada lágrima que rolar...
(João chega pra conversar com Bem Dito)
JOÃO
Eita, Bem Dito, hoje é dia de festa, sem chororô no meu bar!