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 CONTEÚDO 

ALUMBRAR-SE AO MUNDO DIRETAMENTE, OU COMO O MOVIMENTO ULTRAPASSA O SUJEITO — Erin Manning

Atualizado: 1 de set.


Neste ano, a GLAC edições tem a alegria de publicar pela primeira vez no contexto brasileiro o livro Políticas do Toque: sentidos, movimento e soberania, da filósofa canadense Erin Manning. No livro, a autora discorre sobre como os aspectos sensoriais de um corpo constantemente se deparam com estruturas políticas coercitivas, gerando a necessidade de reformularmos a nossa própria estrutura e percepção dos sentidos – dando ênfase principalmente ao toque e sua capacidade de informar e reformar um corpo –, como meio de propor intervenções políticas que nasçam da experiência sensível de estar em contato com uma matéria-mundo.


Como forma de ampliar o debate acerca do pensamento de Erin Manning, ao longo das próximas semanas, o blog-revista da editora disponibilizará uma seleção de materiais relacionados à autora, incluindo a tradução de alguns de seus artigos e ensaios, bem como pesquisas de agentes e coletivos com práticas que teçam diálogos com a sua obra.


No seguinte texto, traduzido pela artista e pesquisadora Bianca Scliar Cabral, Erin Manning toma emprestado o termo "alumbramento", de Alfred North Whitehead, para pensar um corpo que emerge de suas relações sensoriais com o mundo, formado, informado e deformado a partir de suas vivências e movimentações. A autora defende que, dessa maneira, é possível escapar de uma centralidade do "eu", para pensar uma situação em que o corpo e sua movência se deem de maneira indivisível, sem que o "eu" anteceda o movimento e, assim, poder perceber e experimentar o mundo sem uma forma pre-existente das coisas - e até mesmo de si, que vai se construindo no durante sua vivência. Para isso, a autora vai tensionar uma parte da teoria fenomenológica proposta por Merleau-Ponty para pensar uma ideia de percepção que extrapole o conceito inicial de subjetividade.


Senga Nengudi. Performance Piece (1978). Fotografia em preto e branco. Fotógrafo: Harmon Outlaw



Três questões, Três Proposições


Este artigo gira em torno de três questões:

  1. Como o movimento produz um corpo?

  2. Qual tipo de sujeito é introduzido no pensamento de Merleau-Ponty e como esse sujeito se engaja ou interfere com a atividade que ele considera como “corpo”?

  3. O que ocorre quando a fenomenologia (Merleau-Ponty) encontra a filosofia processual (Alfred North Whitehead)?

e estrutura-se sobre três proposições:

  1. Nunca há um corpo enquanto tal: o que conhecemos são contornos e cantos, forças e intensidades: um corpo é seus movimentos;

  2. O movimento não deve ser reduzido ao deslocamento;

  3. Uma filosofia do corpo nunca inicia com o corpo: ela corporifica.


Nos escritos de sua maturidade (em um período em que ele deve ainda ter tido décadas para desenvolver seu pensamento), Merleau-Ponty descobriu Alfred North Whitehead. Ao longo de alguns anos, ele lecionou a obra de Whitehead sobre a natureza e começou a explorar como os conceitos de filosofia processual (um modo de pensamento que começa com o processo e nunca com o "sujeito" de um processo, um que não privilegia o humano, mas trabalha, em vez disso, sob uma perspectiva que critica o que Whitehead chama de "bifurcação da natureza"[1]) poderiam oferecer insights sobre sua abordagem fenomenológica[2].

A virada de Merleau-Ponty para a teoria de Whitehead coloca em questão muitos dos postulados centrais da fenomenologia, dos quais o mais evidente, talvez, seja a relação entre consciência e experiência. Isso leva Merleau-Ponty a admitir, nas notas que acompanham “O Visível e o Invisível, que o que ele chama de distinção “consciência-objeto”, no cerne de sua Fenomenologia da Percepção, levou-o ao engano[3]. Repensar a experiência, resultante do trabalho com conceitos Whiteheadianos, também desafia outras chaves fenomenológicas fundamentais para a obra de Merleau-Ponty – que há um sujeito que percebe, por exemplo, que os sentires do mundo margeiam a experiência através do humano, que permanece central a aparência do mundo, e que a sensação equivale à experiência.

Para Whitehead, a experiência é uma mundificação que produz "formas subjetivas", mas nunca pressuposta por elas. A consciência é somente o ápice da percepção (e a experiência não depende dela). A sensação é uma fase secundária da percepção (embora sempre interligada e cocompondo) - ou o que ele chama de preensão - que sempre começa não com um sujeito sensorial, mas com a força de uma sintonia relacional (eficácia causal) ancorada sobre a ação no-ato[4] de um conjunto singular de condições a partir das quais, para algumas formas de vida, uma segunda fase, que ele chama de imediação presentacional, emerge (a experiência da qualidade tal como ela se expressa em um campo de sensações). Relação e sensação estão cocompondo na experiência, participativas na experiência direta de um mundo in-formação[5]. O sujeito não precede essa experiência, in-forma-se por ela.

Em Whitehead nunca há a primazia do humano para a experiência: a percepção está no mundo e não é do ou para o mundo. A virada de Merleau-Ponty para Whitehead possivelmente leva a fenomenologia ao seu limite, um limite que é mais que humano, e que começa em momentos de lucidez e contradição, fascinantes e hesitantes (alguns dos quais são explorados a seguir), e que questiona onde a fenomenologia poderia ir se fosse fugir de alguns de seus postulados centrais. O que aconteceria com a fenomenologia, se ela realmente se aprofundasse na filosofia do processo?

A força da filosofia do processo reside na sua capacidade de criar um campo para a experiência que não começa nem termina no sujeito humano. Não há sujeito "da" experiência, nenhuma consciência para além do acontecimento em seu desenrolar. Os leitores de Deleuze e Guattari reconhecerão estes postulados e Whitehead claramente desempenha um papel fundamental também aqui. Para Whitehead, há sempre um complexo entrelaçamento entre o que é absolutamente aquilo o que se tornou ou está se tornando (uma ocasião actual[6]) e o que está no campo do potencial e pode se expressar, como o virtual em Bergson e Deleuze, apenas em seus efeitos, em suas contribuições ato-antes, no ato, da experiência.

Movimento, como Bergson mostrou com seu trabalho sobre duração e tempo (onde a experiência de tempo como tal é sempre uma subtração de uma duração virtual, uma subtração que altera para sempre o teor do campo de duração do qual foi extraído), é a chave para entender a relação complexa entre o actual e o virtual. Há sempre dois fluxos de movimento cocompondo, um deles virtual, mas contributivo, e um deles atualizado. José Gil chama o movimento contributivo – ou duracional – de "movimento total"[7]. Movimento total é o campo do movimento movendo-se, a força virtual do movimento enquanto percorre e se insinua em todos os deslocamentos actuais, em todos os modos de tomar-forma e nas ecologias da vida-vivida[8].

Um corpo nunca preexiste seu movimento. O movimento total flui através de todos os modos incipientes em que se toma forma (contornando a si mesmo através de um "objeto", sombreado a si mesmo enquanto “figura-se”). O que se atualiza enquanto este ou aquele deslocamento, esta ou aquela forma, é apenas uma breve instanciação do que esse movimento se tornou. Coreógrafos como William Forsythe sabem disso bem: Forsythe fala de não encontrar uma forma (“faça esta pose”), mas em dançar a própria força do movimento movendo-se(“encontre o movimento na pose e mova-se com ele"). Ele pede a seus dançarinos para corpar, não para “representar” um corpo. Do substantivo ao verbo, o que o movimento faz é tornar aparente que nada é exatamente o que parece.


Para além de Mim e do Meu


O fato de nada ser bem o que parece sugere um tipo de alumbramento. Um alumbramento não de um sujeito (não "meu" alumbramento) mas um alumbramento em movimento (um alumbramento que move o eu no qual estou me tornando).

Maxine Sheets-Johnstone escreve:


"Dizer que, ao improvisar, estou no processo de criar a própria dança a partir das possibilidades que são minhas a qualquer momento da dança, é dizer que estou explorando o mundo em movimento; isto é, ao mesmo tempo em que estou me movendo, estou levando em conta o mundo que existe para mim aqui e agora. Como alguém pode pensar sobre o mundo em palavras, eu alumbro o mundo diretamente, em movimento; estou ativamente explorando suas possibilidades e o que percebo no curso desse alumbramento ou exploração está envolvido intrínsecamente ao processo de mover-se". [9]


No relato de Sheets-Johnstone, o desejo de discretizar o "eu" e o "meu" do movimento ainda é marcante, apesar da tentativa em articular uma qualidade de movimento que excede a “tomada-de-forma" planejada por um deslocamento prescrito exteriormente, o que ela está procura conceitualizar como a ausência de "eu" de um movimento que “alumbra o mundo diretamente". Este eu, meu, minha, é um hábito, uma maneira de dizer que indica a progressão linguística que perpassa muitas línguas, onde o fraseado faz do sujeito o incitador de toda ação. Se há movimento, este deve ser "meu". E contudo, nesta citação (uma citação que faz parte de um trabalho, devo acrescentar, que, no momento em que foi escrito, ainda estava enredado dentro de uma perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty que Sheets-Johnstone, desde então, deixou para trás), há um retorno estranho ao próprio "eu" que a enquadra. O "eu" de "Estou alumbrando o mundo diretamente, em movimento" está eclipsado na diretividade do encontro: no alumbramento da improvisação, o "eu" é efetivamente deixado para trás. Ainda permanece, é claro, na escrita: "Eu estou explorando ativamente suas possibilidades e o que eu percebo no decorrer deste alumbramento ou exploração é envolto no próprio processo de mover-se", contudo, menos enquanto conceito e mais como um modo de guardar o espaço. Ao que parece Sheets-Johnstone teve aqui um insight que ainda não alcançou a reformulação necessária na estrutura semântica. No alumbramento não sou "eu", mas o movimento que torna-se o sujeito.

Se este for o caso, a força da proposição poderia ser lida diferente: não é um "eu" quem está no processo de criar uma dança, mas a própria dança que está no processo de criar um "eu", um eu que na sua incorporação vai conhecer o mundo diretamente. O eu está em movimento, ativo em uma mundificação, levando o mundo em consideração, cocompondo com as inflexões do movimento, em sintonia com suas tendências a tomar forma. O alumbramento é a capacidade do acontecimento de criar um corpar[10] que excede a si mesmo, alterando o próprio campo do que o "eu" poderia ser.

Esse tipo acontecimento-movimento[11] repleto de alumbramento raramente é averiguado como tal – sendo rapidamente resumido ao que sucede ao movimento-movendo-se. Mas mesmo sem que sintamos esta experiência do alumbramento, alumbramos o mundo diretamente o tempo todo, mesmo no mais banal dos movimentos cotidianos.

Existe um número infinito de tendências-em-formação[12] que preenchem qualquer acontecimento-movimento. Estas tendências-em-formação estão mergulhadas em hábitos que, apesar de estarem em modulação contínua, tendem a afinar o movimento para a sua concretização – este ou aquele destino, esta ou aquela pose, este ou aquele eixo.

Afinar o movimento em uma direção, uma pose, um eixo formal, constrói o pano de fundo da sensação direta do alumbramento, que ocorre no ofuscamento do Eu. A chave para explorar o potencial do movimento não é negar estas instâncias, nem de retorno-à-forma nem de orientar-se diretivamente, mas tornar-se consciente de que todas as movências, em última instância, excedem o que parece estar tão firmemente no centro do movimento: o eu. O movimento atravessa o eu que está em formação: experiência, percepção, sensação – tudo isso são movimentos, e cada um contribui, em uma infinidade de maneiras, para o que "eu" se tornará em qualquer ocasião dada.

O movimento se move e na movência, na atualização da experiência, ocorrem inclinações. Mas essas inclinações ainda não são corpos, ainda não são formas – são inflexões, forças direcionais através das quais um certo nó de tendências começa a se unir. Esse nó é o corpar. Não é um "eu", exceto no sentido de Individuação. É o que o "eu" terá se tornado no tempo absoluto desta iteração singular. Na individuação, no que Whitehead chama de concrescência da ocasião actual, o que se individuou é absolutamente aquilo o que é. Mas apenas fugazmente, posto que é percorrido pelas forças de seus subseqüentes devires. O que surge como forma, portanto, nunca é um sujeito genérico, é o sujeito do acontecimento. Superjecto[13], como Whitehead diria. E então nós temos duas tendências concomitantes. Por um lado, na experiência do movimento-movendo-se, um “eu” frouxo, o ingresso do movimento total. O movimento oscila no potencial. Por outro lado, temos uma subtração do potencial do acontecimento, que reduz o movimento para esta ou aquela ocasião atual. Da imanência ao no-ato[14]: todo evento oscila com as tensões dessas fases-limítrofes da experiência. E no ato, o que se torna conhecido, quando pode ser sentido como tal, é o tremor, o alumbramento dado na ausência de um “eu” pré-determinado no desdobramento do acontecimento, um alumbramento que não pode deixar de indagar: onde estou eu nesta turbulência do movimento?

"Onde estou eu" toca na qualidade inatingível do movimento-movendo-se, lembrando-nos que o movimento está sempre na infinidade de uma encruzilhada entre um onde e um como e nunca em um quem. Não eu, não aqui, não ali, onde, no meio da experiência em-formação. Não “quem”, mas "como" – não quem é o sujeito, mas como ele vem à experiência (como acontecimento, corpando). “Onde eu estou eu” – um campo ontogenético de experiência em construção.

No campo ontogenético da experiência, ainda não existe uma categoria de self, de corpo, daquele que percebe exteriormente. Alumbrar o mundo diretamente é ter tocado, momentaneamente, o afrouxamento de “onde” o movimento se move. “Onde estou?” - no meio de uma ecologia de relações, dançando a dança que me dança. “Onde estou eu?” – inundada em vestígios de técnica, com sinalizações de forma e expectativa, movida por um movimento que me excede[15]. “Onde estou eu?” - transportada pela força do movimento-movendo-se, carregada por tendências no movimento em direção a uma reorientação do campo de expectativa. Onde? Dançando no limite do que pode um corpo.

Alumbrar-se ao mundo diretamente, em movimento, é participar em um envolvimento que desafia a centralidade do eu. Não é um "eu", como um sujeito fechado em si, que cria o movimento, mas o movimento que está no processo de recalibrar um “eu” que acabará por emergir, sem âncoras. Não "eu estou alumbrando-me“, mas " onde este movimento me alumbra?" Um corpo nunca antecede sua movência.


Movimento total


Alumbrar é o conceito-limite deste processo de recalibração, a oportunidade, em movimento, de experimentar o mais-que possível do movimento: seu potencial infinito. Alumbrar-se ao mundo diretamente é experimentar ser dançado no movimento, sentir a composição do movimento afinando-se a uma topologia do espaço-tempo que afeta, que torce o corpar emergente afetivamente. Afinal o alumbramento vem à tona apenas em um campo de exploração não motivado por um sujeito pré-existente. O alumbramento é a força de ter sido movido, sentida no fluxo presente, a força que calibra cada ponto de partida e todo o equilíbrio, uma força de desorientação exuberante. Ao alumbrar-se ao mundo diretamente, o mais-que do movimento actual - o que José Gil chama de movimento total - é tocado, é sentido. Este mais-que – a força da intensidade virtual do movimento – participa da movimentação, abrindo o movimento para uma qualidade que excede a tomada de forma deste ou daquele deslocamento. Aqui o movimento dança além de sua técnica em direção ao que chamei de tecnicidade – a força de sua singularidade potencial – o movimento sempre ativo além da estabilidade de sua iteração passageira. Esta força do movimento-movendo-se tem uma qualidade inefável, uma qualidade – uma tonalidade afetiva em movimento – que toca o limite da força da forma do movimento, mudando a dança para um lugar de invenção momentâneo. Não o sujeito inventando, mas o movimento inventando.

O movimento inventa no além da possibilidade, se a possibilidade é concebida como aquilo que está dentro do campo já-conhecível ou já-pensável, onde as variações são sempre variações sobre um tema. O movimento excede o tema, sempre para além do que alcança a forma. O Movimento Total é como poderíamos conceituar o além da possibilidade do movimento, o campo de seu potencial. É o campo relacional do movimento-movendo-se, um plano virtual que faz o ingresso neste ou naquele movimento actual, mas nunca é atualizado enquanto tal. Se entendermos fenomenologia tal qual definida por Merleau-Ponty, como “um estudo da aparência do ser até a consciência”. o movimento total não pode, de modo algum, pertencer ao registro do fenomenológico (1981, pg.61, tradução de Bianca Scliar). É sentido, mas não pode ser reduzido ao ser. É sentido, mas não em uma consciência do que pertence a um sujeito exterior ao acontecimento.

O movimento total, quando sentido nas margens do movimento actual, leva o acontecimento para o registro de alumbramento. A empolgação do “uau” do alumbramento pode parecer trazer um sujeito de volta ao acontecimento - “foi mesmo eu !?” – mas, isso nunca terá sido um sujeito fenomenológico, pois este nunca precede o acontecimento. O sujeito através do qual o alumbramento é sentido é sempre um superjecto Whiteheadiano, o resultado da força de ajuntamento do acontecimento.

Conhecer um movimento “como tal” é ter arrancado o movimento de seu processo. Dançar as fronteiras é aflitivo e impossível de sustentar – a aterrissagem é sempre iminente. E então a experiência de alumbrar-se tem curta duração: a forma inevitavelmente retorna. No entanto, a forma é diferente a cada vez, ativa tal qual na constelação de seu surgimento. A hecceidade do "aqui" da forma é uma miragem. Afinal o movimento não parou. O que parou e tomou forma é apenas uma subtração do total campo de movimento – um passo, uma forma, uma figura sempre a caminho de outra coisa. Isto não quer dizer que existe outra forma mais perfeita, mais alinhada, mais complexa em outro lugar (escondendo-se em algum stratum neutro erroneamente tomado como sendo aquele do "movimento total"). Esta forma agora é tudo o que existe, e com o ingresso do movimento total em suas fronteiras, ambos, movimento total e actual transformaram-se (cada um no limite do outro). Cada tomada de forma é uma recalibração do que sempre foi apenas um campo, uma ocasião em sua duplicidade desequilibrada. É vital não colocar movimento total dentro de um tipo de transcendência, como se o seu plano fosse definitivo e sempre assegurado. O movimento total é uma qualidade do mais-que do movimento movendo-se, que acompanha todas as tomadas de forma e que só pode ser sentido na tomada de forma que é a da ocasião actual do movimento. Cada forma emergente ajusta o campo extensivo da experiência, sintoniza seu movimento total em direção à novas ecologias, novos potenciais. O movimento total não é para ser possuído, não é para ser experienciado enquanto tal. Sua contribuição está no como a tomada da forma do movimento ocorre, e não em seu "o que." O movimento total é a razão pela qual nenhuma forma pode ser reproduzida e o porquê de nenhum corpo poder preexistir o evento de sua corporeidade.

Este paradoxo do movimento – o fato de que não há reprodutibilidade definitiva, nem tomada de forma completa e final, de que nos movemos infinitamente, mas nunca estamos realmente lá – é um desafio para o pensamento, especialmente à luz do fato de que é o movimento que permite a tomada de forma que ele infinitamente excede. Este paradoxo está no cerne da filosofia de Whitehead e é sua preciosidade. Para segui-lo, a chave é desistir do conceito de tempo métrico e considerar o tempo em toda a complexidade duracional que Bergson propõe, tendo sempre em mente que qualquer acontecimento subtraído da infinidade da duração tem um efeito sobre esta infinidade, alterando seu curso. Isso nunca refere-se a criar dois campos opostos, o finito e o infinito, o actual e o virtual, mas a tentar tornar tangível o que suas harmonias transversais incitam.

Em um texto da maturidade de Merleau-Ponty intitulado Everywhere and Nowhere (1964), ele começa a endereçar uma noção semelhante ao movimento total. Merleau-Ponty escreve:


A extraordinária harmonia do exterior e interior só é possível através da mediação de um infinito positivo ou (já que toda restrição de um tipo de infinito seria uma semente de negação) um infinito-infinito. É neste infinito positivo que a existência actual das coisas, partes extra partes e extensão, tal como as pensamos (o que, ao contrário é contínuo e infinito) comunicam-se ou são unidas. Se, no centro e por assim dizer no núcleo do Ser, existe um infinito-infinito, todo ser parcial o pressupõe, direta ou indiretamente, e é, retroativamente, real ou eminentemente contido nele (1964b, pg.148-149, tradução de Bianca Scliar). [16]


Lawrence Lawlor lê esta passagem de acordo com a minha percepção de que, nesse período, Merleau-Ponty procura um vocabulário para a experiência que o tire do círculo vicioso de subjetividade[17], na qual a consciência continua a ser orquestrada por um certo sentido de intencionalidade orientada pelo sujeito. Na passagem acima, uma mudança parece estar ocorrendo no pensamento de Merleau-Ponty, que abriria a experiência a sua infinitude, sem privilegiar um ponto de partida primordial. O infinito-infinito não começa nem termina – como o movimento total, insere-se, sintonizando não com a contenção, mas com seu excesso. Alumbramento.

Senga Nengudi. Studio performance with R.S.V.P. (1976). Fotografia em preto e branco. Fotógrafo : Ken Peterson


A força do Movimento-Movendo


A força do movimento-movendo pode ser sentida no ingresso do movimento total no actual. Existe em todo movimento, cotidiano ou virtuoso, um mais-que que excede sua atualização. Gil discorre sobre o mais-que em termos de equilíbrios, sugerindo que cada estabilidade é uma multiplicidade – não há um eixo único do corpo, nenhum ponto isolado de êxtase. O que há, em vez disso, é o que Simondon chama de metaestabilidade – equilíbrio precário. Todo equilíbrio aparente é de fato composto por um infinito número de micromovimentos, movimentos tão minúsculos que são quase imperceptíveis, mas também de movimentos virtuais – intervalos, intensidades, forças. Nenhum pode ser pensado sem o outro – um micromovimento não é simplesmente um movimento menor. É a força vibracional dentro do movimento actual, que agita dentro de cada deslocamento, dentro de cada figura ou forma. É o que torna o movimento múltiplo e ativo de modo complexo.

O movimento virtual é também uma força vibracional, mas opera dentro do campo do movimento-movendo. O movimento virtual tem uma qualidade que flui através de, ao invés de agir sobre. No entanto, estes dois limites do mesmo campo de movimento – o actual e o virtual – são muito difíceis de distinguir. Tome o exemplo da pose do dançarino no yoga[18]. Aqui está em jogo um equilíbrio complexo: o torso estende-se para frente e para cima, uma perna aterrada, a outra suspensa por uma mão de tal modo que a perna estendida curva-se em direção à cabeça inclinada para a frente. A perna estendida se contrai em micromovimentos mesmo quando aparenta estar imóvel – milhares de reorganizações estão ocorrendo continuamente para sustentar a pose, evitando que caia para fora de si mesma, buscando uma metaestabilidade na imobilidade (a parada do movimento sempre se dá na saída de si mesmo – o equilíbrio deve permanecer em movimento para ser mantido). O papel dos micromovimentos está claro, mas e o dos movimentos virtuais? Todos que já tentaram entrar nesta postura admitirão que pensar é algo perigoso. O que é esse "pensamento" que desestabiliza, se não uma força virtual? Essa força virtual do pensamento pode funcionar em mais de uma maneira. Se o pensamento é externalizado – como em um "pensamento sobre" – a tendência será cair fora da pose. Isso terá acontecido porque os micromovimentos que recalibram o equilíbrio e o movimento virtual que o intensifica ficarão cada vez mais dessincronizados. "Pensar sobre" cessará, de certo modo, o equilíbrio em movimento, levando a um movimento-fora-de-si que resultará na perda daquele equilíbrio particular. Por outro lado, um pensamento-com (que provavelmente será sentido como um não pensar) levará a uma fusão dos movimentos virtuais e dos micromovimentos de tal forma que o equilíbrio vai ser sentido como se o seu trabalho estivesse sendo feito por conta própria, sem mim. Isso ocorre porque este pensar-com é absorvido pelo trabalho do micromovimento: ele afina-se aos micromovimentos, como se fora um pensar desde dentro. Por outro lado, o pensar-sobre direciona a atenção a um estado fora do equilíbrio momentâneo, por isso desestabiliza aquilo o que já está precário.

O movimento se move com os movimentos de pensamento, com a junção do movimento que pensa a si mesmo. Aqui, o pensamento e o movimento tornaram-se uma coisa só. É isso que Gil referencia ao escrever sobre a "consciência do corpo” ou consciência[19]. Micromovimentos e movimentos virtuais sempre cocompõem para criar uma complexidade que chamamos de estabilidade, na qual cada equilíbrio, cada passagem ou postura já é sempre múltipla, metaestável, actual e virtual, mesmo quando aparenta estar em seu ponto mais imóvel.

A metaestabilidade do equilíbrio é o modo pelo qual um corpar toma forma, sempre levemente fora de equilíbrio, precário. Este tomar-forma singular é uma etapa no campo mais amplo do movimento-movendo: é sua capacidade de defasagem que tece seu movimento. Este equilíbrio precário, este corpar em desequilíbrio também é um movimento relacional. Ele não pode ser pensado fora de sua cossintonia implícita com o meio-associado - o campo relacional do intervalo - sua emergência. Corpares emergem das atividades dos intervalos – estes milhares de pequenos equilíbrios, estas milhares de pré-acelerações incipientes. É o pensamento em movimento que assegura a conexão destes intervalos. O pensamento, como uma força relacional, em conjunção com o movimento-movendo, o pensamento como aquilo o que ativa as complexas constelações do virtual e do actual que cocombinadas na movência. O movimento relacional é sempre um movimento do pensamento, e cada movimento do pensamento gera um no-ato do movimento movendo.

Quando o movimento relacional é sentido, seja na calçada ou em uma performance de dança, o que está em jogo é uma sintonia de afetos que excede o sujeito movente enquanto tal. O campo emergente do movimento-movendo em sua metaestabilidade múltipla é percebido momentaneamente de forma direta. Alumbrar-se ao mundo diretamente. Existe aqui uma qualidade de um corpo-excedente (não a perda do corpo)[20], um corpar em movimento que exprime a si mesmo com uma qualidade, talvez de simplicidade, sem esforço porque não é o sujeito, não é o corpo pré-moldado que executa um movimento, mas sim o campo relacional em si que se move. O movimento-movendo está ativando uma ambiência que ressoa com tudo o que está em seu caminho. Isso é o que Suzanne Langer quer dizer quando fala de forças virtuais, ou forças da dança.

José Gil toca no campo relacional na sua exploração sobre como um movimento fora de equilíbrio é alcançado na dança. Ele escreve: “O equilíbrio não é mecânico, físico, mas “virtual”. É o corpo virtual que dança (Suzanne Langer), não o corpo de carne e músculos. Ou ainda: o corpo de carne actualiza o virtual ao dançar, encarnando e desmaterializando-o simultaneamente[21]. Mas, como Gil alerta, isso não implica fazer uma separação entre dois sistemas, aquele do corpo e aquele do espírito (...) O equilíbrio do dançarino é virtual não porque deriva de uma ação da consciência sobre o corpo, como efeito de uma causa física, mas porque esta ação pertence à presença do corpo no momento exato em que se manifesta. A actualização do virtual é um ato. (GIL, 2001)

A manifestação, o no-ato do movimento-movendo está sempre no excedente da tomada de forma de si ou de seu deslocamento. A forma é nada além de uma reflexão tardia, uma demonstração física de uma certa imobilidade. Atualizar o virtual na dança implica em criar um encontro com o potencial que, enquanto atravessa a forma, nunca permanece ali. Este encontro com o “onde” do desaparecimento da forma permite que uma outra coisa apareça. Esta outra coisa é a metaestabilidade do movimento-movendo: o ponto vibratório onde o excesso de movimento e sua deterioração ante a forma estão em cocomposição. “O movimento do dançarino transformou o corpo em um sistema de ressonância [...] de tal modo que o infinito torna-se actual [...] e isso ocorre graças ao efeito de amplificação infinita que é obtido na ressonância de todo o movimento em um sistema de equilíbrio instável” (GIL, 2001).

Um eixo móvel emerge entre os movimentos que não mais esperam nem buscam um centro. O campo ressonante do movimento relacional está em si mesmo em movimento, criando uma multiplicidade de equilíbrios em ação. O campo da dança abriu-se para o mais-que de sua iteração física. Não há dois dançarinos, mas dois+i, onde “i” representa o intervalo, a individuação e o infinito-infinito.


Onde a fenomenologia se equivoca


Nas suas anotações tardias, Merleau-Ponty escreve: “Os problemas colocados na Fenomenologia da Percepção são irresolúveis, porque eu começo ali a distinção entre 'consciência' - 'objeto' ”. [22]

Conforme mencionado anteriormente, é em seu curso sobre a natureza (1956-1958) que Merleau-Ponty contorna de modo mais consistente o pensamento de Alfred North Whitehead. Aqui, tanto quanto em suas últimas anotações para o “Visível e o Invisível”, é possível sentir que, caso Merleau-Ponty tivesse vivido mais, Whitehead teria tido um papel central em sua filosofia, alterando seu trabalho do foco primordial dado à experiência vivida[23] para a questão do ato em sua relação com o infinito-infinito.

Para recapitular: semelhante ao movimento total, o infinito-infinito não pode ser conhecido como tal, mas é sentido em seus efeitos como uma força relacional ou contributiva. O movimento total é uma forma de trazer o conceito de movimento ao plano de imanência para tornar sentidos, tal qual no conceito do infinito-infinito, o contínuo desdobramento dentro e fora da imanência (por subtração) na atualização. A ocasião actual – aquilo que é absolutamente o que é, este passo, esta tomada de forma – nunca é completamente despojada deste potencial do infinito-infinito. Suas margens direcionadas à forma permanecem afinadas a ela, sempre, e é isso que faz com que o ato seja, em última instância, processual. Uma vez que esta forma sempre terá sido essa forma, e todos os outros modos de tomar forma sempre terão sido aquela forma, o no-ato (in-act) sempre terá sido momentâneo, e sempre já terá dobrado no campo imanente do nexo da experiência, a partir do qual novos modos de tomar forma, novos corpares terão emergido.

Em um pensamento