(trecho de "Prefácio — O sonho do povo na terra")
No início dos anos 1990, é bom lembrar, vivíamos anos de apatia generalizada, com o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim — acontecimentos que a classe política, a academia e a mídia ocidentais queriam fazer crer que significavam o fim de qualquer possibilidade de utopia. Um cidadão chegou a escrever que vivíamos o “fim da história” e que não havia nada a esperar do futuro além do capitalismo liberal. Pois aqueles indígenas chiapanecos encapuzados foram os primeiros a levantar-se globalmente para dizer: “Hoje decidimos! Basta! Somos os herdeiros dos verdadeiros forjadores de nossa nacionalidade, os despossuídos, somos milhões e chamamos a todos nossos irmãos para que se somem a este chamado como o único caminho para não morrer de fome ante a ambição insaciável de uma ditadura de mais de setenta anos, encabeçada por uma camarilha de traidores que representam os grupos mais conservadores e vende-pátrias”. Em sua ousadia inspiradora, o EZLN, já em seu primeiro comunicado, declarava guerra ao Exército mexicano!
No sul da Bahia, acompanhamos nas últimas quatro décadas o ressurgimento das lutas dos povos originários que foram, desde sempre, a raiz mais profunda da gente de nossa região — à qual se somaram, mais tarde, os povos vindos da África. Como os povos maias de Chiapas que se insurgiram por meio do EZLN, os Tupinambá, Pataxó, Pataxó Hã hã hãe, Kariri Sapuyá, Kamacã, Baenã, Guerém, Maxakali e outros de nossa terra se tornaram uma inspiração para nós, do Movimento dos Sem-Terra. Desde o período em que o MST estava se estruturando na Bahia, construímos uma aliança estratégica com os povos — inicialmente, com os Pataxó de Águas Belas, em 1988, depois com os Pataxó Hãhãhãe da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu, em seu processo de retomada desse território. Também estivemos junto com os povos indígenas na grande manifestação que construímos contra a comemoração que o mau governo colonizador queria fazer em 2000, no marco dos quinhentos anos da invasão portuguesa em Porto Seguro. E, como quase todos nós somos negros, descendentes, ao menos em parte, dos povos da África, também tivemos desde sempre uma afinidade muito grande com as comunidades remanescentes de quilombos, que são numerosas na nossa região. Afinal, todos sentimos na pele o que é a luta pela liberdade e contra a escravidão e o racismo.
Então, tal como o EZLN convocou na Sexta Declaração da Selva Lacandona, em 2005, buscamos há muito tempo construir uma articulação de movimentos capaz de resultar numa ampla frente, de indígenas, negros, camponeses, para criar esse “outro mundo possível” pelo qual lutam nossos compas de Chiapas. Foi com esse espírito que surgiu a Teia dos Povos, em 2012.
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— Mestre Joelson Ferreira