Com bastante delicadeza, o autor discorre sobre a cooptação de existências e lutas por meio de armadilhas discursivas, pautadas na "epistemologia do ponto de vista" que, quando abordada de maneira e por motivações equivocadas, acaba por desconsiderar interseccionalidades, individuações e outras complexidades que estruturam o tecido social.
Samantha Canovas, da série Reversíveis, 2012-2015
“Eu estou passando a bola porque não acho que sou a pessoa certa para escrever essa história – não tenho noção nenhuma do que é ser uma pessoa negra... posso te mandar o Google docs com minhas anotações também?”
Eu me contorci todo por dentro. Foi uma oferta inocente com uma motivação adequada: Helen, uma jornalista freelancer, estava se oferecendo para abrir mão de algo por mim, preocupada que estava em viver um ethos de justiça racial. Mas eu também me preocupava com a possibilidade de ser uma armadilha.
Mesmo deixando de lado o erro sobre a dinâmica de poder envolvida na conversa (eu sou negro, mas também sou professor com certa estabilidade acadêmica), havia ali um problema que já tinha presenciado muitas vezes. Por trás desse pressuposto de que eu tinha algum insight proveniente de minha experiência que faltava a ela, havia a marca cultural reconhecível de uma perspectiva polêmica e muito discutida sobre conhecimento e política: a epistemologia do ponto de vista [standpoint].
Se você pegar uma definição básica da epistemologia do ponto de vista, é difícil encontrar algo controverso. A International Encyclopedia of Philosophy resume-a em três pontos que parecem inofensivos:
O conhecimento é socialmente situado;
Pessoas marginalizadas possuem algumas vantagens posicionais para adquirir algumas formas de conhecimento;
Programas de pesquisa devem refletir os fatos anteriores.
Liam Kofi Bright argumenta de maneira convincente que esses pontos são derivados de uma combinação de 1) compromissos empiristas básicos, e 2) uma explicação minimamente plausível de como o mundo social afeta e quais conhecimentos os variados grupos de pessoas vão procurar e encontrar com maior probabilidade.
Então, se o problema não está na ideia básica, onde é que está?
Penso que o problema é menos esse núcleo de ideias e mais as normas vigentes que o convertem em prática. O chamado para “ouvir as pessoas mais afetadas” ou para “colocar as pessoas mais marginalizadas no centro” é onipresente em muitos círculos acadêmicos e ativistas. Mas isso nunca me desceu bem. Pela minha experiência, quando dizem que precisam “escutar as pessoas mais afetadas”, não é porque querem fazer chamadas via Skype para campos de pessoas refugiadas ou colaborar com pessoas em situação de rua. Pelo contrário, o que esse discurso normalmente significou foi uma entrega de autoridade conversacional e de bens atencionais para quem se encaixava da maneira mais confortável nas categorias sociais associadas aos problemas em questão – não importando o que essas pessoas efetivamente sabiam ou não, ou o que elas experimentaram pessoalmente ou não. No caso de minha conversa com Helen, minha categoria racial me vinculava mais “autenticamente” a uma experiência que nenhum de nós tinha. Ela foi convocada a me passar a palavra pelas regras do jogo, segundo o entendimento que temos dele. Mesmo quando há muitos riscos envolvidos – quando pesquisadores em potencial discutem sobre como compreender um fenômeno social, quando ativistas estão deliberando sobre quais serão seus alvos –, essas regras prevalecem com frequência.
A armadilha não era o fato de que a epistemologia do ponto de vista estava afetando a conversa, mas como. Falando de maneira geral, as normas que colocam essa epistemologia em prática pedem por atos de deferência: fazer ofertas, passar a palavra, confiar. São ideias boas em muitos casos e as normas que nos pedem prontidão para realizar esses atos partem de motivações admiráveis: um desejo de aumentar o poder social de pessoas marginalizadas, identificadas como fontes de conhecimento e alvos legítimos de comportamentos deferenciais. Mas, na prática, esse tipo de deferência como regra ou orientação política padrão pode acabar contrariando os interesses de grupos marginalizados, especialmente em espaços de elite.
Alguns ambientes possuem poder e influência enormes: a Sala de Crise da Casa Branca, a sala de redação, a mesa de negociações, a sala de conferências. Estar nesses lugares significa estar na posição de afetar instituições e dinâmicas sociais mais amplas através de deliberações sobre o que se deve dizer ou fazer. Por si só, o acesso a esses espaços é uma vantagem social, frequentemente obtida através de uma vantagem social anterior. De um ponto de vista social, as pessoas “mais afetadas” por injustiças sociais que associamos a identidades politicamente significativas como gênero, classe, raça e nacionalidade são desproporcionalmente mais vulneráveis ao encarceramento, ao desemprego, ou a fazer parte dos 44% da população global sem acesso à Internet – consequentemente, elas estão fora dos espaços de poder e são amplamente ignoradas pelas pessoas dentro da sala. Indivíduos que atravessam as várias pressões de seleção social que filtram as identidades sociais associadas a esses efeitos negativos são os que têm maiores chances de estar na sala. Ou seja, eles têm a maior probabilidade de estar ali precisamente pelos modos como são sistematicamente diferentes das (e, portanto, potencialmente não representativos das) próprias pessoas que são solicitados a representar na sala.
Eu suspeitei que a oferta de Helen fosse uma armadilha. Não foi ela que a preparou mas, ainda assim, a armadilha ameaçava nos capturar igualmente. Normas culturais mais amplas – do tipo que é posto em operação por afirmações introdutórias como “Enquanto homem negro...” – preparavam o cenário para um conjunto de práticas de respeito ao ponto de vista que boa parte de nós conhece de maneira consciente ou memorizou inconscientemente. No entanto, as formas de deferência que frequentemente seguem disso acabam, em última instância, minando a si mesmas e servindo mais consistentemente à “captura pela elite”: o controle de programas e recursos políticos pela parcela mais privilegiada de determinado grupo. Se queremos usar a epistemologia do ponto de vista para desafiar configurações injustas de poder, é difícil imaginar uma maneira pior de fazer isso.
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Para falarmos do que há de errado com as aplicações deferenciais populares da epistemologia de ponto de vista, precisamos entender o que as torna populares. Uma série de respostas cínicas surge aqui: algumas pessoas (especialmente as mais favorecidas socialmente) não querem realmente mudanças sociais – elas querem apenas a aparência de mudança. Ou então: dar espaço para figuras de comunidades oprimidas é uma performance que esteriliza, visa o perdão por ou simplesmente nos distrai do fato de que quem oferece esse espaço detém privilégio de “estar na sala” suficiente para que sua “visibilização” de perspectiva tenha qualquer consequência significativa.
Samantha Canovas, da série Reversíveis, 2012-2015
Acho que existe algo de verdadeiro nisso, mas não estou satisfeito. Muitas das pessoas que apoiam e colocam essas normas deferenciais em operação estão mais para o caso de Helen: motivadas pelas razões corretas, mas confiando nas pessoas que compartilham o ambiente com ela na busca pela expressão prática apropriada para os compromissos morais tidos em comum ali. Não precisamos atribuir má fé a todas as pessoas – ou mesmo à maioria delas – que interpretam a epistemologia de ponto de vista a partir da deferência para explicar o fenômeno em questão aqui, e nem está claro se isso ajuda em qualquer coisa. As más companhias nas salas de poder não são o problema, pelo mesmo motivo que Helen ser uma boa companhia não era a solução: o problema emerge do modo como as salas são elas mesmas construídas e administradas.
Voltando ao exemplo inicial envolvendo a Helen, a questão não era somente que eu não tinha crescido no tipo de comunidade de baixa renda rejeitada pelo poder público que ela imaginava. A situação epistêmica era bem pior. Muitos dos fatos sobre mim, e que fizeram com que minhas oportunidades de vida fossem diferentes das que tiveram as pessoas que ela estava imaginando, eram os mesmos fatos que aumentavam as chances de me oferecerem algo em nome delas. Se eu tivesse crescido em uma comunidade assim, nós não estaríamos falando no telefone.
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Muitos aspectos de nosso sistema social servem como mecanismos de filtragem, determinando quais interações acontecem e entre quem elas acontecem; consequentemente, quais padrões sociais as pessoas podem observar. Na maior parte do século 20, o sistema de cotas imigratórias dos EUA destinava quase que exclusivamente a europeus a possibilidade de entrar legalmente no país e obter cidadania (ganhando a estima de Hitler, que afirmava que o país era a liderança incontestável “em desenvolvimento de políticas explicitamente racistas de nacionalidade e imigração”). Mas o Ato de Imigração e Nacionalidade de 1965 abriu possibilidades imigratórias, dando preferência à “mão de obra qualificada”.
A qualificação de meus pais explica bem a sua entrada no país, assim como as vantagens de classe e os recursos monetários (como riqueza) obtidos posteriormente, mas que já estavam lá quando nasci. Não somos uma família atípica: a população nigeriano-americana é uma das mais bem sucedidas populações de imigrantes do país (o que ninguém diz, claro, é que as aproximadamente 112,000 pessoas nigeriano-americanas com diplomas de pós é completamente insignificante perto das 82 milhões de pessoas nigerianas que vivem com menos de um dólar por dia – e nem se fala como uma coisa atravessa a outra). A seletividade da lei de imigração ajuda a explicar os níveis de educação da comunidade nigeriana diaspórica que me criou o que, por sua vez, ajuda a explicar minha entrada nas turmas avançadas e de honra ao mérito no ensino médio o que, por sua vez, ajuda a explicar meu acesso ao ensino superior... e por aí vai.
Assim, é fácil ver como essa forma deferencial da epistemologia do ponto de vista contribui para a captura pela elite de acordo com a escala em questão. As salas de poder e influência estão no final de cadeias causais que produzem efeitos em termos de seleção. Quanto mais altos os graus de educação que você atinge, mais restritas vão se tornando as experiências sociais – há estudantes que conseguem entrar em cursos de doutorado e estudantes que vão para a cadeia. Formas deferenciais de lidar com identidades podem herdar as distorções causadas por esses processos seletivos.
Mas é igualmente fácil ver como essa deferência faz sentido no âmbito local – nesta sala, nesta literatura ou área acadêmica, nesta conversa. Frequentemente, temos uma melhoria no procedimento epistêmico em comparação ao que veio antes: a pessoa que é alvo da deferência pode realmente estar melhor posicionada no sentido epistêmico do que outras, e ainda assim compartilhando a mesma sala. E talvez isso seja o melhor que podemos fazer quando mantemos no lugar a maioria dos fatos sobre esses espaços: qual poder reside neles, quem pode entrar e etc.
Samantha Canovas, da série Reversíveis, 2012-2015
Porém esses fatos são os que menos queremos manter no lugar. Fazer melhor que as normas epistêmicas que herdamos de uma história de apartheid global explícito é nivelar terrivelmente por baixo. Os fatos que explicam quem acaba em qual ambiente moldam nosso mundo de maneira bem mais poderosa que as disputas por prestígio comparativo entre pessoas que já estão dentro da sala. E, quando o assunto é justiça social, é comum que os mecanismos do sistema social que determinam quem entra em qual sala sejam justamente as partes da sociedade que queremos endereçar. Exemplo: o fato de que pessoas encarceradas não podem participar de discussões acadêmicas sobre liberdade que ocorrem fisicamente no interior do campus se relaciona, intimamente, com o fato de que elas estão trancafiadas em celas.
A epistemologia deferencial se apresenta como solução para problemas de caráter epistêmico e político. Mas, ela não apenas falha em resolver esses problemas, como acrescenta novos. Podemos pensar que questões de justiça devem se ocupar primariamente da resolução de disparidades envolvendo serviços de saúde, condições de trabalho e segurança material e interpessoal. No entanto, conversas sobre justiça têm sido moldadas por pessoas que oferecem conselhos práticos cada vez mais específicos sobre como resolver a distribuição de atenção e poder conversacional. Práticas de deferência que servem a campanhas focadas na atenção (exemplo: já lemos homens brancos demais, vamos ler algumas pessoas de cor) podem fracassar em seus próprios termos – termos esses altamente questionáveis: dar atenção a porta-vozes de grupos marginalizados pode, por exemplo, direcionar essa atenção para longe da necessidade de transformar o sistema social que produz essa marginalização.
Elites de grupos marginalizados podem se beneficiar desse arranjo de maneiras compatíveis com o progresso social. Mas, tratar os interesses dessas elites como necessariamente – ou mesmo supostamente – alinhados aos interesses do grupo como um todo é uma ingenuidade política que não podemos nos dar o luxo de manter. Esse tratamento de interesses das elites funciona como um Reagonomics racial: uma estratégia dependente de fantasias sobre a taxa de câmbio entre a economia da atenção e a economia material.
Talvez, os poucos sortudos que trabalham para encontrar as descrições mais culturalmente autênticas ou cosmeticamente radicais da carnificina em curso estejam realmente conseguindo uma vitória cultural. Assim, depois que nós da classe intelectual conseguimos a influência que merecemos e asseguramos nossos ganhos, estes passarão a gotejar nas mãos de trabalhadores que limpam a sala depois de nossas conferências, ou nas favelas ou regiões rurais das megacidades do Sul Global.
Mas é provável que não.
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Uma avaliação mais completa e justa dos problemas envolvendo epistemologia do ponto de vista e deferência deve ir além dos argumentos técnicos, colocando em questão os apelos emocionais dessa estratégia de deferência. As pessoas em ambientes de poder podem ser “elites” relativamente ao grupo que representam, mas isso não garante nada em termos de como elas serão tratadas nos lugares onde estão. Até porque uma pessoa privilegiada em um sentido absoluto (uma pessoa que pertence à metade do planeta que tem acesso seguro a “necessidades básicas”, por exemplo) pode, ainda assim, sentir que se encontra constantemente na parte mais baixa das dinâmicas de poder que ela efetivamente experimenta. A epistemologia da deferência responde a experiências reais, moralmente significativas de rebaixamento, invisibilização, marginalização e silenciamento. Portanto, ela possui um apelo não-epistêmico importante para os membros de grupos estigmatizados ou marginalizados: ela intervém diretamente em práticas de atenção e respeito que possuem consequências morais.
As dinâmicas sociais que experimentamos possuem um papel enorme no desenvolvimento e aprimoramento de nossa subjetividade política e de nosso senso de identidade. Mas a própria força da epistemologia do ponto de vista – seu reconhecimento da importância da perspectiva – se torna sua fraqueza quando ela é combinada com normas práticas de deferência. A ênfase nos modos pelos quais sofremos marginalização frequentemente corresponde ao mundo como nós o experimentamos. Mas, de uma perspectiva estrutural, os ambientes que nunca tivemos de entrar (e as explicações sobre o motivo de podermos evitá-los) podem nos ensinar mais sobre o mundo e sobre nosso lugar nele. Se isso for verdade, a abordagem deferencial da epistemologia do ponto de vista impede o “colocar no centro” ou mesmo a escuta das pessoas mais marginalizadas; ela nos faz focar nas interações que se dão no interior dos ambientes que ocupamos, ao invés de nos fazer prestar contas das interações que não experimentamos. Esse fato sobre quem é que está dentro da sala, combinado com o fato de que falar por outras pessoas gera um conjunto próprio de problemas importantes (especialmente quando elas não estão presentes para advogar por elas mesmas), elimina as pressões que poderiam perturbar a centralidade de nosso próprio sofrimento – e do sofrimento das pessoas marginalizadas que de fato conseguem entrar nas salas conosco.
Os perigos dessa característica da política deferencial são graves, assim como os riscos para as pessoas do lado de fora dos ambientes de mais poder. Para elas, que são alvo da deferência, essa política pode aumentar o poder de normas que minam o grupo. Em Conflito não é abuso, Sarah Schulman faz uma observação provocante sobre os efeitos psicológicos do trauma e do sentimento de superioridade: ainda que as duas coisas ocorram por razões diferentes e possuam estatutos morais bem diferentes, seus efeitos são padrões comportamentais semelhantes. Um dos padrões mais importantes nesse sentido é a representação incorreta do que está em jogo em um conflito (frequentemente superdimensionando ao dano) ou a representação da independência alheia como ameaça hostil (como nas falhas em colocar os assuntos ou as pessoas certas “no centro”). Esses comportamentos, independentemente de seu histórico causal, provocam efeitos corrosivos em indivíduos que os performam, assim como nos grupos ao seu redor, especialmente quando as normas de uma comunidade ampliam ou multiplicam esses comportamentos ao invés de constrangê-los ou metabolizá-los.
Samantha Canovas, da série Reversíveis, 2012-2015
Para quem pratica a deferência, o hábito pode alimentar excessivamente a covardia moral. As normas oferecem uma proteção social para a abdicação de responsabilidade: elas deslocam para heróis individuais, uma classe heroica ou um passado mítico o trabalho que é nosso e deve ser feito no presente. A perspectiva dessas pessoas pode ser mais clara sobre uma coisa ou outra em um assunto específico, mas, de maneira mais ampla, seu ponto de vista não é menos particular ou constrangido pela história que o nosso. E o mais importante: a deferência joga a prestação de contas, que é responsabilidade coletiva, nas costas de certas pessoas – e, normalmente, em uma caricatura hiper esterilizada e completamente fictícia delas.
As mesmas táticas de deferência que nos isolam da crítica também nos isolam da conexão e da transformação. Elas impedem o engajamento de maneira empática e autêntica com as lutas de outras pessoas – pré-requisitos de toda política de coalizão. Com as identidades se tornando mais e mais refinadas e os desentendimentos mais agudos, percebemos que a “política de coalizão" (entendida como luta através das diferenças) é simplesmente a própria política. Assim, em última instância, a orientação deferencial, como na fragmentação da coletividade política que ela permite, é antipolítica.
A deferência, no lugar da interdependência, pode aliviar feridas psicológicas de curto prazo. Mas o custo não é nada razoável: ela pode minar os propósitos epistêmicos que motivam o projeto, entrincheirando uma política que não é adequada para quem luta por liberdade e não por privilégio, pela libertação coletiva e não pela mera vantagem paroquial.
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Como uma abordagem construtiva sobre como por em prática a epistemologia do ponto de vista se distingue de uma abordagem deferencial? Uma abordagem construtiva focaria na busca de objetivos específicos ou resultados, e não em evitar “cumplicidade” com a injustiça ou aderir a princípios morais. Ela estaria preocupada, antes de tudo, com a construção de instituições e o cultivo de práticas de coleta de informação, e não com a ajuda. Ela focaria na prestação de contas ao invés de focar na conformidade. Ela seria calibrada diretamente para a tarefa de redistribuir recursos sociais e poder, e não para atingir objetivos intermediários que produzam ganhos em termos de pedestais e simbolismos. Ela focaria na construção e reconstrução dos ambientes, e não na regulação do tráfego dentro de e entre eles – seria um projeto de manufatura de mundo: voltado à construção e à reconstrução de estruturas de movimento e conexão sociais, ao invés de uma mera crítica às que já temos.
A crise hídrica em Flint (Michigan) mostra um exemplo claro tanto das possibilidades como das limitações envolvidas no aprimoramento de nossas políticas epistêmicas nesse sentido. O Departamento de Qualidade Ambiental de Michigan (MDEQ), um corpo governamental cuja tarefa é defender “comunidades saudáveis”, contando com uma equipe de 50 cientistas ao seu dispor, foi cúmplice do acobertamento da gravidade e da escala de uma crise de saúde pública, do seu início em 2014 até 2015 quando ganhou atenção em âmbito nacional.
O MDEQ, falando de uma posição de autoridade política e epistêmica, defendeu o status quo em Flint. Afirmou que “a água de Flint é segura para consumo”, e foi citado no discurso do prefeito Dayne Walling com o objetivo de “desfazer mitos e promover a verdade sobre o Rio Flint”, durante a transição da fonte de abastecimento para o Rio Flint em abril de 2014. Essa transição foi liderada pelo mandato do gestor emergencial da cidade Darnell Earley (um afro-americano, como muitas das pessoas da cidade que ele ajudou a envenenar). Depois que a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) difundiu um memorando interno da Agência de Proteção Ambiental (EPA) federal, em julho de 2014, expressando preocupações sobre a presença de chumbo na água de Flint, o MDEQ produziu um relatório adulterado que apresentava a quantidade geral de chumbo como se estivesse dentro das normas federais, misteriosamente deixando de contar duas amostras contaminadas.
A reação foi imediata. No mês seguinte da troca na fonte de abastecimento, moradores da cidade relataram que a água da torneira estava com uma cor diferente e um cheiro alarmante. Essas pessoas não precisavam que sua opressão fosse “celebrada”, “colocada no centro” ou narrada no mais recente linguajar acadêmico. Elas não precisavam que alguém entendesse como se sentiam por terem sido envenenadas. O que elas precisavam era que o chumbo fosse removido da água. Então elas resolveram trabalhar.
O primeiro passo foi o desenvolvimento de autoridade epistêmica. Para conseguir isso, elas construíram uma nova sala: uma em que moradores de Flint e ativistas colaboravam ativamente com cientistas que possuíam os laboratórios capazes de realizar os testes relevantes, e provar que o relatório do MDEQ era fraudulento. O protesto de moradores de Flint trouxe cientistas para sua causa, levando a uma campanha de “ciência cidadã” que aumentou a conscientização sobre a qualidade da água e distribuiu kits para que a vizinhança enviasse amostras para teste. Nessa etapa, a aliança entre moradores e cientistas venceu, e o envenenamento das crianças de Flint emergiu como um escândalo nacional.
Mas isso não era suficiente. O segundo passo – limpar a água – demandou mais que o reconhecimento por parte do Estado: era preciso distribuir trabalho e recursos para resolver o problema e endereçar as preocupações com questões de saúde que permaneciam. O que moradores de Flint receberam inicialmente da elite dominante foi uma mistura de trivialidades e chacota (parte disso inclusive vindo de um presidente que compartilhava sua identidade racial com muitas dessas pessoas). Neste ano [2020], no entanto, parece que o ativismo incansável de moradores de Flint e sua lista cada vez mais ampla de colaboradores obteve vitórias adicionais e mais significativas: a campanha está levando a substituição das linhas problemáticas de serviço ao seu estágio final e forçando o estado de Michigan a um acordo de 600 milhões de dólares para as famílias afetadas.
Esse resultado não é ainda uma vitória completa: não apenas os gastos com advogados vão levar parte considerável desse pagamento, como o acordo também não pode desfazer o dano que já foi causado para quem mora na cidade. Por si só, uma epistemologia construtiva não pode garantir a vitória completa contra o sistema opressor. Nenhuma orientação epistêmica pode desfazer, por si mesma, as variadas assimetrias de poder entre as pessoas e o sistema imperial de Estado. Mas ela pode contribuir tornando o jogo mais competitivo – quando a epistemologia deferencial sequer entra em campo.
Samantha Canovas, da série Reversíveis, 2012-2015
A maior ameaça às economias informacionais e de atenção, no que diz respeito à justiça social, não é a ausência de terminologia para descrever, de maneira cada vez mais precisa ou incisiva, as aflições epistêmicas, interpessoais ou relativas à atenção sofrida pelas pessoas desprovidas de poder. A maior ameaça é a erosão das bases materiais e práticas para o exercício do poder popular na produção e distribuição de conhecimento, especialmente aquele que poderia ajudar com ações políticas efetivas e constranger ou eliminar a predação por parte das elites. A captura e a corrupção dessas bases pelas elites bem posicionadas, especialmente empresas de tecnologia, seguem inabaláveis e sem qualquer desafio à altura, e isso inclui: o monopólio corporativo das imprensas locais, a destruição e pilhagem contínuas da profissão jornalística, a interferência de empresas e governos em processos democráticos fundamentais e o domínio dos interesses de elite na produção de conhecimento acadêmico e na circulação do resultado desses processos distorcidos, feita por organizações de mídia estabelecidas.
Lutar contra essas ameaças requer o abandono de certos ambientes – e a construção de outros.
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A abordagem construtiva da epistemologia do ponto de vista é exigente. Ela nos demanda que nademos contra a corrente: prestar contas e responder às pessoas que ainda não estão na sala conosco, construir os ambientes em que poderíamos estar lado a lado ao invés de ficarmos apenas navegando prudentemente os que a história nos legou. Mas uma demanda significativa assim é o que se espera quando o assunto é a política do conhecimento: a filósofa americana Sandra Harding fez a famosa observação de que a epistemologia do ponto de vista, quando entendida adequadamente, exige mais rigor da ciência e dos processos de produção de conhecimento em geral, e não menos.
Mas um assunto importante ainda não foi tratado aqui. A abordagem deferencial da epistemologia do ponto de vista frequentemente vem junto de uma atenção e uma preocupação com a importância das experiências vividas. Dentre elas, as traumáticas ganham um destaque especial.
Nesse ponto, não tenho muitos argumentos ou análises baseadas em pesquisa. O resto do que tenho a dizer vai mais na direção da convicção do que da argumentação. Mas a vida dos livros me ensinou que a convicção também nos ensina muitas coisas, ainda que as processe e apresente de forma diferente, então sigo em frente.
Eu levo preocupações sobre trauma especialmente a sério. Cresci nos Estados Unidos, uma nação estruturada pelo colonialismo de ocupação e pela escravidão racial, assim como pelas suas consequências, e uma coisa que não falta é trauma histórico e coletivo. Também cresci em uma comunidade diaspórica nigeriana, onde muitas pessoas tinham o genocídio como parte de seu passado recente. Nos âmbitos nacional e local, tenho visto muitos traços de normas e de personalidade, muitas peculiaridades em hábitos e ações que suspeito serem desdobramentos desses fatos. No nível da experiência individual, eu me observei e me senti mudar como reação ao medo pela minha dignidade ou minha vida, como reação à dor excruciante e à humilhação. Eu fico refletindo sobre esses momentos traumáticos frequentemente, mas quase nunca penso: “isso foi instrutivo”.
Essas experiências podem ser, se tivermos muita sorte, blocos de construção. O que se tira delas depende do modo como esses blocos são organizados: o que o pessoal da epistemologia do ponto de vista chama de “tese da realização”. Briana Toole nos esclarece que, por si mesmo, o lugar social de uma pessoa apenas a coloca em uma posição de saber. Vantagens ou “privilégios epistêmicos” são alcançados apenas por esforços deliberados e coordenados a partir dessa posição.
Eu concedo, sem qualquer problema, que esse é certamente um resultado possível da experiência da opressão: não tenho dúvidas que a humilhação, a privação e o sofrimento possam servir de maneira construtiva (especialmente no contexto de um esforço deliberado e estruturado de “conscientização”, como Toole enfatiza). Mas as mesmas experiências também podem destruir e, se eu tivesse de apostar em qual efeito vence com maior frequência, diria que é o segundo. Como Agnes Callard corretamente aponta, o trauma (e mesmo a raiva legítima e justa que normalmente o acompanha) pode corromper tão facilmente quanto enobrecer. Talvez ainda mais facilmente.
Contra a velha expressão, a dor – seja proveniente da opressão ou não – é uma professora ruim. O sofrimento é parcial, míope e autocentrado. Não deveríamos adotar uma política comprometida com a expectativa de qualquer outra coisa: a opressão não é um curso preparatório.
Quando o assunto é epistemologia deferencial, o que acredito mais profundamente é que ela pede algo do trauma que ele não pode dar. A abordagem construtiva pode ser exigente, mas a deferencial é ainda mais e de maneira bem mais injusta: ela pede que a pessoa traumatizada carregue sozinha o fardo que deveríamos compartilhar coletivamente. Quando penso em meus traumas, não penso em lições grandiosas. Penso na nobreza silenciosa da sobrevivência. O próprio fato de que esses capítulos não são os últimos de minha história é uma escrita suficientemente poderosa por si só. Ainda estar aqui para lembrar dessas experiências é o melhor que posso pedir delas.
A epistemologia deferencial nos pede para sermos menos que o que somos – e sequer nos beneficia em troca. Como Nick Estes nos explica no contexto da política indígena: “A armadilha da política do trauma é que ela transforma pessoas reais e lutas, sejam elas raciais ou por cidadania e pertencimento para indígenas, em uma questão de injúria. Ela define populações inteiras basicamente pelo seu trauma, e não por suas aspirações ou pela sua simples humanidade”. Essa performance não beneficia pessoas indígenas, mas “audiências brancas ou instituições de poder”.
Penso também no insight de James Baldwin de que as coisas que mais o atormentavam eram “as próprias coisas que me conectavam com todas as pessoas que estavam vivas, que sempre estiveram vivas”. Ter sobrevivido variados tipos de abuso, ter encarado experiências de quase-morte tanto em circunstâncias acidentais como de violência (mesmo os detalhes sendo diferentes do que ocorreu com pessoas ao meu redor) – isso não é uma carta a ser jogada em interações sociais gamificadas ou uma arma para uso em batalhas por prestígio. Não é algo que me dá um direito especial de fala, avaliação ou decisão em nome de um grupo. É uma manifestação concreta e empírica da vulnerabilidade que me conecta à maior das pessoas deste planeta. É algo que aparece entre outras pessoas, e eu como ponte e não uma parede.
Samantha Canovas, da série Reversíveis, 2012-2015
Depois de uma longa discussão, respondi a oferta de Helen com uma proposta: por que não escrevemos algo em conjunto?
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Olúfémi O. Táíwò é professor assistente de filosofia na Universidade de Georgetown. Seu trabalho teórico se apropria livremente da tradição radical negra, do pensamento anticolonial, da filosofia transcendental alemã, da filosofia contemporânea da linguagem, das ciências sociais contemporâneas e das histórias de ativismo e de pensadores ativistas. No momento, ele está escrevendo um livro chamado “Reconsidering Reparations”, que oferece um novo argumento filosófico a favor de reparações e explora conexões entre elas e a justiça ambiental. Ele também participa de debates públicos com artigos que exploram as interseções entre justiça climática e colonialismo.
TRADUÇÃO: Victor Galdino
Pesquisador e professor, tem formação em Filosofia (graduação, mestrado e doutorado) pela UFRJ e formação em Psicanálise no Corpo Freudiano. Trabalha com temas como: imaginário social e imaginação política, identidade e subjetividade, herança colonial e fenomenologia da raça, fugitividade e políticas da recusa, metafilosofia e linguagens filosóficas. Integrante do Laboratório Filosofias do Tempo do Agora (Lafita/UFRJ).
SÉRIES REVERSÍVEIS: Samantha Canovas
Mestra em Poéticas Visuais pela PPGAV da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e bacharela em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília (UnB). Desenvolve sua pesquisa poética no âmbito da pintura, instalação e do têxtil com enfoque em questões como materialidade, obsessão, método, deriva e ócio. É artista plástica, escritora, bordadeira e arte-educadora.
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Para ler com o corpo
Nesta série de textos publicados no blog-revista da editora, se prescreve aquelas críticas reflexivas que necessitam primeiro da experiência de um corpo em movimento para que se possa assim ler a contingência de revolta das ruas. Como no lema da GLAC, "Para ler com o corpo" não é apenas uma frase de efeito, mas um modo de ver e tornar o mundo um laboratório político do cotidiano.
Deseja colaborar com a série? Nos escreva no e-mail: blog.glacedicoes@gmail.com
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