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 CONTEÚDO 

PANDEMIA E LUTA ANTIMANICOMIAL - Paulo Spina

Atualizado: 9 de jul. de 2020


Legenda: Direito à Loucura faz parte da série Direito, do artista Raphael Escobar. São intervenções realizadas em maio de 2020, que compreendem uma série de instalações de faixas em diferentes ruas da cidade de São Paulo, nas quais se podem encontrar os dizeres: Direito à Loucura; Direito à Preguiça e Direito à Inadimplência.



Como é de costume, uma apresentação que justifica nossas publicações no blog-revista antecede cada um de nossos texto, porém, hoje damos vazão ao escrito do amigo e artista Raphael Escobar sobre o dia, que foi publicado em seu Instagram pela manhã, qual também compõe essa publicação com um trabalho. Ele segue:


"Hoje seria um dia que estaríamos nos organizando e pintando faixas para ir com os usuários para a Av. Paulista. Fazer um ato público que provavelmente é o ato mais bonito que já experienciei. Sempre acreditei na Redução de Danos e na Luta Antimanicomial, pois acredito realmente que encarcerar nunca foi solução para nada, e a gente luta desde baixo para construir propostas melhores. Imaginem o meu choque quando conheci o Daniel Lomonaco e uma das primeiras coisas que ele me disse foi: 'Caralho Escobar, você, autônomo e progressista, não pode defender o termo redução de danos.... Você tem que defender o direito à loucura e a otimização do uso'. Aquilo bateu em mim de um jeito muito forte, que tive que processar com muito tempo, afinal, toda a defesa desse cara é baseada na proposta de que o termo tem uma visão moral, pois a ideia sempre é pautada pelo dano do uso, por isso que deveríamos otimizá-lo (e pior que faz muito sentido). Lembrei então de uma vez de alguém, que estava escrevendo uma tese de mestrado, me comentou de uma crítica, que a redução de danos propunha a docilização dos corpos. Eu, no momento, não processei bem a crítica, passou batido, mas agora fico pensando o quanto toda a lógica da RD vem servindo pra reforçar as estruturas do capital. Se o manicômio chamava de louco aquele que não se fazia engrenagem do capital, a RD (principalmente a institucionalizada) pretende que o louco se organize para funcionar dentro da estrutura. Nos últimos tempos tenho ouvido muito o Thiago Michelucci falar sobre o assunto, pautado sobre as relações nos CAPS. Por muito tempo me questionei se o uso abusivo de drogas na Cracolândia é o que incomoda as pessoas, mas ao contrário, a ideia dos usuários não trabalharem é o que verdadeiramente incomoda. Ora, o direito à loucura fica aonde? E o direito à preguiça? Entre muitos questionamentos, hoje me fica o desejo de passar no túnel da Av. Paulista cantando 'Vou ficaaaar, ficar com certeza maluco beleza!'".



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No Brasil, o dia 18 de maio é Dia da Luta Antimanicomial. O Encontro de Bauru, com a fundação do Movimento pela Luta Antimanicomial, e a primeira Conferência de Saúde Mental, ambos em 1987, são momentos fundamentais. Esta luta é parte de um processo que se acumulou ao longo de muitos anos numa perspectiva crítica ao regime ditatorial. A luta estava conectada com a redemocratização do país e, também, com constituição do SUS. Em 2020, os protestos organizados por pessoas usuárias e trabalhadores dos serviços de saúde mental não irão acontecer presencialmente, mas apenas de forma virtual devido a Covid 19 e ao necessário distanciamento físico [1].


Durante o curso das simultâneas crises sanitária e econômica com a pandemia do Coronavírus, já temos no horizonte uma crise de saúde mental mundial imprevisível. Devora Kestel [2], diretora do departamento de saúde mental da Organização Mundial de Saúde (OMS), alertou que situações inevitáveis da pandemia (como o medo, a incerteza, o isolamento e a dificuldade econômica) poderão provocar problemas psicológicos nas pessoas.


Vivemos uma situação de saúde mental sem precedentes. A pandemia que rompeu nosso cotidiano precisa ser encarada como um acontecimento que acelera processos sociais já em curso. Ou seja, o que estava latente – a luta de classes – pode vir a ser emergente e fortalecer a recriação de dinâmicas da organização da sociedade. O sentido de transformação não é dado pelas reações imediatas e, por vezes, instintivas ao vírus, mas por nossa capacidade de promover mudanças cotidianas e políticas duradouras. Será significativo como os diversos sentimentos e precipitações provocados pela pandemia irão nos afetar. Por isso, refletirmos como vamos reagir – não apenas às crises sanitária e política, mas à crise de saúde mental – torna-se fundamental para as disputas políticas sobre o futuro pós a pandemia.


A compreensão da sociedade sobre a saúde e, mais especificamente sobre a saúde mental, como polos entre ações individuais ou coletivas torna-se um ponto nevrálgico para a discussão sobre o presente e o futuro. A dificuldade de compreendermos a saúde como um fenômeno coletivo é, também, a lógica na qual os próprios sujeitos atuam a partir de uma perspectiva de saúde de responsabilidade individualizada, influenciados por formas de governo que valorizam a privatização das condutas e uma mentalidade cuja a crença é de que as possibilidades de vida são resultados apenas de escolhas individuais. Dizendo de outro modo: a doença, a falta de trabalho, a pobreza, o fracasso escolar, o sofrimento psíquico e a exclusão são vistos como consequências de cálculos errados ou desastres naturais e não como problemas sociais coletivos, preexistentes e complexos [3]. Temos de olhar de forma crítica para a convicta culpabilização dos indivíduos efetivada pela organização neoliberal da vida, onde sucessos e, sobretudo, os fracassos são colocados como responsabilidade individual. A pandemia mostrou que os processos de adoecimento são complexos, estão relacionados com comportamentos individuais, mas, principalmente, com processos envolvendo o coletivo das populações.


A conexão com uma realidade desconhecida da pandemia de 2020 impactou nosso aparelho psíquico que, por vezes, reage às situações sufocando processos de decisão, ampliando sentimentos de culpa, medo e ansiedade [4]. Por exemplo, pessoas absortas no luto de parentes próximos não podem ceder aos cálculos sobre enumerar as razões que levaram a contaminação da pessoa que veio a falecer. As explicações para as perdas devem se voltar contra uma sociedade que privilegia o maior lucro em detrimento do bem viver e, no Brasil, contra uma gestão catastrófica, e não para as ações individuais.


No contexto nacional, nossa saúde mental é ainda mais afetada pelas inúmeras crises políticas alimentadas pelo próprio poder executivo federal e, infelizmente, pela ascensão do fascismo [5]. São constantes, no cotidiano político brasileiro, expressões de uma antipolítica que proclama a morte com suas próprias opiniões, notícias falsas e ofensas que visam desgastar o tecido social comum necessário para uma perspectiva comunitária. A crise pandêmica agravou este cenário assim como trouxe inovações nas formas de exploração que agravam os variados sofrimentos psíquicos da população. Sob o efeito da realidade pandêmica precisamos superar esta forma de pensar que corrói solidariedades e barrar a política de ódio.


Respostas à crise de saúde mental precisam ressignificar processos de culpabilização, fortalecendo afetos comunitários de solidariedade e, desta forma, diminuindo o impacto psíquico individual. Uma perspectiva que crie possibilidades de as relações serem mais importantes que as transações financeiras, de caminharmos para o avesso da ideia de desempenho individual e enfrentarmos coletivamente problemas estruturais como o patriarcado e racismo. É certo que a incapacidade de respostas rápidas à realidade da pandemia faz com que perspectivas de autogestão comunitária sejam completamente necessárias.


A luta antimanicomial vai além do questionamento de um espaço que existiu, e infelizmente ainda existe, de encarceramento manicomial. Atualmente lutamos contra as relações manicomiais existentes em diversos espaços da sociedade que consideram as pessoas apenas como números, sem direitos sociais e sem direitos à participação política efetiva. A realidade patriarcal, racista e de avanço do fascismo busca nos diminuir como sujeitos. É preciso relembrar que o dia da Luta Antimanicomial foi resultado de um processo que respondia a uma sociedade oprimida por um regime ditatorial e a data foi criada em um momento de redemocratização do país.


Precisamos fortalecer a perspectiva que atrela a luta antimanicomial com a democracia, sabendo que nestes mais de trinta anos em que esta data foi lembrada, tivemos conquistas importantes como a Reforma Psiquiátrica, mas não vivenciamos uma democracia efetiva na qual os trabalhadores participam realmente das decisões políticas e econômicas. Não é no passado que devemos buscar uma democracia antimanicomial, mas no futuro. Estou convicto que precisamos ampliar acesso a tratamentos para pessoas com sofrimento psíquico numa perspectiva comunitária e cidadã, que precisamos fortalecer a Reforma Psiquiátrica, o SUS, e concretizar uma efetiva valorização das trabalhadoras e trabalhadores da saúde. Isto só poderá se efetivar com uma campanha unificada de uma rede de trabalhadoras e trabalhadores da saúde.


Acredito também numa perspectiva antimanicomial de sonhar e lutar por uma proposição transnacional de fortalecimento da solidariedade entre os povos, com a criação – a partir da Organização Mundial de Saúde – de um sistema planetário de saúde [6]. Um mecanismo global capaz de levar saúde e bem viver para toda a população global, a partir da realidade, da cultura e dos saberes de cada povo. Tal sistema deverá seguir uma lógica de construção do conhecimento descolonial, considerando, principalmente, o eixo Sul-Sul [7] do planeta, de forma intercultural capaz de ser transformador da coordenadas atuais da saúde (que toleram extremas desigualdades) para uma política emancipatória regional e global, a partir dos Estados Nacionais, mas que fortaleça atores da sociedade que possam ser base para uma política emancipatória de saúde coletiva e bem viver, tais como: movimentos sociais, universidades, sindicatos, instituições públicas, organizações feministas e outros.


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Notas [1] Em São Paulo organizado pela Frente Estadual Antimanicomial. <https://www.facebook.com/frenteantimanicomial/videos/233514107931520/> aceso em 14 de maio de 2020. [2] https://www.brasil247.com/saude/onu-alerta-para-crise-global-de-saude-mental-em-meio-a-pandemia-de-covid-19-pj1u49fv [3] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016 [4] Considerações que devo a conversas com a psicanalista Aida Schwab. [5] Safatle, Vladimir. Bem vindo ao Estado Suicidário. 004; N-1; 2020. [6] Zizek, Slavoj. “Pandemic – Covid 19 Shakes the world” in Coronavírus e a luta de classes. Editora Terra Sem Amos, 2020. / Davis, Mike. “A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo” in Coronavírus e a luta de classes. Editora Terra Sem Amos, 2020. / Ribeiro, Sidarta. “Coronavírus e fascismo de Bolsonaro nos fazem esperar por nova era”. Folha de São Paulo, 29 de março de 2020. [7] Basile, Gonzalo. http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20190320033726/II_DOSSIERS_DE_SALUD_INT_SUR_SUR_GT2019.pdf. Acesso em 14 de maio de 2020.

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Paulo Spina é trabalhador da saúde mental no SUS, cientista político e doutorando, estudioso de movimentos sociais. Escreveu o livro Ofensivas: a potência do não retorno à normalidade que será publicado em breve pela GLAC edições.


Raphael Escobar é Educador Social e Artista Visual. Desde 2009 atua com educação não formal em contextos de vulnerabilidade social ou de disputas políticas, como Fundação CASA, Cracolândia e albergues. A atuação nesses contextos serve como pesquisa e muitas vezes ativação do trabalho que desenvolve. Sua pesquisa é pautada pelas relações de classe, pretendendo dissolver uma lógica moral da sociedade em relação aos moradores de rua, usuários de droga e grupos periféricos. Deste modo, usa das instituições e do seu trabalho como ferramentas de fomento e educação, mediando os espaços de dentro e fora do circuito.

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