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 CONTEÚDO 

O QUE EU VEJO QUANDO OLHO DA JANELA - Francisco Pereira

Fragmentária, a narrativa de Francisco costura temporalidades que incidem em seu corpo e na paisagem que o guarda, ao ponto de se tornarem indissociáveis. Aqui, a musculatura, os ossos, a pele, as pedras, o riacho são acontecimentos da vida daqueles que vieram antes de Francisco e que nele sobrevivem pela memória, pela carne e pelos caminhos antigos que segue percorrendo, tornando-o ponte entre o passado e o milagre do vir-a-ser. Francisco, ao atuar como um colecionador de ossos, faz pulsar um viver outro ao convocar não só os vivos, mas também os mortos para contar histórias.

O texto compartilhado pelo artista são apanhados de suas anotações de caderno sobre o que ele vê ao olhar a janela. Fazem parte de sua pesquisa em performance para a criação de devires sobre corpo, paisagem e ancestralidade.

Francisco Pereira - Como remendar costelas quebradiças, 2021, cianotipia


No seu passeio, ao contrário, ele [Lenz]está nas montanhas, sob a neve, com outros deuses ou sem deus algum, sem família, sem pai nem mãe, com a natureza. [...] Ele “achava que deveria ser uma sensação de infinita felicidade ser tocado assim pela vida primitiva de toda a espécie, ter sensibilidade para as rochas, os metais, para a água e as plantas, captar em si mesmo, como num sonho, toda criatura da natureza, da mesma maneira como as flores absorvem o ar com o crescer e o minguar da lua”.

O anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari



Janela n. 1: entre o metal e as plantas


A respeito do fora e do dentro: minha casa é rodeada por grades e por um pequeno jardim que cultivo. Assim, o que vejo é uma paisagem constituída por essa dialética: a verticalidade fria do metal e a sinuosidade orgânica das trepadeiras. Por extensão, no limiar do distrito de Arajara há uma floresta, a Chapada do Araripe. O que vejo, pois, é a mim mesmo realizando esse trânsito, por vezes conflituoso, entre o metal e o vegetal.


A dialética metal-planta, além de compor micro e macro paisagens, é ainda um modo como percebo minha paisagem interna;

Sair do quarto mal iluminado e respirar um pouco de ar;

Sair da claustrofobia própria do lar e deitar na terra;

Fugir para longe dos olhos e das bocas - ambos violentos;

Ir ao encontro de árvores cegas e mudas para, assim, ouvir outros sons - ouvir elaborações sonoras que estão além dos limites metálicos e frios das palavras.


Janela n. 5: o último sopro da vela e a feitura do vento


O último sopro da vela

Ele observa Maria de Jesus, que se aproxima e senta-se ao seu lado, numa cadeira entrançada. - Seu Luiz, o senhor quer perdoar alguém antes de ir? Ele faz que não com a cabeça. Uma vela é acesa e colocada na mão direita do homem. A mulher retira o rosário do pescoço e aguarda pacientemente enquanto reza-conta as Ave-Marias.


A vela se apaga

Tia Maria retira a vela da mão fria e imóvel. Cobre o corpo de Seu Luiz por completo, se benze e põe o rosário sobre as flores do lençol.

Seu Luiz está morto.


A feitura do vento

Enquanto os vizinhos aguardam pacientemente o próximo fogo, em cada um dos dias de intervalo Zé acende suas pequenas fogueiras de transição e permanece contemplando as cores da brasa enquanto o mundo adormece num silêncio que eventualmente é rasgado pelo canto da mãe da lua.

Dia 28, a última fogueira. A mesma sequência: de dia caçar, cortar e edificar os galhos. De noite invocar o fogo. Com o tio, as crianças assam batata-doce. E quando elas se vão, ele permanece olhando as brasas.



Francisco Pereira - Abrigo, 2021, fotografia


Janela n. 6: a localização tempo-espacial da crueldade


9 de fevereiro de 1969, ao sul da paisagem n. 1- Acometido por uma doença que até hoje desconhecemos, meu bisavô dá um tiro de espingarda na boca após ver seus testículos se desfazerem em pus. Ele sobrevive por quatro dias.


7 de julho de 1979, à nordeste da paisagem n. 2- Minha avó entra em depressão após quase ter perdido os filhos quando sua casa foi incendiada. Na ocasião, o fogo de um candeeiro havia se espalhado pelo telhado de palha. Olhando atentamente, é possível encontrar pequenas cicatrizes de queimadura embaixo de seus olhos.


24 de janeiro de 2001, ao leste da paisagem n. 3 - Minha mãe e eu passamos a noite encolhidos, próximos a algumas bananeiras que ficavam abaixo de minha antiga moradia. Naquele mesmo instante meu pai, sob efeito de álcool, esfaqueava os móveis da casa diante a impossibilidade de nos achar e fazer o mesmo conosco.


11 de outubro de 2004, ao norte da paisagem n. 4 - Numa festa da comunidade, um tio de segundo grau declara amor ao seu companheiro clandestino, sob a presença dos amigos do mesmo. O grupo de homens espanca meu tio depois que seu amante fingiu não o conhecer. Após as agressões, o maxilar de meu tio foi danificado permanentemente.



21 de abril de 2021: o que há além da janela


Oeste -

I. a vista da Chapada do Araripe, esse paredão que rodeia o Cariri a partir de dentro do Sítio Espinhaço;

II. a vista dos sítios Espinhaço, Farias, Macaúba... Enfim, as comunidades que compõem o distrito de Arajara a partir de um dos pontos mais altos da Chapada.


Daqui de baixo, o que vemos da floresta aparenta ser um imenso paredão de carne vermelha e de pele verde. Pode causar a impressão de ser uma delimitação de Arajara, mas por oposição, as veias-veredas da mata, na verdade, produzem conexão entre comunidades: municípios de Jardim (CE), Crato (CE) e Exu (PE). Nesse sentido, a floresta é uma rede, constitui-se como um espaço de trânsito. É também uma plataforma visitada para inúmeros acontecimentos, como produções de: a-) conexões com o sagrado (oferendas em rituais de candomblé); b-). de ritualidade fálico-social (jogos amadores de futebol); c-). intensidade-adrenalina corporal (as caças noturnas e ilegais); d-). barganha divina (pagamento de promessas), entre outros.


Lá de cima, o panorama possibilitado é o de que o Cariri (e não só a Arajara) é uma enorme bacia, um imenso e seco depósito de água. Há mitos sobre tempos antigos em que uma serpente abissal (a mãe dos índios Kariris) morava nesse grande poço que hoje está vazio. Há mitos ainda sobre uma futura e permanente inundação desse mesmo espaço, provocando o ressurgimento dessa serpente que estaria escondida, adormecendo sob a pele da floresta.

Uma aproximação entre corpo e paisagem também pode ser feita a partir dessa estrutura óssea de nossa bacia. Ambas (bacia-óssea e bacia-paisagem) são abrigos: de gente e de fetos. De casas e placentas.


Daqui, de dentro da bacia, a Chapada do Araripe fica a Oeste, engolindo o sol às 18:00, mesmo horário em que minha mãe liga o aparelho de som e ouvimos a voz de Luiz Gonzaga (um morto) iniciar uma canção à Virgem Nossa Senhora; também anuncia uma missa que será transmitida pelo rádio na sequência. Num tom sinistro ele canta:


“Quando batem às seis horas

De joelhos sobre o chão

O sertanejo reza a sua oração

Ave Maria

Mãe de Deus Jesus

Nos dê força e coragem

Pra carregar a nossa cruz

[...]”


Creio que minha mãe herdou esse hábito de meu avô. Se ainda estivesse vivo, eu perguntaria a ele o significado dessa música no contexto de sua existência Severina. A partir de relatos autobiográficos de mamãe e de vovó sobre a vida rural na Barbalha do século passado, imagino a atmosfera e a experiência do alvorecer. Suponho que vovô estaria chegando da roça e seguindo em direção a um cubículo rodeado por palhas para se banhar sob a vigilância das primeiras estrelas; que minha avó estaria cozinhando andu e ovo caipira no fogão de lenha, com o rádio ao seu lado preenchendo toda a casa com a música-anunciação; minha mãe provavelmente estaria cuidando de algum de seus irmãos menores.

Penso em como esse hábito atravessou os dias e os anos, a despeito das transfigurações da geografia, da tecnologia e do significado. Tocar o botão de aparelho de som às 18:00, uma ação que permanece.


Janela n. 3: taipa-osso e rio

Francisco Pereira - Díptico, 2021, fotografia


Trecho de Carta escrito para André Feitosa em Abril : Sabe, André, hoje as coisas aqui estão inevitavelmente mais fáceis. Mas quando ouço as histórias da minha avó, e quando tento identificar suas ressonâncias na vida de minha família (em mim, por consequência), quando me lembro de ouvir minha outra avó, Luzia, chorando suas irmãs falecidas (ela já enterrou três delas), eu tenho a impressão de que a gente aqui é marcado por uma condição Severina pra poder lidar exaustivamente com peso da morte [e] ser capaz de, aos tropeços, suportá-la.


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Taipa-osso: aqui restam poucas casas de taipa. A mais próxima a mim foi construída por meu avô materno, Antônio. Quando lembro das histórias que ouço de minha avó sobre a vida em sua juventude, me é inevitável não pensar o Sertão como uma existência em que sujeito, casa, terra, animais outros e sol são categorias inseparáveis. Nesse sentido, pensando numa interconexão entre sujeito e casa, vejo na construção de taipa um rastro do corpo de Antônio para além das células mortas e pingos de suor que foram misturados ao barro componente da construção. Internamente, a casa de taipa é constituída por varas de madeira cuja função assemelha-se a de um osso. O conjunto de varas é reunido por amarrações de cipó, análogas aos tendões. A camada de barro é similar ao que no corpo é o conjunto carne-pele. Sendo assim, talvez haja também uma dimensão arquitetônica do corpo, como uma matéria moldável pelo espaço ao mesmo tempo em que o molda.


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Dona Nane

A minha avó teve a infelicidade de presenciar, quando mais nova, um incêndio destruir a casa onde morava. Enquanto meu avô trabalhava na roça, sem sequer imaginar o que estava ocorrendo naquele momento, sua esposa, Sisesnanda (Dona Nane), procurava retirar da casa em chamas seus filhos novos e alguns pertences. Ela me conta que, por conta do desespero daquele momento, nem se deu conta que o calor do fogo havia queimado a pele emabixo de seus olhos.


O riacho: para mim, ele significa uma possibilidade de desmantelamento do corpo em três âmbitos: a-) obstrução da visão enquanto zona de segurança (pois sob o escuro da água de ferro não posso ver se piso em algo escorregadio); b-) danação do sistema auditivo (risco de entrar água no ouvido, inflamando-o); c-). prejuízo à respiração (afogar-se). O riacho ao qual me refiro é chamado de Rio de Dona Nane, provavelmente uma síntese do que antes poderia ter sido algo como: “o rio que fica próximo à casa de Dona Nane”.


É curioso que alguém que nomeia o rio tenha seus olhos marcados por fogo.


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Dona Luzia

Vovô esteve presente na criação de seus filhos e como marido. Minha avó tem um rosto para lembrar e um nome para pronunciar. Mas e minha avó paterna, Luzia? Ela, que trabalhava quebrando coco babaçu na juventude, foi engravidada pelo filho do seu patrão (um sinhozinho) que não assumiu nem a ela e nem ao filho. O que é que minha avó, meu pai (um bastardo) e eu temos para carregar além do peso da ausência de um não-marido, um não-pai e um não-avô? Na ausência do registro paterno, carrego somente o sobrenome materno, Pereira. Uma ausência que faz emergir a memória áspera e sem rosto de uma cor: branco.


Francisco Pereira - Díptico, 2021, fotografia


Janela n. 4: à Leste, a fragilidade


Na direção do nascer do sol, o purgatório.

À Leste de onde me encontro há um sítio chamado Boa Esperança. Ali mora um amigo que normalmente me acompanha em trilhas quando vou procurar ossos. Seguindo na direção do nascer do sol, já saindo do distrito de Arajara, há um local que serve de depósito ilícito e espontâneo para ossos não-humanos e objetos não-funcionais (lixo), tais como fraldas sujas, garrafas de bebida alcoólica vazias, plástico, pedaços de metal, etc. Penso que há uma implícita construção de sentido: enquanto ossos humanos são cuidadosamente armazenados em túmulos (alguns deles de concreto, sendo afastados do contato direto com a terra), os não-humanos são deixados ao lado de plástico, vidro e metais não mais utilizados.

Esse cemitério improvisado fica, talvez, à distância de uma hora de caminhada da minha casa. Já o visitei algumas vezes a fim de observar (e registrar) a dinâmica entre ossos e capim.


A vida do vegetal sendo retirada da matéria óssea que nutrindo a terra.


Na última visita, porém, encontrei o lugar incinerado. Um ciclo havia sido interrompido por fogo. Normalmente, a prática incendiária é realizada como meio de preparar o solo para a monocultura. É ou não análogo a uma espécie de purgatório? “Purificando” as almas pelo fogo, o purgatório também realiza a descaracterização das mesmas, provocando dor e agonia suficientes para eliminação da memória do pecado. Em ambos os casos, a higienização parece ser alcançada através da produção de violência.

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Normalmente alguns bichos são deixados amarrados em locais com muita vegetação nativa para alimentarem-se dela. Mas, na procura por alimento, eles podem acabar enroscando a corda em que estão amarrados em troncos ou arbustos, permanecendo presos até a intervenção de outros bichos, os que têm polegares. Pois bem, numa das trilhas que fiz com meu amigo, encontramos um filhote de bode enroscado não só às árvores, mas também ao cadáver de sua mãe que, àquela altura, tinha no local da barriga um buraco aberto por vermes.

O estado do corpo morto nos fez deduzir que mãe e filho estavam ali há muito tempo, que haviam sido esquecidos por alguém e que, provavelmente, a cabra havia se enforcado. Removemos a corda, saciamos a sede do vivo e o levamos conosco para um vizinho que cuida de outros animais da espécie.

Por acaso, tempos depois, ao fazer a mesma trilha, encontramos o crânio-cabra e o levamos ao meu jardim. Mais tarde, soubemos que o filhote também faleceu. Hoje seu crânio repousa no mesmo local que o da sua mãe.


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Uma laranjeira está morrendo em silêncio, grande parte de seu tronco está oco. Apenas um de seus galhos tem uma aparência viva, sustentando o crescimento e maturação dos últimos frutos.

Uma cobra rasteja com aparente dificuldade na direção de meu quarto. Sendo peçonhenta, ela tem potencial para matar-me, mas não me ataca. De uma forma ou de outra, tento removê-la com cuidado para não machucar nem a mim nem a ela. Após o evento, penso que a sinuosidade de seu corpo e de seu existir é o que me falta.


Um sistema água-pedras (riacho) que é alimentado pela chuva está diminuindo de nível. No segundo semestre de 2021, a areia estará totalmente exposta. Nos primeiros meses do ano que vem, violentas chuvas noturnas levarão as pedras embora e colocarão outras no lugar. O mesmo local, a mesma terra, mas outras pedras. Um novo rio a cada ano.


Sob as primeiras luzes do dia, acauãs sobrevoam ao longe. Não as vemos, mas ouvimos seu canto. Minha avó considera isso um sinal de mau presságio e, para afastar o agouro, cruza um par de chinelos gastos virando-os de cabeça para baixo.


Já as mãos enrugadas da outra avó seguram três folhas de pinhão roxo. As folhas são levadas à testa de uma criança enquanto a mulher faz uma reza silenciosa e secreta. Ao final, as folhas estão murchas, sinalizando que o corpo do pequenino estava agora fechado e que qualquer que fosse o mal que viesse a lhe ocorrer, havia sido engolido pelas folhas.


Em certas épocas do ano, quando o sol faz arder a minha pele, algumas árvores retorcidas fingem morte para armazenar energia. Imóveis, elas aguardam pela chuva. Em dados momentos é somente isso que desejo: a paciência das plantas.



Francisco Pereira - Purgatório, fotografia


*


Francisco Pereira mora no Sítio Espinhaço, uma pequena comunidade rural de Barbalha-CE, próxima da Floresta Nacional do Araripe - Flona. Estuda Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Regional do Cariri - URCA. Experimenta performances direcionadas à câmera, fotomontagem digital e fotografia artesanal. Propõe o exoesqueleto poético como uma estrutura-entre, um encontro entre humano e seres mais-que-humanos a partir da memória como elo, tendo ossos encontrados a céu aberto como arquivos orgânicos do fenômeno da vida e decomposição da carne. Até então expôs em duas mostras: Curanderias e Ebulições, da programação da III Semana de Artes Visuais da URCA, em 2020; e Olhe para Trás, do evento Maré Foto Festival, em 2021.

*


Para ler com o corpo

Nesta série de textos publicados no blog-revista da editora, se prescreve aquelas críticas reflexivas que necessitam primeiro da experiência de um corpo em movimento para que se possa assim ler a contingência de revolta das ruas. Como no lema da GLAC, "Para ler com o corpo" não é apenas uma frase de efeito, mas um modo de ver e tornar o mundo um laboratório político do cotidiano.

Deseja colaborar com a série? Nos escreva no e-mail: blog.glacedicoes@gmail.com

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