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 CONTEÚDO 

NO PAÍS DA BOLA O QUE DECIDE O JOGO É A BOLA DO ZÓIO - GOG

Atualizado: 29 de jul. de 2020


Legenda: todas as imagens postadas com o presente texto são prints do filme documentário Democracídio, realizado em 2013, durante e após as manifestações pela redução da tarifa de ônibus, pela Companhia Bueiro Aberto, criada no mesmo ano por jovens atores e cineastas da periferia de Guarulhos, a fim de produzirem cinema de formação de, para e com as pessoas, histórias e culturas das periferias do Brasil.



O texto a seguir deriva da participação do poeta e rapper nacional, GOG, em live intitulada “Cidade e Pandemia”, como parte da programação geral do “II Do Caos ao Cais: Insubmissões em Pandemia”, que se realizou entre os dias 20 de maio e 10 de junho de 2020. Nesta conversa, realizada no dia 03 de junho, participaram também a Kasa Invisível (ocupação de Belo Horizonte/MG organizada pelo coletivo anarquista) e membros do grupelho (grupo de estudos e ações em filosofia da educação). O evento foi organizado por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas vinculados às organizações dos Estudantes da Diferença e do Laboratório Insurgente de Maquinarias Anarquistas.



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Legenda: assista o filme Democracídio no canal do youtube da Companhia Bueiro Aberto.


Boa noite a todas e a todos. Satisfação também poder estar por aqui ouvindo vocês, recebendo mais energia, né irmão. Eu acho que o momento é catalisador do que tá acontecendo, porque não é fácil. Eu faço parte do movimento Hip Hop a praticamente quatro décadas (comecei faz quatro décadas); comecei menino nisso aí e hoje sou coroa[1] nisso. E o louco é que muitas vezes as pessoas pensam, distantes, que nós somos fortaleza.

Eu tenho recebido tantas mensagens, tantas ideias, tantos apelos... Porque o RAP... é, quando a gente fala que ele é a voz da favela, não é a voz por nóis[2]; é a voz por todos e todas, né mano, saca? Então, nós somos emissários das nossas vivências, mas também das vivências de outros corpos, de outras mentes, que não tem essa amplitude pra levar adiante sua palavra. E isso, espiritualmente, pesa muito, sabe?


É uma cena[3] assim que você acorda todo dia numa missão e, ainda mais nesse momento de pandemia, se coloca com muito mais peso sobre a sua caminhada. A partir do momento que você se torna uma pessoa responsável, né mano. Quando falo responsável, é no sentido da responsabilidade de coletivizar tudo isso e atender a toda essa geração. E não é só uma geração, são várias gerações – são gerações desde meados dos anos 80 até gerações dos anos 90 e parte da geração do século XXI. E discutir “Cidade e Pandemia” pra nóis é, como assim, eu posso falar – novos traumas, sabe? São novos traumas. Porque se agrega muita cena ao que já vinha sendo difícil pra nóis.


A professora Renata [Aspis], ela acabou de falar de uma cena muito importante. Porque pra lavar as mãos, né mano, pra maioria da comunidade lavar as mãos é um gesto, é uma facilidade. Agora tem gente que num[4] chega água, mano. O isolamento é uma coisa muito importante, mas e nesses barracos, mano? Sabe, como eu já recebi relatos de pessoas: “GOG, como é que eu faço? Porque aqui em casa, a sala é a cozinha mano, e a cozinha de noite é o quarto.”


Legenda: cena do filme Democracídio, momento em que manifestante sofre com o gás lacrimogêneo usado pela polícia do Estado.


É esse o Brasil que vem falar; que vem me buscar! E a gente tem que ter palavra – porque se não tiver palavra pra esses não adianta, sabe? Aí, não adiantaria minha caminhada. Então, quando eu falo, eu não falo por mim, não falo pelo Genival, não falo só por essa casta, Genival Oliveira Gonçalves, Rogéria, Vitor, Guilherme, os meus filhos.


Foi preciso romper com o conceito de família tradicional, de vizinhança, sabe? O meu Estado é o território. É um território muito maior do que aquilo que colocaram como as nossas fronteiras. E isso vem, aguça nossa criatividade. Através da internet eu tenho atendido muita gente. Através da criatividade, mano, daquele fazer, de fazer o mexidão[5] – o mexidão cultural de misturar tudo e trazer. Então, eu já vinha há algum tempo com as lives, fazendo na “bolinha do zóio”[6]:


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Ó, no país da bola o que decide o jogo é a bola do zóio

Cê imagina o que é você falar isso cara, pra quem não tem o olhar ereto? Né, mano? Saca? Não digo nem acima. Tem gente que tá com o olhar pra cima. Mas o olhar ereto, o olhar na bolinha do zóio e através da bolinha do zóio se passar todas as experiências que você não quer contar pra ninguém. As experiências que te fazem se sentir menor, se sentir talvez, não vítima, mas simplesmente ação do que você é, sabe? Não são os vitimizados, são aqueles que falam “mano, isso aí é pra nóis memu[7] e é nossa vida”, sabe? É a geração dos aguerridos que olham dessa forma a missão. É pra essas pessoas que a gente fala quando a gente fala olhando na “bolinha do zóio”. É muito importante, cara.


Legenda: cartela de entrada da terceira parte do filme documentário Democracídio.


E eles vem aos mil, aos dois mil. Quando eu acabo uma live, tem trinta mil pessoas me assistindo – pelo Facebook, no Instagram. E no outro dia, quando você assiste, tem setenta mil pessoas. E aí você vê essa nova ferramenta, que durante muito tempo a gente pensava, principalmente o RAP, mano – a minha geração do RAP tá rompendo. São revoluções que estão acontecendo numa velocidade muito grande e tem muita gente que não acompanha.

Eu tento ser orgânico. A minha rede não tem pagamento de impulsionamento, a gente não compra like[8], não compra views[9], só que as pessoas vem ver a gente de qualquer forma. Eu acho que isso é o mais louco que tá acontecendo. As minhas redes, elas crescem... Pra vocês terem ideia, as minhas redes elas crescem, numa média, entre quinhentas a mil pessoas por dia, sabe? E isso, é toda uma estrutura precisando de estrutura, sabe?


E eu tenho que ser no improviso. Claro que na busca responsável das cenas, como eu falei, mas eu tenho que ser no improviso, a palavra dessas pessoas. Ontem eu gravei um vídeo que viralizou com mais de cem mil visualizações ao todo. Hoje, menos de 24 horas depois, não, já tem 24 horas, gravei pela manhã de ontem “O que é o Fascismo?”[10]


A quebrada[11] ela quer entender. “Que fita[12] é essa aí de, oh GOG, de ser antifascista? Diz que o governo aí desse cara, que um monte de gente aqui da quebrada votou nele pra tirar o PT, diz que ele é fascista. Mas o que é fascista, GOG?”, sabe?


Legenda: cena das poucas partes do filme documentário Democracídio em que há encenação ficcional.


Então você vê uma lacuna que tem na esquerda brasileira, porque a esquerda nesse debate com o centro ela não volta pra base mesmo. Ela quer discutir a governança sem trocar uma ideia com a base[13]. E o outro lado, ele está agindo estrategicamente mais inteligente que grande parte da esquerda do Brasil. Eles estão dentro das igrejas evangélicas, eles estão ali recebendo e dando voz àquelas vítimas que querem o terror depois de terem os seus filhos perdidos, sabe? Os de classe média.


Onde é que pode, em tempos de pandemia, a esquerda não perceber isso, sabe? Qual que é a posição da quebrada GOG quando: “Oh GOG, ontem o Lula falou, mano, que a pandemia foi bom pra mostrar que o Estado Mínimo é... num serve. Oh, mano, o cara tá contra nóis, GOG?”


Então, tudo isso são temáticas, são cenas que todo dia a gente tem que pegar e jogar, é água nesse fogo e na mesma hora dizer: “mano, apaga esse fogo aqui, mas tem que acender outro fogo, que é fogo no racistas!”


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FOGO NOS RACISTAS!!!

Então, tudo isso vem numa gramatura muito pesada todo dia, e aí já tem o quê? Eu acabei de fazer agora, eu vim pra cá e, eu tava fazendo a BLITZ GOG. Que que é a BLITZ GOG? A BLITZ GOG é Sintonia! A gente pega o nome de uma BLITZ – é a geral né, mano. É você tomar uma dos homi[14] aí. E a gente traz pro nosso dia a dia. Oh, mano, eu vou bater na sua porta e vou entrar pelo som[15]: “Oh, GOG, mas aqui cê pode entrar”. Pois é, mas é a BLITZ GOG. Quero saber como tá a sua quebrada, que que você tá fazendo, como que vocês tão mantendo o isolamento, como é que é isso?


“Ah GOG, porra mano, a gente tá se virando como pode. Mas, pô, a gente tem que trabalhar, GOG. Então como pode ser o isolamento social, GOG, se a gente tem que trampar[16]? Porque aqui, GOG, nós não tem economia. A economia da reserva, né, mano? A gente não tem a reserva. A gente pagou. A gente comprou ontem o amendoim, vendeu no sinal e aí, com o lucro do amendoim a gente comprou a mistura, e aí, com a outra parte, a gente comprou [amendoim] pra voltar amanhã [para o sinal][17]. GOG, se a gente não voltar amanhã a gente não tem rango, mano.”


Legenda: print de uma passagem do filme Democracídio em que se observa manifestação periférica por moradia paralela às de redução da tarifa de ônibus de 2013.


E aí você tem que mediar com esse parceiro. Mano, vai, mas você tem que seguir algumas recomendações, mano. Vocês estão entendendo como é que é?


Essa é a cena, esse é o Brasil que eu venho trazer pra vocês. Que é o debate hoje que vem pra mim, através de minhas redes sociais, através do meu diálogo direto com essa comunidade.


E porque eu fiz batendo de porta em porta? Pra essa pessoa entender que ela tem que ser protagonista, mano. Ela tem que estar ativa. Tem que saber como está a outra quebrada. Ela tem que se unir de dentro da sua, diante do aprendizado que ela faz com a outra.


Aí daqui a pouco tem o GOG convida live que já é com personalidades do Hip Hop. Eu chamo ali Ferréz. Ferréz vamos trocar uma ideia[18]. Aí eu chamo Dexter. E aí vamos trocar uma ideia, e aí reforça mais ainda as trincheiras do bagulho[19]. Entendeu? E aí a gente vai se blindando contra tudo que vem, né mano? Porque os moleques tá uma hora e meia com nóis, mas eles tão com o sistemão durante 23 horas do dia – menos os que dorme. Mas eles dormem sonhando com o que ouviu durante o dia. Cê sabe que é quando você dorme que o seu inconsciente ali, ele tá tramando também. Ele está conversando com você. Não é só deitar e apagar da mente. Então é isso que eu queria falar, a princípio...



GOG

transcrito e preparado por Abecedário da Perifa

(Matteo Verdú e Doroti Martz)


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Notas

[1] Pessoa que adquiriu experiência de vida e/ou em assunto específico, ao longo do tempo.

[2] Termo que se refere ao coletivo da comunidade periférica, os pares. Substitui a palavra “nós”.

[3] Situação, neste caso, com demanda a ser resolvida; problema. [4] Variação periférica para a palavra “não”. [5] Mistura de coisas, pessoas ou saberes. Faz associação ao prato culinário do ovo mexido, com menção ao ato de misturar. [6] Falar frente a frente ou direcionado a um público específico, com o intuito de construir relações de confiança. Faz menção a olhar diretamente à íris do olho. Olhar olho no olho. [7] Abreviação periférica da palavra “mesmo”. [8] Ferramenta de interação em redes sociais que expressa o gosto dos internautas, referente ao conteúdo publicado. [9] Ferramenta de redes sociais que computa a quantidade de visualizações de conteúdos publicados. Utilizada no universo mercadológico, para projeção de ideia/produto ou atrair possíveis patrocinadores do/a produtor/a de conteúdo. [10] Link do vídeo, acessado em 24/06/2020: https://www.youtube.com/watch?v=sDfmFV8VHfo [11] Comunidade, favela, bairro periférico. A expressão em si, “quebrada”, denuncia a falta de estrutura presente nas periferias brasileiras. [12] Termo bastante usado entre periféricos seguido de pergunta. [13] Base de sustentação da sociedade, Brasil com “P”: povo pobre, preto, periférico e proletário. [14] Policiais, homens que servem a instituição da polícia militar, ao Estado. [15] Transmitir o sentimento do povos periféricos, por ondas sonoras, são temas presentes em outros Raps. Em “Negro Drama”, dos Racionais MC’s, lançada em 2002, Mano Brow canta: “esse não é mais seu / Hó, subiu / Entrei pelo seu rádio / Tomei, ‘cê nem viu’” e, na música “A Bactéria FC”, lançada pelo Facção Central, em 2006, Eduardo diz: “seu pior inimigo ataca via onda sonora / Os decibéis da nossa dor vão estourar seu tímpanos”. [16] Labuta, trabalho, atividade remunerada (ou não). [17] Entre colchetes, inserção nossa. [18] Conversar. Nessas trocas GOG cita duas personalidades do rap nacional: Ferréz, poeta e romancista brasileiro que escreve sob as influências da relação entre periferia e literatura. Dexter, compositor e cantor de um dos grupos mais icônicos do rap nacional, 509E, formado dentro do extinto Carandiru. [19] Situação. Neste contexto, reforça forças políticas entre aliados/as.

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GOG é rapper e poeta com reconhecido trabalho na cena do movimento Hip Hop no Brasil, sendo referência na construção do rap no Distrito Federal.

Abecedário da Perifa é formado por Matteo Verdú, mestrando em Educação pela Unicamp, estudado em Filosofia e História e pesquisador periférico, e Doroti Martz, mestranda em Educação pela Unicamp, formada em Teatro pela UFMA e pesquisadora periférica.

Companhia Bueiro Aberto: "Há tempos um grupo de amigos da cidade de Guarulhos, grande SP, se reuniu com um sonho na cabeça: fazer cinema mesmo sem ter o devido apoio. Esse sonho virou realidade com a fundação do Grupo Independente Companhia Bueiro Aberto. Em 6 anos de estrada, já produzimos 40 obras entre documentários, ficções e vídeos. Sempre contando com a colaboração dos amigos, o amor e a disposição pra sair com a câmera na mão, filmamos nossas ideias malucas, histórias que abordam relações do submundo humano. A Bueiro Aberto está aí crescendo, no aprendizado diário. Inscreva -se no nosso canal e veja nossas produções: https://www.youtube.com/channel/UC7L448UpthdA4x08GJ7tgdw"


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Quarentene-se

Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras pela por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com

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