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 CONTEÚDO 

LEMBRANÇAS PANDÊMICAS: A MAÇA NASCE NA MACIEIRA - carú de paula

Atualizado: 9 de jul. de 2020


Legenda: "imagem de um momento que não se fotografa, antes que perceba, já te inundou, fecundou, modificou. segue anexa foto de um desenho que fiz, e que me deparei com ele agora pela manhã".

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19.07.2019

por volta das três da tarde de uma segunda feira, da porta do consultório, via o metrô atravessar os prédios, suspenso por concreto, rumo à próxima estação, ao mesmo tempo em que o céu escurecia, como se as dimensões do tempo tivessem mudado. o impossível aconteceu, o dia virava noite, seríamos acometidos por uma grande catástrofe. consequência de nossa própria criação, queimadas criminosas avançavam sobre parte de nossos pulmões, milhares de mortos entre animais, árvores, seres vivos, assassinato em massa. uma crise respiratória se agrava em agosto de 2019.


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16.03.2020

uma legião com mais de trinta baratas invadiu o quintal, o final da rua alagado, a água subia um pouco a cada minuto e a chuva não tinha previsão de acabar, ela chegou como foi, após dias de sol, antecedeu outros tantos, quentes. no terminal próximo, existia um mar de corpos, pessoas ilhadas, inundadas, ensopadas, e, no quintal, uma legião de baratas, os casos de COVID-19 aumentavam no país, na mesma semana é decretada a quarentena no Estado de São Paulo.


imagens do fim do mundo, assustadoras, outros tantos eventos inundaram a Terra nos últimos meses, o quadro se agrava, e a Pandemia anuncia não apenas a potência do COVID-19, mas a nossa imunidade forjada na assepsia que adormece em uma dimensão de distanciamento entre nós e o todo, assepsia que adormece no anseio por controle do incontrolável, da demarcação do limite da distinção entre o todo e o ‘’humano’’. como realidade de mundo, gerações que acreditam no poder sobre tudo o que é vivo, e que anseiam o poder sobre a própria vida.


um vírus que está no ar, circula no espaço entre um organismo e outro, se aproveita de nossas mucosas expostas, caça sinal de pulsão vital, coração bombeando sangue, para se manter vivo. a natureza do vírus, infectar, se multiplicar, sobreviver, exigindo de seu hospedeiro novas dimensões de organização de suas tarefas orgânicas para a manutenção de sua vida.


ao pegar a estrada rumo a uma ruptura cada dia mais acentuada entre nós, ‘’humanidade’’ e o todo que é vivo e pulsa vida, que nomeamos natureza – mãe Terra da qual extraímos nossas demandas, usurpamos de seus rios para neles afogar nossos dejetos. falhamos em avanços concisos em direção a uma reorganização para vivenciar as mutações exigidas pela chegada do vírus. quanto mais desvencilhados, ou apoiados na ideia de uma humanidade que transcende a natureza, mais estaremos indo ao encontro de nosso fim, seguir esse trajeto é anunciar uma ruptura com o vital - nos encontraremos com o ciclo da vida no fim da mesma, algo nos matará, ao baixar nossos níveis de pulsão vital a ponto de nos desfazer.


embora o cenário pareça assustador e nos cause medo, angústias, incertezas, sensações de rupturas profundas em lugares que havíamos esquecido, que existiam ou nunca havíamos entrado em contato, é justamente nesse oceano de afetos que a potência surge anunciando o que emerge para forjar a continuidade dos fios que asseguram que a ruptura não se dê em efetivo. os lugares descobertos durante o processo da ruptura possuem outras tantas ferramentas para se lidar com o novo abalo.


é um jogo constante de forças, que nos exige descobrir novos caminhos, nos exige calma e, mais do que tudo, coragem. a Pandemia de COVID-19 anuncia ruptura, é produto dela, provoca novas fricções, as pulsões berram, é momento de criação: da escolha pela sequência de velhos trajetos que já anunciam finais dignos de filmes de terror – terrores da humanidade e sua perversidade –, ou de novos caminhos, criação de novas trilhas, desbravar novos territórios ao redor e para além dos velhos trajetos.


em nosso universo ‘’micro’’, resguardado às nossas bolhas – geográficas e afetivas –, essas fricções vivenciadas na ausência de leitos, respiradores, disputas morais e políticas sobre a quarentena e seus impactos econômicos, entre outros eventos que parecem nos tirar a potência, provocam sequelas e sofrimentos psíquicos-físicos incontáveis.


lutamos contra o COVID-19, mas, mais ainda e há anos, lidamos com as consequências de nossas escolhas, enquanto ‘’humanidade’’ e indivíduos. a crise atual evoca o contato com o que, no funcionamento a pleno vapor da máquina capitalista, é soterrado, em meio às exigências de silêncio, isolamento social, 24 horas para olhar no espelho de casa, e mesmo assim explode: reabrir circuitos para a energia passar, descobrir que temos dedinho do pé quando ele bate na quina do móvel.


nesta quarentena, corpos, territórios complexos, pessoas, são convidados em massa para encararem e descobrirem novos universos internos e, principalmente, conexões esquecidas, machucadas, violentadas, antigas, ancestrais e até mesmo possibilidades do futuro de si.


no micro do dia a dia de famílias, pessoas, ciclos afetivos, tribos, companheiros de trabalho, de internações – entre equipe e usuário – internamente às relações, é o momento de agenciar novos afetos, ritualizar novos possíveis, redescobrir ferramentas, e estar atento para que os que estão ao seu redor não se desconectem durante a tormenta, por descuido ou por acreditarem ter perdido a capacidade de recriarem e fortalecerem os fios. existem pessoas que precisam ser lembradas, outras ainda não sabem como olhar ou identificar, outras tantas identificam e tampouco sabem o que fazer ou como fazer. é preciso retomar a conectividade com o que anunciamos ruptura, ao definir como outro aquele do qual me extraio.


é tempo de comidas coletivas, organização do fluxo da própria vida, planos de ação e enfrentamento, mudança de hábitos e de crenças, de conhecer o gosto musical do vizinho, voltar a respirar, contemplar o céu, tomar sol, se organizar no coletivo que estiver, para cuidar e proteger, construir novos cenários de vinculação nos ambientes de trabalho que seguem a pleno vapor, mesmo que durante a quarentena.


é tempo de se descobrir pronto para medos antigos, respirar fundo para construir asas e seguir em pleno voo; o que antes poderia ser um balão, agora precisa ser construído no e do âmago.


é tempo de ensinar as crianças e nos lembrar que a maçã vem da macieira, não do saquinho, que é possível plantar em casa, que as plantas também gostam de escutar coisas bonitas, que os pássaros cantam pela manhã, que tem uma aranha que mora na pia da cozinha, é tempo de contar histórias, criar novos heróis, reescrever fábulas.


não se trata do amanhã, propriamente, é sobre estar vivo e sobreviver no aqui e agora. o amanhã não nos pertence – a não ser quando se torna o presente contínuo.

carú de paula seabra abril de 2020


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carú de paula é poeta, psicólogo, transviado indígena, mestrando em psicologia clínica pelo núcleo de subjetividades da PUC-SP e compõe a organização do Slam Marginália


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