
Legenda: Capa da publicação do Quarto Manifesto: La estética de la resistencia, 2003, La Plata
Escombros é um coletivo argentino de "arte callejero" nascido em 1988, na cidade de La Plata. É um grupo formado por artistas e pesquisadores de diferentes linguagens, tendo produzido trabalhos em diversos suportes como fotografia, performance, gravura, instalações, panfletos, grafite (entre outros), sempre com o intuito de um fazer voltado para o espaço público, na tentativa de reinstaurar vínculos sociais e de convivialidade. A preocupação do grupo está em fazer refletir a realidade sócio-cultural argentina, principalmente em um período pós ditadura militar e grave recessão econômica. Escreveram diversos manifestos propondo uma estética que lidasse com os detritos desses processos, atuando por meio "do que ficou" para pensar um modo de lançar-se a uma perspectiva de futuro contrária a imposta por um Poder vigente. A seguir, o quarto manifesto escrito pelo grupo, após as privatizações e onda de desemprego que assolou o país ao final dos anos 90.
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Prólogo
A inutilidade do protesto social, a persistência da pobreza e o desemprego, o retorno dos velhos políticos, o flagelo da insegurança e dos novos atos de corrupção aprofundam, inevitavelmente, a depressão social. Este panorama, com a soma do anúncio de que haverá mais ajustes, faz com que milhões de argentinos de todas as idades e condições sociais baixem os braços. Como se a Argentina fosse uma parte do inferno, o sofrimento dos habitantes parece não ter fim. A vítima, neste caso, ademais de pessoas concretas, é a chave da sobrevivência: a esperança. Uma sociedade desesperançada perde seu escudo de proteção e se converte em presa fácil daqueles que, de uma ou outra maneira, decidem pilhar-la. Como uma lógica implacável, a desesperança leva à conclusão de que "não há futuro". E isso significa ir renunciando direitos adquiridos como: ter comida o suficiente, uma moradia digna, educação gratuita e cuidados médicos essenciais. Por isso, os tempos difíceis que estão por vir, que os analistas políticos qualificam com o eufemismo de "difíceis", serão tempos de resistência. Palavra que, caso se faça carne em cada um de nós, nos permitirá sobrepormos tudo. Inclusive o que imaginamos que não nos possa acontecer. Teremos que resistir à fome que continua matando recém nascidos. Teremos que resistir à falta de trabalho e aos salários lixo. Teremos que resistir às falsas promessas dos falsos dirigentes. Teremos que resistir à exaustão. Teremos que resistir, principalmente, à desigualdade, mãe de todas os males sociais. Teremos que resistir até que chegue o dia em que surja, por obra e força da resistência, um país mais justo. A resistência nos devolverá a esperança. Ou seja, o futuro. Essa crença fincada é a origem do quarto manifesto.
A estética da resistência
Porque vivo na rua e como lixo. Porque visto farrapos e morro de doenças curáveis. Porque não tenho trabalho e nem terei. Porque sou muito jovem ou muito velho. Porque aqueles que me tiraram tudo escreveram à minha frente a sentença "Perca toda a esperança", sou a humanidade caída. Mas tenho uma arma que fará levantar minha dignidade desesperada:
. As gargantas que gritam, os dentes que rangem, as mãos que se crispam, são as formas da estética da resistência;
. O herói da resistência não é luminoso, mas gris; não está coberto de glórias, mas de chagas; não tem armadura de ferro, mas de roupa torcida; não bebe ambrosia, mas bebidas que envenenam o corpo; não como manjares, mas dejetos. O herói da resistência é todo aquele ou aquela que segue vivendo mesmo que não tenha nenhum motivo para;
. O que resiste, chora. Suas lágrimas são lágrimas dos que não tem e nem terão trabalho; dos que comem lixo e vestem farrapos; dos que não podem e nem poderão educar-se; dos que morrem de doenças curáveis; dos que tiveram o futuro roubado; dos bebês que deixam de chorar quando morrem de fome; deverão ser fortes entre os fortes para que não se afoguem nesse mar;
. A humanidade se divide em dois grandes blocos: os que resistem e os que se entregam. Todo o demais: lugar de nascimento, condição social, credo religioso ou ideologia política são meras circunstâncias;
. Acreditar mesmo que se tenha perdido a fé; esperar mesmo que se tenha perdido a esperança; criar mesmo que nada possa ser feito;
. A resistência cultural decidirá o destino
. Na arte da resistência não há expectadores. Se faz entre todos ou não se faz.
. Subversivo não é o piquetero¹ que barra uma rota, o pensionista que golpeia a porta do banco, o trabalhador que se declara de greve ou o estudante que toma a faculdade. Subversivo é o político que despreza o bem comum para pensar em seu próprio bem, o banqueiro que fica com a poupança das pessoas, o empresário que seca a sua empresa, o governo que corta o orçamento de educação e saúde;
.O artista que resiste está condenado à orfandade e a intempérie. Ninguém há de querer ser seu pai ou sua mãe, e nem acolhê-lo em sua casa porque o Poder o declarou um animal perigoso;
. Não se trata de ser crucificado, mas de queimar as cruzes;
. O desequilíbrio é a arma letal daquele que resiste;
. A resistência nos fará livres;
. A política deve ser a continuação da resistência por outros meios;
. A resistência é o estado natural do dominado;
. Se a resistência nãos e converte em obsessão, estará fadada ao fracasso;
. A vitória não é o fim da resistência, é apenas um intervalo para seguir resistindo;
. A vitória adormece. Se o que resiste não está alerta, a vitória pode ser mais letal que a derrota;
. Resistir é lutar;
. A paz é uma distração;
. Resistir hoje, impor-se amanhã;
. Nenhuma vitória cultural é irreversível. Com outros nomes, outros rostos e outra linguagem, o dominador sempre volta para impor sua ideologia ao que foi dominado;
. O Poder não dorme. Sonha acordado, o tempo todo, com mais poder;
. O que espera sentado na porta de sua casa ver o cadáver de seu inimigo passar, apenas verá passar o seu próprio cadáver;
. A resistência é sempre um projeto à margem do fracasso. A capacidade do que resiste para viver à margem lhe garante a sobrevivência;
. Para o Poder a democracia é uma aberração porque permite. Para o que resiste pode ser um espelho que o impede de ver a realidade;
. O Poder não tortura o que resiste para que morra, mas para que deseje morrer;
. A dúvida é uma debilidade;
. Para o Poder o que resiste deve ser eliminado porque sua natureza é a desobediência;
. O grande paradoxo do século XXI: as democracias totalitárias;
. Não é certo que inimigo bom é inimigo morto. Aquele que resiste sabe que os mortos também podem ganhar guerras;
. O voto é um cheque em branco entregue ao poder;
. Para o Poder, todo aquele que pensa por si mesmo é culpado;
. O máximo objetivo do Poder é não deixar que o dominado pense;
. O acaso não existe. O inventou quem não foi capaz de assumir seu próprio destino;
. O indiferente também é um dominado;
. A extrema pobreza é a arma mortal do poder;
. A extrema pobreza é a certidão de óbito da liberdade;
. Perdoar, para o que resiste, é um suicídio político;
. O dado mais otimista da Argentina de hoje é que não sabemos o que nos acontecerá amanhã;
. Isso que dizer que o projeto totalitário é isso ainda: um projeto
. O que resiste sangra. O sangue derramado e que volta a se derramar é dos desnutridos que morrem de fome; dos desempregos abandonados à própria sorte; dos doentes sem acesso à medicamentos; dos adolescentes sem futuro;
. O que resiste nunca pede. Sempre dá. O que é que dá? Esperança - a qualquer preço e contra toda a lógica;
. Fazer possível o impossível;
. Se sobrepor a tudo;
. Para vencer, participar;
. A adversidade é a força do que resiste;
. Porque nos usurparam o futuro, inventaremos o futuro;
. Ler é resistir;
. Escrever é resistir;
. Render-se é impensável;
. A descrença é o umbral da derrota;
. Entre o desejável e o possível há um abismo insalvável
. A segurança não faz parte da condição humana.

Legenda: Coletivo Escombros - Gimnasta I - II, série Pancartas, fotoperformance, 1988
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Tradução: Paloma Durante
Grupo Escombros: : Luis Pazos, Héctor Puppo, José Altuna, Horacio D'Alessandro e David Edward. Argentina, Buenos Aires/ La Plata, 1988
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Notas da tradução:
- Texto Original:
https://www.centrodearte.unlp.edu.ar/wp-content/uploads/2020/04/Escombros-1-1.pdf
- Há uma outra tradução do manifesto para o português, presente no doutorado da artista Cláudia Paim, no qual ela pesquisa modos de fazer coletivos na produção de arte da América Latina contemporânea; divirjo dela em apenas alguns poucos termos. Agradeço ao Felipe Apezzatti pela indicação.
[1] Piquetero é o termo em espanhol para movimentos trabalhistas que tomam as ruas como forma de protesto. O termo ganha força com o Movimento Piquetero, surgido na Argentina da década de 90, formado principalmente por trabalhadores desempregados, egressos do processo de privatização de estatais do país.
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Quarentene-se
Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com
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