Legenda: Play Time, Dave Danzara, colagem digital. *Todos os trabalhos que compõem esse post foram produzidos pelo artista e podem ser acessados em seu site.
Este curto, raivoso e propositivo texto de María Galindo foi escrito e publicado no início da disseminação mundial da pandemia de COVID-19 e o decidimos publicar apenas nesse momento, confessamos que já a algum tempo o temos traduzido pela amiga e colaboradora Viviane Botton, para colocar ao leitor um contra argumento perante a abertura dos serviços, essenciais ou não, pelos governos estaduais e municipais do Brasil, em vigor na atualidade. María faz uma ode a desobedecer o isolamento, a quarentena e o contato, mas a faz com premissas anti-capitalistas feministas e ancestrais, de subversão da ordem mundial de comercialização dos corpos, de suas ações e pensamentos. Vemos a reabertura dos serviços de mercantilização social aplicadas agora pelo Estado brasileiro não como María a propõem, mas como o meio de acelerar nossa morte e, não obstante, a contínua contenção da revolta popular.
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Tenho coronavírus, porque mesmo que pareça que a doença ainda não entrou em meu corpo, pessoas queridas têm; porque o coronavírus está atravessando cidades por onde passei nas últimas semanas; porque o coronavírus mudou com um estalar de dedos como se tudo isso fosse um milagre, uma catástrofe, uma tragédia sem remédio. Onde se pisa, ele está, onde se chega, ele chegou antes, e hoje nada se pode pensar. Parece que não só eu tenho coronavírus, mas que o temos todas, todes, todos; todas as instituições, todos os países, todos os bairros e todas as atividades.
O que está claro é que o coronavírus, mais do que uma doença, parece ser uma forma de ditadura mundial multigovernamental policialesca e militar.
O coronavírus é o medo ao contágio.
O coronavírus é uma ordem de confinamento, por mais absurda que ela seja.
O coronavírus é uma ordem de distância, por mais impossível que ela seja.
O coronavírus é um código de qualificação das chamadas atividades essenciais, onde a única permitida é sair para trabalhar ou trabalhar no teletrabalho como signo de que estamos viv@s.
O coronavírus é um instrumento que parece eficaz para apagar, minimizar, ocultar ou colocar entre parêntesis outros problemas sociais e políticos que vínhamos conceitualizando. De repente e por magia eles desapareceram debaixo do tapete ou de trás deste gigante.
O coronavírus é a eliminação do espaço social mais vital, mais democrático e mais importante de nossas vidas que é a rua, esse lugar de fora que virtualmente não devemos atravessar e que em muitos casos era o único espaço que nos restava.
O coronavírus é o domínio da vida virtual, você tem que estar ligada a uma rede para comunicar-se e saber-se em sociedade.
O coronavírus é a militarização da vida social. É o mais parecido com uma ditadura onde não há nenhuma informação que não seja para produzir medo.
O coronavírus é uma arma de destruição e proibição, aparentemente legítima, do protesto social, onde nos dizem que o mais perigoso é nos juntar e nos reunir.
O coronavírus é a restituição do conceito da fronteira a sua forma mais absurda; nos dizem que fechar uma fronteira é uma medida de segurança, quando o coronavírus está dentro, e tal fechamento não impede a entrada de um vírus microscópico e invisível, mas impede e classifica os corpos que poderão entrar ou sair das fronteiras.
O espaço de Schengen, que é de onde o coronavírus se propagou a esta parte do mundo, onde habito, fecha sua fronteira à circulação de corpos que estão fora deste espaço e cumpre finalmente o sonho fascista de que @s outr@s são o perigo.
O coronavírus poderá ser o Holocausto do século XXI para gerar um extermínio massivo de pessoas que morrerão e estão morrendo, porque seus corpos não resistem à doença e aos sistemas de saúde que as, es e os têm classificado sob uma lógica darwiniana como parte de quem não tem utilidade e por isso deve morrer.
Legenda: Atomic Era, Dave Danzara.
Aparecem os milhões de euros de resgate de suas economias coloniais para salvar os aluguéis, faturas de serviços, salários, bem quando a toda essa massa de assalariados lhes vinham recortando os céus, dizendo que não tinham de onde pagar a dívida social. Agora que os têm mortos de medo, obedientes e reclusos, lhes premiam com o doce consolo de que salvarão suas contas, depois de ter salvo as que de fato importam, que são as das corporações e as dos Estados.
Os “Socialistas”, como os que governam a Espanha, falam de uma guerra que vamos vencer todos juntos. Eles gostam da palavra, acreditam que serve para encorpar e fazer da doença o suposto inimigo ideal que nos unirá. Nada mais fascista do que declarar guerra contra uma sociedade e contra a democracia aproveitando o medo da doença. Nada mais fascista do que fazer das casas das pessoas os cárceres de suas celas. Nada mais neoliberal do que proclamar o salve-se quem puder como solução tutelada.
O que acontece quando o coronavírus passa fronteiras e chega a países como Bolívia?
Comecemos dizendo que acá o coronavírus era esperado na porta pela dengue, que está matando nos trópicos – sem manchetes nos jornais – as pessoas desnutridas, os bebês barrigudinhos, os que vivem nas zonas insalubres das periferias. A dengue e o coronavírus se cumprimentaram, ao lado estavam a tuberculose e o câncer que nesta parte do mundo são sentenças de morte.
Os hospitais construídos, em sua maioria no início do século XX com o auge do estanho e posteriormente modernizados, nos anos setenta do século passado, com o auge do desenvolvimentismo, são trogloditas que colapsaram há tempos e onde o mau costume de curar as pessoas passa por quanto dinheiro elas têm para pagar os remédios, todos importados e impagáveis.
Entra o coronavírus e chega de avião, não de turistas, mas de nossas exiladas do neoliberalismo que construíram pontes de afetos e que trazem estranhos estrangeiros que elas chamam de filhos, irmãos ou pais, a nos visitar.
Chegam com presentes e com corpos infectados, mas a doença não chega só em seus corpos, chega também em primeira classe, chega porque tem que chegar, simples assim. Parece incrível que tenhamos que apelar ao senso comum e que tenhamos que dizer que as fronteiras não podem ser fechadas, tal qual não se pode por um teto no sol, nem um muro nas montanhas, nem portas na selva.
Chegou por milhares de lugares, mas foi o corpo de uma de nossas exiladas do neoliberalismo o que foi estigmatizado e depreciado como “a portadora”, mesmo que ela e não outros tenham sido e sejam quem mantém este país. Os parentes dos doentes se organizam para não deixar que a hospitalizem por pânico, porque antes mesmo que chegasse a um corpo, o coronavírus chegou em forma de medo, de psicose coletiva, de instrução para classificação, de instrução para o distanciamento.
A ordem colonial do mundo nos converteu em idiotas que só podem repetir e copiar.
Privada e privados de pensar, no caso boliviano a presidenta decide copiar partes do discurso e medidas do presidente da Espanha, e lendo num teleprompter lança um pacote de medidas como se estivesse sentada em Madrid e não em La Paz. Fala da guerra que tem que ser ganha juntos e dos empresários com os quais se alinhará, e lança um toque de recolher e uma coleção de proibições.
A única coisa diferente no discurso é o recurso de cooperação internacional, a conhecida mendicidade em que deitamos e rolamos para que nos doem desde máscaras até idéias, uma vez que lhes tenham sobrado.
Enquanto espero uma epifania que nos esclareça o que temos que fazer e que estou certa que entrará pelo corpo frágil e febril que a revelará; enquanto me dedico com minhas irmãs a desobedecer a proibição de fabricar álcool-gel caseiro e tudo isso que fazemos para vender, porque também temos que sobreviver; enquanto procuro meus livros de medicina ancestral para produzir um unguento respiratório antiviral, como os que fazíamos quando Mujeres Creando era uma farmácia popular numa zona da periferia da cidade, penso no absurdo.
Já que há toque de recolher, ficam proibid@s de sobreviver tod@s que vivem do trabalho na noite?
Legenda: Coke Is a Hell Of A Drug, Dave Danzara.
A sociedade boliviana é uma sociedade proletarizada, sem salário, sem vagas de trabalho, sem indústria, onde a grande massa sobrevive nas ruas num tecido social gigante e desobediente. Nem uma das medidas copiadas se ajusta às condições reais de vida, não só pelas dívidas, mas pela vida mesma. Todas e cada uma dessas medidas copiadas de economias que não têm nada a ver com a nossa não nos protege do contágio, mas elas pretendem nos privar de formas de sobrevivência que são a vida mesma.
Nossa única alternativa real é repensar o contágio.
Cultivar o contágio, nos expor ao contágio e desobedecer para sobreviver.
Não se trata de um ato suicida, se trata de sentido comum.
Mas talvez neste sentido comum esteja todo o sentido mais potente que possamos desenvolver.
O que acontece se decidimos prepara nossos corpos para o contágio?
O que acontece se assumimos que certamente nos contagiaremos e irmos a partir dessa certeza processando nossos medos?
O que acontece se ante a absurda, autoritária e idiota resposta estatal ao coronavírus nos propusermos à autogestão social da doença, da debilidade, da dor, do pensamento e da esperança?
O que acontece se nos burlarmos do fechamento das fronteiras?
O que acontece se nos organizarmos socialmente?
O que acontece se nos prepararmos para beijar os mortos e para cuidar das vivas e dos vivos por fora das proibições, que o único que estão produzindo é o controle de nosso espaço e de nossas vidas?
O que acontece se passarmos do abastecimento individual à contagiosa panela comum e festiva como tantas vezes fizemos?
Dirão mais uma vez que estou louca, e que o melhor é obedecer o isolamento, a reclusão, o não-contato e a não contestação das medidas, quando o mais provável é que você, sua amante, sua amiga, sua vizinha, sua mãe se contagiem.
Dirão mais uma vez que estou louca quando sabemos que nesta sociedade nunca tivemos as camas de hospital que necessitamos e que se batemos em suas portas, ali mesmos morreremos rogando por ajuda.
Sabemos que a gestão da doença será principalmente domiciliar, preparemo-nos socialmente para isso.
O que acontece se decidirmos desobedecer e sobreviver?
Necessitamos nos alimentar para esperar a doença e mudar a alimentação para resistir.
Necessitamos procurar noss@s xamãs e fabricar com elas e eles esses remédios não-farmacêuticos, provar com nossos corpos e experimentar o quê nos faz sentir melhor.
Necessitamos coquita para resistir a fome e farinha de cañahua, de amaranto, sopa de quinoa. Tudo isso que nos ensinaram a depreciar.
Que a morte não nos pesque acocoradas de medo obedecendo ordens idiotas, que nos pesque nos beijando, que nos pesque fazendo amor e não guerra.
Que nos pesque cantando e nos abraçando, porque o contágio é eminente.
Porque o contágio é como respirar.
Não poder respirar é a menor das condenações do coronavírus, mais do que pela doença, pela reclusão, a proibição e a obediência.
Nosferatu, numa cena inesquecível, me vem à mente, quando a morte é eminente e a peste incarnada em ratos invadiu o pequeno povoado, tod@s se sentam em uma grande mesa na praça para compartilhar um banquete coletivo de resistência. Que seja assim que o vírus nos encontre, prontas para o contágio.
tradução de
Viviane Bagiotto Botton
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* Este texto foi publicado originalmente em espanhol no site da Radio Deseo em 17 de março e posteriormente na conhecida coletânea Sopa de Wuhan. A versão brasileira que utilizamos, com ajuda da autora, é uma adaptação de sua publicação no site Filosofia do Tempo do Agora, publicada no dia 5 de maio, também traduzida por Viviane Botton.
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María Galindo Neder (Bolivia, 1964) é uma ativista boliviana, militante feminista, psicóloga e jornalista, cofundadora e líder desde 1992 do coletivo Mujeres Creando. É co-diretora da Radio Deseo, única emissora de rádio feminista da Bolívia com alcance nas cidades de La paz e El Alto. Foi presa várias vezes pela polícia boliviana por suas ações subversivas, muitas vezes consideradas “performance” ou happenings. Entre os temas que trabalha estão a despatriarcalização no contexto do processo constituinte boliviano e o feminicídio como crime de Estado. Viviane Bagiotto Botton é doutora em filosofia pela UNAM-México e pesquisadora de pós-doutorado na UERJ, também faz parte de diversos grupos de pesquisa sobre filosofia contemporânea, feminismos e gênero.
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Quarentene-se
Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras pela por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com
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