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 CONTEÚDO 

DE CARNE E OSSO, O GRITO - Paola Ribeiro


Legenda: Registro feito por Juliana Lewkowicz da performance "Entre" - Paola Ribeiro, 2017 (ainda em processo); Imagem .cedida pela artista.


Evocando meandros de seus processos de vocalização, Paola Ribeiro levanta a necessidade de (re)encarnar o corpo que fala. O seguinte texto passeia entre dúvidas e exercícios de vontade acerca de uma voz capaz de gerar reações e afetos que convoquem quem escuta a uma ação.


Sempre que enveredo o pensamento na qualidade relacional da voz, encontro o mito de Eco e Narciso. No mito quem me interessa é Eco que, incapacitada de falar por si, é condenada a repetir o que é dito pelo outro. Ela precisa do outro para ter voz. Mais do que repetir, ela reflete a voz do outro. Quando o outro acaba ela começa, de forma levemente diferente. Eco, a propósito, se apaixona por Narciso e acaba definhando por não suportar a rejeição, e o que resta de seu corpo é a voz. Essa imagem do corpo que definha, que seca carne e seca o osso me impressiona. Nós, no processo de oralização, somos eco de nossa família; aprendemos os fonemas, suas construções e significados ouvindo primeiro e reproduzindo depois.


Eco reflexo.

Eco retorno.

Eco repetição.

De que?

(Você está me ouvindo ? O meu microfone está desligado ? Não?!)

As vozes parecem não encontrar ouvidos. A reflexão não acontece. As várias vozes não aparecem então não se encontram. Não ouvir é um jeito de se tornar mudo. Não ser ouvido também. Sinto que os ouvidos estão surdos. Uma surdez-construção social.


(O problema parece ser de conexão mesmo)

Então, ultimamente, toda oportunidade de falar eu falo. E falo muito. Me desculpo ao ouvinte, e sigo encabulada falando, uma fala solitária que rebate nas paredes e é veiculada por um microfone. É engraçado que, apesar da verborragia, me sinto muda, como se tudo o que precisasse ser dito não tivesse saído do corpo, mesmo com tantas palavras envolvidas no monólogo. O que me ocorre, enquanto escrevo, é que o que precisa ser comunicado não está nesse formato-fala, mas necessita de sonoridade para acontecer.

O que a fala veicula é a voz, organizada em diversos fonemas formadores de linguagem. Para se aprender uma língua é preciso muito tempo de escuta e mimese sonora. Porém, já nascemos produzindo som, vocalizando. É como respirar, mas sem que exista um órgão exclusivo para isso. Adriana Cavarero diz que “quando a voz vibra existe alguém de carne e osso que a emite”. Sem desconsiderar o valor da imagem, desconfio que talvez a coisa mais próxima que se tenha do carne e osso, quando a distância física é uma realidade, seja a voz. Essa voz que tem forma de onda, e vai mais longe que o braço e perna, que entra no fio e sai do outro lado; A voz, desdobramento do corpo; a voz que, mesmo que seu ponto de origem não exista mais, continua a soar.

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Legenda: Registro feito por Juliana Lewkowicz da performance "Entre" - Paola Ribeiro, 2017 (ainda em processo); Imagem .cedida pela artista.


Sinto que carne e osso se encontram descompensados. Fartos do carro do ovo que passa as 22h do domingo, dos 17 cachorros que latem ininterruptamente, das reformas alheias de domingo a domingo, dos aviões, do vizinho que cobra o banho do filho, da ideia de que o coronavirus é novo, do fantasma da volta às aulas, do álcool gel, do medo de pegar COVID19, da alta moda das máscaras no queixo, do preço exorbitante do arroz e do feijão, do jornal, de pretxs sendo mortos, de LGBTQI+ sendo mortos, de mulheres sendo mortas, dos gritos de assassina para uma criança de dez anos, do desgoverno, dos cinco meses de quarentena em que “ficar em casa quem pode” não corresponde nem a 50% da população.


Como não gritar?

Talvez seja isso: as carnes não gritam mais, só se ajeitam nos fonemas.

É socialmente mais aceito.

Vociferar atrocidades pode, chorar os mortos e gritar o desespero, a barbárie, não.

Desaprendemos a gritar.

A necessidade do grito tem movido desenfreadamente minha voz. Um grito encontro/reverberação da minha própria carne em relação com a carne de um outro. Então, tenho pedido a alguns artistas para que me mandem videos de improvisações/ composições. É um exercício/projeto, e também uma desculpa para que minha carne reaprenda a gritar. Já que sozinha ela emudece. São experimentações muito íntimas e tenho aprendido muito. Tenho compartilhado essa intimidade nas redes porque, enfim, a essa altura, uma tripa a mais no mundo não assusta mais ninguém.


Esses experimentos convocam da carne a voz do fonema, a voz treinada para o canto, a voz escondida na úvula, no peito, no umbigo, na buceta, no cu. São muitas as vozes que carregam um corpo. Exponho essas vozes porque gostaria que elas não soassem solitárias, porque gostaria que elas encontrassem outras carnes ressonantes para se identificar, trocar, chorar, odiar e celebrar junto.


Ouço em 2020 a Elis Regina de 1979 cantando Rebento em Montreux, do mestre Gil, sempre muito esperto com as palavras e sons.

“A reação imediata. A cada sensação de abatimento. Rebento. O coração dizendo: bata!. A cada bofetão do sofrimento. Rebento. Esse trovão dentro da mata. E a imensidão do som. E a imensidão do som. E a imensidão do som desse momento”

Legenda: Registro feito por Juliana Lewkowicz da performance "Entre" - Paola Ribeiro, 2017 (ainda em processo); Imagem .cedida pela artista.

A voz ser um desses vestígios que resta da existência me encanta.

Sinto que a verborragia, e tudo mais que brota em forma de som nesse corpo tem sido rebento.


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Paola Ribeiro é artista e educadora. Mestranda na linha de processos e procedimentos artísticos do Instituto de Artes da Unesp e bacharel em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes. Atualmente pesquisa a ação do corpo no espaço através do entrelaçamento de linguagens como performance, música e vídeo.

Como educadora atuou em instituições como Fundação Bienal, Pinacoteca do Estado de São Paulo e SESC. Já desenvolveu ilustrações para o Jornal Folha de São Paulo e participou de mostras no Ateliê 397, Tranzarte Brasil e Casa Contemporânea. Faz parte do grupo L.I.V.E (Laboratório de Improvisação vocal e Experimentação)


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Notas do texto:

As imagens utilizadas no texto são registros de um trabalho produzido pela artista chamado "Entre", que se configura como uma série de videoperformances que acontecem em casas sem habitantes, vazias. Consiste em ações de corpo/voz motivadas pela escuta/relação desenvolvidas nesses espaços.


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Quarentene-se

Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com



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