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 CONTEÚDO 

NENHUM DISTANCIAMENTO SOCIAL PODE NOS PROTEGER DE NOSSO TEMPO - Emanuele Coccia

Atualizado: 9 de jul. de 2020



Revelado por “La vie des plantes[1]” em 2016, o filósofo italiano continua a estudar os seres vivos, que ele vê como um conjunto que transcende idades e espécies e cujas “Metamorphoses” – título de sua nova obra –, ele celebra.


Em contraste com a maioria de seus colegas, o filósofo italiano Emanuele Coccia, – professor da EHESS (Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais) –, antes de lançar-se aos livros e confrontar-se com o imenso edifício do pensamento contemporâneo, tem contemplado intensamente plantas, árvores e insetos. Muito antes de aprender grego e latim (como autodidata), apaixonado por entomologia, ele realizou estudos de botânica. Esse percurso singular lhe confere um lugar absolutamente único na paisagem do pensamento contemporâneo.


Em 2016, seu ensaio “La vie des plantes” (Éd. Rivages) alcançou enorme sucesso. Em seu último livro, “Métamorphoses” (Éd. Rivages), publicado logo antes da crise, o propósito é simples: “Este livro afirma a unidade de todos os seres vivos, presentes, futuros e passados, e a unidade dos seres vivos com toda a matéria do mundo: é isso que se costuma chamar panteísmo”. Ele recorda, assim, o modo como as espécies viventes – o mineral, o vegetal, o animal e até as bactérias –, vinculam-se.


Pensador do vínculo e metafísico da mistura, Emanuele Coccia fala-nos tanto de Darwin e Linné quanto do escritor Samuel Butler e do psicanalista Sándor Ferenczi, bem como do biólogo britânico contemporâneo Donald Irving Williamson. Ele passa da descrição de um casulo às considerações sobre o mistério do nascimento e da alimentação, analisando cuidadosamente a transformação de uma lagarta em uma borboleta. Ele sabe aliar erudição filosófica e científica.


Sob sua pena, o natural se confunde com o espiritual, o biológico adquire uma cor poética. Nesse sentido, ele lembra a célebre figura de Gaston Bachelard, capaz de escrever tanto acerca do sujeito da formação do espírito científico quanto do caráter poético de uma casa. Um admirável conjunto de formas de vida desfila assim sob os olhos do leitor que viaja ao coração do vivente. Tendo em vista a situação atual, a conclusão do livro tem um caráter quase profético: “Não precisamos nos proteger dessa doença. Não temos necessidade de nos vacinarmos contra o vírus do tempo. Inútil. Nossa carne jamais cessará de mudar. Deve-se estar doente, muito doente. Sem ter medo de morrer. Somos o futuro. Vivemos rápido. Morremos frequentemente”.



Como você percebe a crise atual?


“Há algo de curioso nesta crise. Como em um conto de fadas, uma criatura minúscula invadiu todas as cidades do mundo. É mesmo difícil atribuir-lhe a qualidade de ‘vivente’. Esse agregado de material genético invadiu livremente as praças das cidades e das metrópoles e de repente a paisagem política mudou de forma”.

Acerca desse vírus de que todos falamos, mas de que sabemos muito pouco, Coccia oferece uma interpretação muito pessoal:


“Um vírus é um ser fronteiriço. Em seu corpo, a fronteira entre a vida e a morte que parece alhures tão evidente se torna insignificante. Um vírus, poderíamos dizer simplificando, é como o mecanismo químico, material e dinâmico de desenvolvimento e de reprodução de todos os seres vivos, mas que existe fora da estrutura celular, sob uma forma mais anárquica e mais livre. Um vírus é uma forma de vida que habita o limiar entre a vida ‘química’ que caracteriza a matéria e a vida biológica, sem pertencer a uma mais que à outra”.


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ADAPTAR-SE A UM VÍRUS


Não temos escolha: teremos que aprender a conviver com esse vírus, como afirmam os epidemiologistas, e mais:


“Adaptar-se a um vírus significa contaminar-se, transformar-se, metamorfosear-se, da mesma forma que adequar-se ao futuro significa expor-se a mudanças irreparáveis”.


Em outras palavras, é preciso não temer a metamorfose:


“A metamorfose é a relação de continuidade que vincula dois corpos que não têm nada em comum no plano anatômico, no plano etológico, tampouco no plano ecológico. Tomemos o caso mais simples, aquele da lagarta e da borboleta. Suas silhuetas não têm nada em comum. Seu éthos ou modo de vida tampouco: um é um ser que passa sua vida a comer como se o mundo fosse um imenso McDonald´s, o outro uma sátira que foi feita para fazer sexo. Seus nichos ecológicos também são incompatíveis. E, no entanto, esses dois corpos, essas duas formas de vida, esses dois mundos são atravessados por um só e mesmo eu.


O que a metamorfose nos diz é, portanto, em primeiro lugar, que toda vida não se deixa acompanhar por uma única face, um único éthos, um único mundo: a vida é o que atravessa e entrelaça vários mundos, várias formas éticas, vários corpos. Por outro lado, a metamorfose diz-nos que mesmo lá onde constatamos uma diferença de forma há uma só e mesma vida. Todos os indivíduos da mesma espécie, mas também todas as espécies (cada uma delas, como Darwin demonstrou, é a metamorfose da outra) são, portanto, a expressão de uma única e mesma vida. Não somos exatamente aliados, não constituímos uma família: partilhamos uma só e mesma carne. A alimentação é a prova mais evidente disso: a carne de um ser muito distante de nós, do ponto de vista taxonômico, pode tornar-se nossa carne. A partir desse ponto de vista, toda metamorfose é simultaneamente individual e coletiva, porque ela opera sobre a carne (e sobre a vida) que é comum a todos e a todas”.


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A CIDADE NÃO EXISTE MAIS


O famoso mundo do amanhã, a propósito do qual dizemos tudo e qualquer coisa, Coccia o imagina por meio de uma profunda mutação do espaço, especialmente do espaço urbano:


“As cidades estavam cansadas, velhos espaços, imaginados para uma vida que já não é mais a nossa há pelo menos dois séculos. Fomos lançados desde então em uma estranha experiência de monasticismo planetário: a cidade não existe mais, e o que resta é um conjunto contrastante de casas particulares, apartamentos desiguais, casebres. Talvez devêssemos nos libertar para sempre da ideia da cidade como palco original e principal da política”.


Segundo ele, é com a vida fora das cidades que um novo equilíbrio precisa ser estabelecido, lançando assim um apelo aos arquitetos e aos urbanistas:


“Toda a vida de que necessitamos para viver – trigo e arroz, tomates, maçãs, vacas, porcos, tudo o que comemos –, foi exilada. E toda a vida que não fazia parte de nossas necessidades foi mantida ainda mais distante, em espaços chamados florestas, literalmente o extremo exterior – uma espécie de campo de refugiados para toda a vida que não nos diz respeito. É, pois, consolador pensar que a vida não humana vive em outra parte, fora da cidade, na floresta/campo de refugiados, permitindo-nos esquecer que o espaço que chamamos de cidade é um espaço que não nos pertence. Paris, Londres, Roterdã, Milão, Nova York não eram desertos minerais antes da chegada do homem.


Eram espaços habitados por outras espécies. Eram cidades não humanas. É a partir de um desses campos de refugiados – do futuro –, que esse novo vírus chegou à cidade, como para lembrar-nos que o futuro não pode ser afastado. Nenhum distanciamento social pode nos proteger de nosso tempo: ocasião para reescrever um novo contrato urbano. O espaço do futuro deverá acolher o maior número de espécies. Somente assim será possível desvencilhar-se da oposição entre cidade e floresta”.


tradução de

Davi De Conti e Marcelo Jungmann Pinto


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Notas

* Esta entrevista foi publicada pelo periódico L’Echo em 29 de maio.

[1] Esta obra foi traduzida para o português por Fernando Scheibe e publicada pela editora Cultura e Barbárie em 2018. [N. dos T.]

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Davi De Conti nasceu em São Paulo e foi criado em Goiânia. De volta à terra da garoa, se tornou mestre em filosofia e agora se encontra confinado no Jaguaré.

Marcelo Jungmann Pinto é Professor de Filosofia do Instituto Federal de Brasília.

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