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 CONTEÚDO 

DIÁRIO DE UM MOTOBOY NO FRONT DE UMA GUERRA BIOLÓGICA - PARTE I - Anderson Marinho

Atualizado: 9 de jul. de 2020



O motoboy Anderson Marinho Souza escreve diariamente, a exatas duas semanas, em seu perfil do Facebook sobre o cotidiano de sua experiência sensível e crítica com o trabalho de entregas para os diversos aplicativos em meio a crise sanitária-econômica-securitária provinda com a chegada no novo coronavírus (Covid-19) no Brasil. Reunimos aqui, do dia 25 de março ao dia 06 de abril de 2020, seus relatos em prosa ligeira como um motor transmutado em textos e imagens, a fim de tornar público seus pensamento, assim como de realçar os motivos de lutarmos contra o trabalho. Na semana que vem, no dia 14 de abril, voltaremos a publicar mais uma semana da vida autobiografada de Marinho. Se gostar e achar importante que o mundo o conheça, como achamos, compartilhe! Boa leitura.


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Introdução

São Paulo, 25 de março


Há exatos 25 dias eu iniciava minha caminhada solo na vida. Morava com meus pais. Precisava sair da zona de conforto. Desafiar, conhecer limites, me testar. Saí sem emprego fixo, como mais um dos milhões que hoje no Brasil sobrevivem ganhando a vida por meio de aplicativos. Foram as duas rodas que me proporcionaram tal mudança. Nem um mês se passou e o desafio - que sabia, não seria dos mais fáceis - se multiplicou de tal maneira que eu, sinceramente, não sei dimensionar. Na semana passada, com o agravamento da crise proporcionada pela pandemia do novo coronavírus, me dei conta de que eu estava no "olho do furacão". Me vi numa situação onde haviam duas alternativas: me isolava das ruas ou continuava minha jornada - o trabalho de um motoboy delivery numa metrópole transtornada. Foi depois de visitar meus pais, na última quinta-feira - seguindo todos as orientações possíveis de segurança sanitária (e como foi duro não poder abraçá-los) - que tomei a decisão de prosseguir, agora estou no front dessa batalha. Continuarei trabalhando, tomando todos os cuidados possíveis. A partir de hoje, relatarei a rotina de um motoboy em meio a uma guerra biológica planetária. Fotos de uma cidade assustada e de ruas vazias, dividindo por aqui as dificuldades e angústias encontradas pelos caminhos em um momento tão singular em nossas vidas. Será um período duro, mas a primavera há de chegar. Fiquem em casa, pois eu estarei aqui fora para contar os fatos ocorridos na cidade. Se cuidem! Axé!!!

Legenda foto: região do parque do Ibirapuera, a cidade se recolhe para se defender do Covid-19.


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1° Km - Normas de Segurança

São Paulo, 26 de março


Saio de casa e me deparo com uma Vila Madalena vazia, muito diferente do bairro boêmio e alegre que encontrei ao chegar há menos de um mês. Estou morando no quarto da casa de um jornalista muito boa praça. Ele é do grupo de risco. É dia de trocar o óleo da minha companheira de jornada, a quem eu, desde que a adquiri, trato-a carinhosamente de "Norminha", minha Norminha. Que ironia! Hoje, quer dizer, diariamente, cumpro normas rigorosas de higiene para minha segurança e das pessoas com quem tenho contato. Tenho usado uma solução de água sanitária e desinfetante diluídos em água, e álcool em gel. Quando chego em casa esterilizo tudo: roupas, sapatos, carteira, chaves, celular, a bag que carrego as refeições, manetes, capacete e até os pneus. Só depois entro em casa, descalço, direto para o banho. Para as mãos, uso álcool em gel após cada entrega realizada. Se antes já haviam os receios comuns à profissão, agora também paira no ar o medo dessa chaga invisível e extremamente contagiosa. Na oficina, os funcionários disseram que o movimento caiu consideravelmente, mas garantem: "estaremos abertos para atender vocês". Enquanto aguardo a primeira chamada do dia, na região de Pinheiros, observo o movimento de uma obra a todo vapor. Será neste momento a construção de um edifício um serviço essencial? E a "peãozada"? Sigo para região do Jardim Paulista, rua Peixoto Gomide. Há bastante movimento, talvez pela grande quantidade de hospitais na região. No Shopping "Cidade São Paulo", na Paulista, os corredores vazios e lojas fechadas. Apenas alguns restaurantes abertos para delivery. O breve sorriso que ensaio com tal cena, dá lugar a uma expressão sisuda quando me recordo da sua sinistra causa. No caminho para o bairro de Moema, na avenida 23 de maio, vejo um carro do serviço funerário da prefeitura, faço questão de ultrapassá-lo rápido. Me vem à cabeça maus pensamentos. De Moema para Vila da Saúde, recebo uma gorjeta de muito bom grado. Por ser dinheiro em espécie, trato de higienizá-lo no ato, borrifando sobre a nota a solução caseira que carrego comigo. Nos dias que vivemos, o dinheiro se tornou ainda mais sujo e perigoso. Encontro com um sujeito maltrapilho, com olhar triste. Tinha algum e dei-lhe um trocado com o braço bem estendido. Me senti tão vulnerável quanto ele. Mais adiante, me deparo com uma senhorinha que se aventura na rua. Ela me pergunta onde pode comprar um bolo. Eu a aconselhei ficar em casa e pedir pelo delivery. Rodando pelos bairros da Vila Mariana e Liberdade, noto um movimento muito intenso para o que se espera de uma quarentena. Estariam estas pessoas nas ruas por motivos estritamente necessários? Cansado, encerro a quilometragem. Hora de ir pra casa.

Legendas das fotos: 1. A Vila Madalena com uma atmosfera muito incomum. | 2. Trabalhadores se arriscam para manter o ritmo da obra. | 3. Shopping Center com corredores vazios e lojas fechadas pela crise da epidemia do covid-19. | 4. Avenida Paulista com pouquíssimos carros em plena hora do almoço.

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2° Km - Sextou em silêncio

São Paulo, 27 de março


Sexta-feira! Para muitos brasileiros um dia tradicionalmente alegre e festivo. Nada disso no dia de hoje. Na rua Harmonia, um grupo de pessoas aguarda do lado de fora de um sacolão para fazer compras. Ao que me parece, apenas um número limitado de pessoas entram por vez, de tempo em tempo. A cada dia, as precauções aumentam para tentar conter a epidemia. A primeira chamada do aplicativo apita para o bairro do Itaim. Cheguei! O silêncio do movimentado bairro em dias normais é rompido apenas pelo ruído dos pouquíssimos veículos que passam e pelo canto dos pássaros. Sai o homem e a natureza se manifesta, bem mais à vontade. Uma nova chamada me leva ao Paraíso. Vejo que algumas pessoas ainda ignoram a quarentena e se arriscam exercitando-se nas ruas. A avenida 23 de Maio está mais vazia do que ontem. Quem diria! Assim, em plena sexta-feira?! Que loucura, senti saudade do trânsito! Na Vila Olímpia passo bem em frente à faculdade onde me formei jornalista. Impossível não lembrar dos bons mestres, dos amigos, das aulas, dos momentos de boêmia. Essa sim é uma lembrança lúcida e bem agradável! Retorno ao Itaim e desta vez, em um supermercado, percebo que o movimento de pessoas é intenso. Praça de alimentação liberada. Muitos almoçam ali. Nem todos respeitam uma distância mínima de segurança. O dia foi vagaroso e relativamente tranquilo, quase que sonolento, dando mesmo a impressão de um sonho. Quem dera! Acordamos no presente pesadelo, foi apenas um sonho de não ter que enfrentar toda a tensão que tomou conta da cidade. Encerro a quilometragem de hoje sonhando e desejando por dias melhores.

Legendas das fotos: 1.Área residencial do Itaim em silêncio. | 2. Praça de alimentação de um supermercado liberada para as pessoas na hora do almoço.


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3° Km - É dia de feira

São Paulo, 28 de março

Como qualquer outro membro da classe trabalhadora, um motoboy sobrevive de necessidades fundamentais. Uma alimentação saudável - talvez a necessidade mais básica de todas - é muito importante nos dias atuais para fortalecer nossa imunidade. No caminho para a feira, me espanto mais uma vez com uma Vila Madalena vazia. Há três semanas por aqui o movimento era intenso: bares, restaurantes, turistas fotografando o Beco do Batman, comerciantes aos montes vendendo seus artesanatos nas ruas. A feira mudou. Nota-se um número reduzido de barracas e uma freguesia fiel ausente. É neste clima que toda a habilidade do feirante é colocada à prova. A prefeitura proibiu o oferecimento de alimentos para degustação. E as populares barracas de pastel estão sem suas mesinhas. Apenas duas barracas funcionam. Em dias normais são cinco. A feira ainda oferece uma boa oferta de alimentos a preços que pouco variaram com a crise. Percebo que nem todos têm os devidos cuidados na manipulação dos alimentos e dinheiro. O necessário álcool em gel, em poucas barracas. Faltam informação e fiscalização. Paro em uma barraca, escolho alguns itens e, ao encerrar a compra, a simpática e preocupada feirante me oferece o gel. Também vejo pessoas usando luvas e máscaras. Longe do clima alegre de sempre, não vi inflação e desabastecimento de alimentos. Fico aliviado. É hora de trabalhar. Enquanto aguardo a primeira chamada, um iniciante companheiro de luta se aproxima me pedindo informações de como trabalhar com o aplicativo. Com muito prazer, lhe explico algumas artimanhas. A primeira chamada apita aqui mesmo no bairro. Lá vou eu rodar pela Vila Madalena deserta. Tranquilo. Às 20h30, o silêncio da cidade é rompido pelas panelas dos indignados. "Fora miliciano!!I", grita uma pessoa de um dos apartamentos. A temperatura da noite esta agradável, a do paulistano está bem mais elevada. Encerro a quilometragem neste sábado, mais pensativo e leve. Há esperança!

Legendas das fotos: 1. Beco do Batman às moscas. | 2. A simpática feirante me oferece álcool em gel 3. Fregueses se previnem contra o Covid-19.


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4° Km - Lavando a alma

São Paulo, 29 de março

Os dias passam e aos poucos eu vou me adaptando à nova rotina de trabalho. A preocupação diminui, mas me mantenho firme com as precauções. Numa crise como esta, não é tarefa fácil manter o psicológico equilibrado. Apita a primeira chamada. A taxa está boa. Aos domingos elas são mais altas durante o dia inteiro. Vou para Vila Gomes. Lembrei de uma brincadeira que fazia com uns amigos. Na época, tomávamos o ônibus Vila Gomes. Era a linha de maior itinerário de São Paulo. Sempre dizíamos: "Um dia a gente vai conhecer o ponto final dessa linha!". Estou aqui meus amigos, realizando nosso sonho! Sigo para o shopping Eldorado. Lá encontro mais um companheiro de luta, o Silvério. Me assusto ao saber que ele tem 60 anos de idade. Digo para ele tomar todo cuidado possível e lhe desejo sorte na jornada. Ao entrar no shopping, me espanto mais uma vez com o cenário da praça de alimentação vazia. Em um dos únicos restaurantes em funcionamento, a cozinha não para. A chapa produz uma fumaça volumosa e muito cheirosa. Acelero na Marginal Pinheiros em direção ao Jardim das Acácias. Dois amigos muito queridos moram por aqui. Me pergunto quando poderei visitá-los. No Morumbi, bairro que já é muito tranquilo em dias normais, passo por duas viaturas da ROTA. Fico cismado. Por que circulam por aqui? Alguns metros depois chego no Paraisópolis. Sinto o choque de viver em um país tão desigual. Por aqui, não há clima de quarentena. Tudo funcionando normalmente. Muitas pessoas circulam nas ruas. Temo pela periferia! A chuva vem para lavar a cidade. Talvez seja este momento que vivemos o de uma grande limpeza. Não a das mãos que os especialistas fazem questão de nos lembrar a todo instante. Uma limpeza mais profunda, que nos faz repensar hábitos e ações. Encerro a quarta quilometragem rodando na chuva e imerso em tais divagações filosóficas.

Legendas das fotos: 1. Fui conhecer a Vila Gomes com minha parceira Norminha | 2. Silvério de 60 anos, mais um trabalhador que se arrisca | 3. Praça de alimentação do Shopping Eldorado | 4. A cozinha de um restaurante a todo vapor | 5. No Paraisópolis comércios abertos.

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5° Km - Abre caminho

São Paulo, 30 de março

A semana se inicia com um solzinho típico de outono. Nas ruas, o pouco movimento que já se tornou habitual. O aplicativo não toca. Fico apreensivo. Uma série de perguntas me vêm à mente: será que os rendimentos da semana serão bons? E meus parentes e amigos, estão tomando os devidos cuidados? E os cientistas, será que estão avançando na busca de uma vacina para a cura? Meu Deus!!! Quando é que esta crise acaba? Chamou! Avenida Angélica é o primeiro destino. O paulistano reduz a velocidade com o período de quarentena, o motoboy não. Um imprevisto dificulta a jornada: o fone de ouvido que uso para me guiar nas ruas, para de funcionar. Volto ao modo analógico, decorando ruas e avenidas, como nos velhos tempos. Na raça! Enquanto aguardo uma entrega, no centro da cidade, observo as barracas onde pessoas em situação de rua vivem. O que será desta gente? Como falar de higiene em tais condições? Uma moça me alerta: "fica ligeiro com o celular. Tem uma molecada roubando tudo que vê". Algumas coisas nunca mudam por aqui. No Cambuci, passo bem em frente ao hospital maternidade onde minha querida mãe, Dalva, me trouxe ao mundo. Toda vez que passo aqui fico bastante emocionado. Sigo para o Bosque da Saúde. Após finalizar uma entrega, decido de última hora fazer uma visita surpresa para minha mãe. Matar a saudade! Chego em Diadema e a encontro agoniada. Meu pai largou a quarentena e foi trabalhar. Também me preocupo, mas o compreendo. Ficar em casa é um suplício para ele. Afinal, são anos trabalhando. Encerro a quilometragem de hoje cansado e com medo do futuro. Busco alento nas encantadoras flores cultivadas pela Dona Dalva! Sigamos! A estrada é longa, mas eu sei que jamais me faltará companhia nela. Laroyê!

Legendas das fotos: 1. A quarentena obriga o paulistano reduzir o ritmo 2. Navegação à moda antiga; o fone de ouvido pifou 3. Av. Duque de Caxias vazia no centro 4. Barracas onde moradores se abrigam no Centro 5. As belas flores de Dona Dalva.


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6° Km - A medicina da rã

São Paulo, 31 de março


Há exatos 56 anos o Brasil vivia o início de um dos períodos mais infames e perversos da sua história, a ditadura militar. Como cidadão e trabalhador brasileiro, não poderia deixar de abrir a crônica de hoje homenageando àqueles que lutaram e perderam suas vidas para o reestabelecimento do regime democrático de direito. Dia de folga, mas nada de ficar em casa. Fui tomar o kambô, uma vacina de origem indígena, proveniente de uma secreção extraída de uma espécie nativa de rã. Ela ajuda no fortalecimento da imunidade, trazendo também muita energia e disposição. Chego às 10 da manhã na casa ayahuasqueira onde me será aplicada a medicina. Fica na Vila Clarice, muito próximo ao pico do Jaraguá. Embora seja esta a terceira experiência com o kambô, fico um pouco tenso. O processo é forte e causa alguns desconfortos. Depois de tomar muita água - recomenda-se beber de 2 a 3 litros, e jejuar por 6 horas - digo à Madrinha Bia (mestra e feitora de medicinas da floresta) que estou pronto. Para que a vacina seja aplicada, são abertos pontos na pele, com um pequeno palito de madeira em brasa. Feito isso, a secreção viscosa e amarelada é colocada em cada ponto aberto. O número de pontos varia de acordo com a necessidade e a resistência da pessoa. Conversando com a Madrinha Bia, chegamos à conclusão de que 4 seriam o suficiente. Em poucos segundos começo a sentir os efeitos colaterais: coração acelerado, corpo formigando, tremor. A vacina também provoca uma secura na garganta. Por isso a importância de tomar bastante água. Começo a sentir náuseas e uma forte dor abdominal. Após fazer uma limpeza através do vômito, o pico do efeito da vacina diminui. O segredo é trabalhar bem a respiração. Ufa! Correu tudo bem! Passado o processo, ainda sobra tempo para conversar com o pessoal da casa. Falamos sobre a crise atual; lembramos dos tantos momentos bons vividos naquele lugar e do desejo de que a casa retome as atividades normais após este momento conturbado. Encerro esta quilometragem voltando para casa com uma forte sensação de renovação. Eis o poder das medicinas sagradas da floresta. Viva os povos nativos de nossa terra!

Legendas das fotos: 1. Vila Clarice, um bairro tranquilo e muito arborizado. | 2. Aplicação do kambo, a medicina da rã. | 3. Altar do Centro Ayahuasqueiro Jibóia Sagrada. | 4. Pico do Jaraguá, região que abriga o resistente povo Guarani.

_ 7° Km - O caminho da verdade

São Paulo, 1 de abril

É curioso o nosso processo de formação, dos humanos, nas sociedades modernas. Nascemos e, conforme crescemos, nosso universo vai se modelando não apenas pela nossa capacidade de observar e aprender, mas também por uma série de padrões que nos são impostos. Na infância, somos abastecidos com lendas e estórias encantadas; na adolescência, o mundo do consumo se apresenta de forma maravilhosa; na fase adulta, não são todos que iniciam o processo de desconstrução, muitos, por exemplo, acreditam em 'mitos' e até mesmo em 'mamadeira de piroca'. Contudo, felizes são os que regam a vida com sinceridade, a verdade. Apita a primeira chamada, o destino é a Barra Funda. No caminho um movimento incomum para os últimos dias no trânsito. Vejo mais carros nas ruas e avenidas. Enquanto aguardo outra chamada, observo uma imponente árvore bem na minha frente. No mínimo, imagino, deve ser centenária. Chego a um supermercado para a retirada de uma compra. Um motoca já me avisa: "Aqui tá demorando". Tem sido um problema recorrente para nós neste período da quarentena. Após meia hora, o pedido é liberado. Vou para Vila Marina, um bairro mais afastado da zona norte. Trabalhar nas regiões centrais é melhor. O aplicativo toca mais. Outra entrega do lado de cá, dessa vez vou para a Vila Pereira Cerca, um bairro de ar muito tranquilo. Em um restaurante no Piqueri, o proprietário diz que os pedidos por delivery aumentaram bastante, mas lamenta não receber mais seus clientes no local. Sigo para a Lapa. A cidade, menos movimentada, permite um olhar mais pleno para os seus encantos. E como é bonita a zona oeste de São Paulo. Encerro o sétimo quilômetro, desejando que esta crise nos torne melhores. Que possamos abolir as mentiras concebidas pelo homem, encontrando dentro de cada um de nós as verdades absolutas da natureza!

Legendas das fotos: 1. A centenária que resiste aos tempos modernos. | 2. A crise aumentou o tempo de espera em supermercados e restaurantes. | 3. A agradável Vila Pereira Cerca. | 4. Restaurante no Piqueri funciona apenas para delivery. | 5. A zona oeste com ares de interior.

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8° Km - O inimigo invisível

São Paulo, 2 de abril

Certa ocasião, quando ainda estava na faculdade, assisti a uma palestra sobre cobertura jornalística em conflitos hostis. Não me recordo do nome do palestrante - perdoem-me a memória falha - mas era um evento promovido pelo jornal Folha de São Paulo. Eu ouvia assustado o relato do experiente jornalista e ficava imaginando como me comportaria em meio a uma guerra, na missão de reportá-la. Confesso que fui muito mais movido pela curiosidade do que pelo desejo de seguir esta categoria jornalística. A vida é mesmo cheia de surpresas, né?! Cá estou, no meio de uma guerra - não exatamente do mesmo tipo, mas tão assustadora quanto -, na dupla missão de ganhar o pão e de escrever parte da história que estamos vivendo. Enquanto aguardo a primeira chamada em um posto de gasolina, noto que os funcionários mudam a placa do preço dos combustíveis. Abaixou. Seria efeito do movimento que diminuiu? Uma mulher, provavelmente em situação de rua, senta bem em frente à loja de conveniência. Um funcionário pede com muita educação para ela sentar em outro lugar. Bastante contrariada, ela se levanta e vai se acomodar no canto que lhe sugeriram. Apenas mais uma das milhares de vítimas vulneráveis desta guerra. O primeiro destino é Perdizes. Tenho encontrado os bairros mais abastados sempre vazios. A crise evidencia ainda mais as distâncias sociais. De lá sigo para fazer uma entrega na Rebouças. Noto a estação de metrô da região com pouquíssimo movimento. Ao passar em frente do Hospital das Clínicas, penso em como está o ambiente por lá. Uns lutando pela própria vida, outros para salvar vidas. Volto à Perdizes, enquanto aguardo um pedido, me distraio com duas charmosas casinhas gêmeas. Em uma rua cheia de edifícios elas se destacam resistindo aos novos tempos. Acelero em direção à Casa Verde, do outro lado da Marginal Tietê. Em um gesto de gentileza, o porteiro de um condomínio me oferece água. As crises tornam as pessoas mais humanas. Seguindo para a Vila Aurora, percebo uma movimentação de muitas viaturas pelo caminho. Pessoas sendo abordadas, policiais em quase todas as esquinas. Seria isso um ensaio para um toque de recolher? Encerro a quilometragem de hoje neste clima de guerra e com muitas dúvidas sobre como serão as próximas batalhas. Saberemos apenas vivendo um dia de cada vez.

Legendas das fotos: 1. Rua vazia em Perdizes; moradores respeitam a quarentena. | 2. Estação Oscar Freire do metrô pouco movimentada. | 3. As charmosas casinhas gêmeas de Perdizes. | 4. A Serra da Cantareira ao fundo do bairro Casa Verde. | 5. Vila Aurora no extremo norte da cidade.

_ 9° Km - A grande transformação

São Paulo, 3 de abril

Manhã nublada em São Paulo, de temperatura amena. Choveu mais cedo. Tal clima, trás ainda mais melancolia para a cidade que tem vivido dias dramáticos. Tenho ouvido relatos de amigos sobre as dificuldades para lidar com o momento. Muitos estão angustiados, não conseguem dormir e quando o fazem têm pesadelos terríveis. Como se já não bastasse os dias que temos encarado. A maioria está em casa, mas alguns, assim como eu, não têm outra opção. Tenho que viver. Que paradoxo. A crise desnuda por completo o sistema injusto e doentio que vivemos. A primeira chamada me leva para Pinheiros. De cara, já surge um problema: a cliente não atende o interfone e nem ao meu contato via telefone. Aguardemos a boa vontade da madame. Passados alguns minutos, o porteiro recebe a encomenda, contrariando as normas do condomínio. Tem quem atrase, mas tem quem adiante também. O dia está fraco. O aplicativo toca pouco. Muito diferente de tantas outras sextas de trabalho. Em um restaurante nos jardins, o pedido deve ser retirado nos fundos. Atravesso um longo corredor para chegar à cozinha. Encontro um pessoal bem animado. Ouvem funk enquanto preparam as refeições. Na Vila Nova Conceição, passo em frente a um restaurante onde muitos entregadores aguardam pedidos. Vou agora ao Paraíso. Uma moça recebe apressadamente a encomenda. Ela usa máscara e parece bem assustada. Desligo o aplicativo e vou socorrer dois amigos feitores de rapé - uma outra medicina indígena. Eles precisam que eu realize uma entrega. Acelero na Raposo Tavares em direção ao Jardim Ester. A felicidade estampada no sorriso do irmão que recebe a medicina é impagável. Encerro a quilometragem de hoje costurando as sinuosas curvas da Raposo com minha Norminha. O dia que começou nublado tem agora um sol bem prazeroso. É a natureza mostrando que tudo está em constante mudança o tempo todo. Até amanhã!

Legendas das fotos: 1. Aguardando a boa vontade da madame 2. Corredor que leva aos fundos de restaurante nos Jardins 3. Entregadores aguardam pedido na Vila Nova Conceição 4. Tarde ensolarada na Rodovia Raposo Tavares

_ 10° Km - Festa adiada

São Paulo, 4 de abril

Imaginem vocês aquela feijoada no capricho com uma breja bem gelada de acompanhamento. Um samba partido alto ao fundo. Nas ruas, muitas pessoas caminhando, passeando com os filhos, com os cachorros. Praças e parques cheios. Piscinas também. Clima bom, como o solzão que faz hoje na cidade. À noite, as conduções de metrôs e ônibus cheias de gente de todos os estilos. Elegantes, perfumados; vão alegres para curtir mais uma noitada paulistana. Deu saudade né?! Esqueçam amigos, essa São Paulo não existe mais. E não existirá sabe-se lá até quando. Começo o dia fazendo entregas aqui perto de casa. Uma em Pinheiros, outra na Vila Madalena. Toca mais uma vez. Sigo para a Santa Cecília. Um edifício de faixada incomum me chama atenção. As maravilhas arquitetônicas de São Paulo sempre me fascinam. A moça para quem vou fazer a entrega, me manda mensagem via chat pedindo para deixar o pedido na portaria. Procedimento que se tornou comum com a crise do Covid-19. Em algum lugar entre o Pacaembu e o Higienópolis, paro e observo dois casarões no estilo barões do café. Por alguns instantes volto à São Paulo antiga, imaginando o estilo de vida que se levava cem anos atrás. Estou agora na Bela Vista, muito próximo à Paulista. Observo uma antena de transmissão e penso: "o bichinho invisível parou até a locomotiva econômica do país". Inacreditável! Cruzo a Alameda Santos sem um único veículo se quer. Lembrei da conversa que tive com seu Orlando, pai de uma querida amiga. Dizia ele que jogava bola na infância dele aqui. Eu pensava, na época, ser impossível. Hoje a pelada rolaria numa boa. Após entregar uma encomenda na portaria de um edifício, aconselho o porteiro, um senhor já idoso, a fazer a higiene das mãos após o recebimento de cada encomenda. No front é assim, todos devemos cuidar uns dos outros. Encerro a quilometragem de hoje com o coração sagitariano cheio de saudade da minha Sampa agitada e festiva. Eu sei que temos e iremos superar tudo isso. E quando isso acontecer. Ah minha gente, vai ter comemoração sim!

Legendas das fotos: 1. Norminha se junta à fileira de motos. | 2. Edifício charmoso na Santa Cecília. | 3. Casarões no estilo dos barões do café. | 4. Antena de transmissão na Bela Vista. | 5. Al. Santos Vazia; alô seu Orlando, vamos bater uma bolinha?

_ 11° Km - A rua é nossa!

São Paulo, 5 de abril

É curioso. Momentos singulares como o que estamos vivendo, derrubam por completo algumas convenções estabelecidas pela sociedade. Os dias da semana, por exemplo: nós os identificamos pelo movimento comum de cada um deles. A segunda-feira é brava. A maioria volta ao trabalho depois de um fim de semana de descanso; a sexta-feira, frenética porque todo mundo deixa tudo para última hora e quer resolver logo para ir tomar a sua cerveja; e assim por diante. Daí, vem um bichinho invisível e...vivemos agora um domingo constante. Não quero dizer que os domingos são os mesmos de antes. Há muita coisa diferente, mas o termômetro do motoboy é o trânsito. É nesse sentido que digo que os dias se tornaram iguais. Apita o aplicativo. Vamos ao trabalho. Vila Ida é o destino. Lá encontro seu Sgnei, vigilante de rua, natural da Bahia. Não perguntei sua idade, mas sua aparência aponta uma média de 60 anos. Sujeito tranquilo, de poucas palavras e voz rouca. De boné e óculos escuros, seu estilo me lembrou o mestre Cartola. No Alto da Lapa, retiro um pedido em uma charmosa cantina portuguesa. Enquanto o prato é preparado, converso com os simpáticos proprietários. Me despeço e prometo voltar para uma experiência gastronômica, assim que, mais pra frente, meu faturamento permitir. Em um restaurante na Vila Romana, lavo bem as mãos e reforço a higiene com álcool em gel. A moça que me atende lança a famosa premissa: "Melhor prevenir do que remediar, né?!". Respondo a ela: "Mesmo porque ainda nem existe remédio". "Pois é moço, por enquanto só existe mesmo é esperança", finaliza ela de forma poética. Encerro a quilometragem de hoje acelerando em uma Marginal Pinheiros dos sonhos, de caminhos livres. O vento no rosto me deixa esquecer, ao menos por alguns instantes, a difícil realidade que temos vivido.

Legendas das fotos: 1. Menos carros nas ruas e a qualidade do ar melhorou na cidade. | 2. Seu Signei, baiano trabalhador no estilo do mestre Cartola. | 3. A charmosa cantina Quinta de Santa Maria. | 4. "É uma casa portuguesa com certeza...". | 5. A Marginal Pinheiros dos sonhos de todo motoboy @ Restaurante Quinta de Santa Maria.

_ 12° Km - Respira fundo Mãe!

São Paulo, 6 de abril

Os gregos antigos, já há milhares de anos, a chamavam de Gaia, a potência geradora. Povos andinos da América do Sul, a denominavam Pachamama, a deusa da fertilidade. No hermetismo, filosofia milenar egípcia, já se convencionava: a parte espiritual como o Pai, de modo que a matéria, a Natureza Mãe. Que fique muito claro: A Terra, a casa comum de todos nós, é Feminina. E ela é um organismo vivo e inteligente, muito capaz de produzir respostas ao modo como a tratamos. O que se planta é o que se colhe. Já pararam para observar as características do vírus que nos assola? Atinge diretamente nosso sistema respiratório. E como é que temos tratado os pulmões de nossa Mãe Terra nos últimos cem anos? Apenas divagações que me distraem nessa bela manhã de segunda-feira. Toca a primeira do dia. Sigo para o Jardim Paulistano. Lá encontro um grupo de entregadores parados. Me pergunto se o movimento está fraco. Alguns metros à frente, paro em uma banca de jornais e revistas. Oportunidade para uma conversa muito legal com Elton, de 42 anos. Falamos sobre a crise e as desigualdades de riquezas neste delicado momento. Ainda na mesma região, me deparo com uma fila de pessoas na frente de um supermercado. Certamente abriram vagas de emprego com o aumento da demanda nos últimos dias. E o conflito que não deve enfrentar essa gente? Entre a cruz e a espada, se veem diante do paradoxo de ganhar o sustento, colocando em risco a própria saúde e a de seus familiares. Aguardo mais um destino abrigado pela sombra de uma volumosa árvore. Acelero agora em direção à Vila Mariana. Dois endereços para entregar por aqui. Na hora do almoço o trabalho fica corrido. Respira fundo motoca! Olho para o horizonte e vejo um céu azulado como nunca visto antes em São Paulo. Pelo menos para as últimas gerações. Respira fundo paulistano. Encerro a quilometragem de um dia relativamente tranquilo, tomando fôlego para seguir adiante e contar os próximos capítulos desta história.

Legendas das fotos: 1. Entregadores esperam por trabalho na calçada. | 2. Elton, de 42 anos, trabalhador com consciência de classe. | 3. Fila para vaga de emprego em supermercado. | 4. Um abrigo para o sol forte de hoje. | 5. No horizonte não há mais a faixa cinza de poluição em São Paulo.

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Anderson Marinho Souza é motoboy de São Paulo e Bacharel em Comunicação Social e Jornalismo pela Universidade Anhembi Morumbi.

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