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 CONTEÚDO 

SUPLEMENTO ANTICAPITALISTA DE UM PROFESSOR EM QUARENTENA (3ª sem.) - Fábio Moura

Atualizado: 9 de jul. de 2020


Legenda: Mutirão 24 e 25/02/2018 do Telhado Verde, na casa da Elis e do Adilson Custódio, no Assentamento Denis Gonçalves.


O professor de filosofia Fábio José Porfírio Moura publica todo santo dia, desde quando iniciou sua quarentena em 18 de março, em seu perfil do facebook, reflexões ácidas sobre os acontecimentos da burocracia estatal capitalista brasileira e, ao mesmo tempo, mensagens críticas e esperançosas à população desassistida. Não se encontrará aqui um diário comum do cotidiano de um sujeito que até pouco ministrava aulas filosóficas a adolescentes e trabalhava na terra junto de sua família mas agora está enclausurado. Pelo contrário, é esclarecedor que, ao ler suas longas linhas, o momento lhe faz indagar profundamente tanto sua espiritualidade cristã como o comum senso negativo ao Estado, ao Kapital e à nova ordem estabelecida pela crise pandêmica. Como estamos atrasados, nos próximos dias publicaremos as três primeiras semanas de suas divagações, e posteriormente elas serão publicadas semanalmente.


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15° dia de quarentena

Rio Pomba, 01 de abril

Da quebrada de onde venho chegam notícias assustadoras. No cemitério de Perus, Zona Norte de São Paulo, onde meu pai e avô estão sepultados, cemitério conhecido internacionalmente desde o final da década de 1980, quando forma abertas as covas com as ossadas de centenas de desaparecidos políticos, executados durante o regime militar, estão com suas malditas valas novamente abertas para receber os mortos do vírus.


Os números oficiais mentem. Não há estrutura para testar todos os casos suspeitos. Pessoas sem nomes sendo enterradas sem caixão, sem velório, sem autópsia, sem se quer atestado de óbito. São Paulo que, em dias de suposta normalidade já é um caos, em tempos de pandemia anuncia ao mundo a possível maior catástrofe do ano. Minha alma geme ao imaginar o que virá nos próximos dias.


Nossas metrópoles estão condenadas à falta de atendimento dos doentes e consequente mortandade em massa. A desumana desigualdade social, antes naturalizada por nossas elites econômicas, têm mostrado com esse vírus que é um problema que afeta a todos. Não há câmera de vigilância, carro blindado ou condomínio de segurança máxima que pode conter essa ameaça.


Quem está na linha de frente desta desgraça, infelizmente, são os mais pobres. Enquanto a ajuda governamental não chega, eles se avolumam nas ruas em busca do sustento que não pode esperar. A fome é de ontem. Colocam em risco suas vidas sob o argumento enganoso de não fazerem parte do grupo de risco, espalhando a doença em espaços que não oferecem opção de distanciamento.


O falso argumento que o vírus só mata velhos e pessoas com doenças preexistentes vêm sendo desmentido diariamente. Mesmo que fosse verdadeiro, com os jovens circulando pelas ruas, mais pessoas dos grupos de risco estariam expostas. E, se fosse verdadeiro, ainda, quão cruel imaginar que a vida de alguém seja menos importante à ponto de deixá-la morrer para que a economia não pare.


Não me parece loucura de um presidente descartar essas vidas com seus legados e sua história. Ao contrário, me parece bem lógico e oportuno ao seu projeto fascista de governo. Quanto mais velhos morrerem, menor será o custo futuro com a previdência. Se jovens produtivos tiverem de morrer para isso, paciência, afinal, todos morreremos um dia.


Em cidades pequenas como a que vivo, a mentalidade interiorana nos faz crer que esse problema não é nosso, que o perigo ficará longe daqui. Nosso problema pode ser ainda mais grave se a prevenção e isolamento não forem respeitados. A maioria das pequenas cidades não têm se quer hospital.


Eu, que venho de São Paulo onde, em dias normais, cheguei a dormir com filho internado em corredor de hospital, aqui em Rio Pomba elogio o sistema público de saúde. No pequeno hospital São Vicente de Paulo não há filas. O atendimento é básico, porém eficiente e até cirurgia, quando quebrei o pulso em um acidente, foi rápido perto do que seria na capital. Minha companheira, que ficou internada por dois dias, ficou até triste quando recebeu alta. E não estou exagerando.


Casos graves são encaminhados às pressas para hospitais melhor equipados da região e até tratamentos complexos são mais rápidos de serem agendados, com transporte gratuito e quase diário bancado pela secretaria municipal de saúde. Mas nada disso é suficiente no caso extremo que estamos vivendo. Nosso hospital não têm se quer um leito de U.T.I. e o da cidade mais próxima já está sobrecarregado. Desde o fim de semana temos seis casos em investigação na cidade. O exame só ficará pronto em uma ou duas semanas.


Enquanto isso, no sábado, a praça central estava amarrotada de gente. O vírus pode estar circulando entre nós sem que ninguém tenha manifestado a doença. Quando ela se confirmar, será tarde demais. Com a população predominante de idosos nas pequenas cidades do interior, a economia destas cidades, dependentes do dinheiro de suas aposentadorias destes idosos, também estará comprometida e muitos municípios deixarão de existir quando passar o perigo. Só a prevenção pode nos salvar, ou amenizar os danos que a pandemia causará.


Existe espaço suficiente nesses locais para o isolamento em massa e, se o poder público não garante isso para todos, cabe a população se organizar solidariamente para que todos fiquem em casa. Isso também é mais fácil no interior onde todo mundo conhece todo mundo. Todos nós conhecemos nossos pobres, os que dependem do trabalho diário para comer. Todos precisamos que eles também fiquem em casa para nossa própria sobrevivência e muitos de nós têm condições de ajuda-los. É hora de abrir mão de nossos estoques e compartilhar um pouco do que temos com aqueles que, de outra forma, não podem deixar o trabalho.


Não é caridade, é solidariedade que chama. A caridade é vertical, vem dos de cima para os de baixo, humilha quem recebe e é usada como ostentação por quem pratica. A solidariedade é horizontal, se dá entre iguais, pessoas que remam no mesmo barco, que vivem uma vida comum e onde o que importa é o bem coletivo. Com esse vírus, fica claro que estamos todos no mesmo barco. Essa pandemia está aí para nos ensinar a sermos solidários, pois minha sobrevivência depende também do isolamento dos meus vizinhos. Estamos mais conectados uns aos outros do que podemos imaginar.


Que possamos agir rápido, organizar nossos grupos, nossa comunidade, nossa vizinhança para que ninguém fique desamparado, para que todos fiquem em casa até esse surto passar. Que possamos recuperar o amor pelo próximo e entender de uma vez por todas que todos merecem viver com dignidade, que todas as vidas importam, para que nunca mais a desigualdade social seja vista como natural. Esse sim é o maior perigo que enfrentamos e o vírus nos joga esse fato na cara.

Fiquem em paz. Fiquem em casa. Que Deus nos proteja.


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16° dia de quarentena Rio Pomba, 02 de abril

As profecias do fim do mundo estão disponíveis e atualizadas em suas mais variadas versões: religiosas, científicas, utópicas, distópicas, ecológicas, econômicas etc. Para quem gosta de teoria da conspiração, basta escolher à preferida e divertir-se. Eu prefiro as revelações dos profetas bíblicos e me divirto, com alguns crentes contemporâneos e o seu atual desespero, de se verem vivendo o fim dos tempos.


Das duas uma: ou o crente atual (não apenas o evangélico, digo crente no sentido amplo, de todo aquele que crê), ou ele não sabe interpretar o texto bíblico ou entende tão bem o que diz ter lido, que se mostra desesperado com seus próprios pecados. Eu queria acreditar na primeira alternativa, mas estou quase convencido da segunda. O mais provável, porém, é que as duas alternativas se complementem nessas mentes insanas.


Citam o livro de Isaías e o Apocalipse de João em tons ameaçadores, clamam pelo arrependimento dos infiéis e completam suas preces implorando à Divindade que nos poupe da fogueira maldita. Imploram fervorosamente à Deus que poupe suas vidas e de seus entes queridos. Alguns demonstram completo descontrole e injustificado medo da morte. Não é o crente que deveria estar calmo e resiliente diante dos fatos atuais, anunciados desde sempre? Não deveria ele aguardar com entusiasmo a prometida purificação da Terra e a volta do Rei dos Reis? Não deveria confiar na promessa de Jesus de que todo aquele que Nele crê terá Vida Eterna?


Não enxergam a promessa contida no livro sagrado, apenas o castigo imposto aos infiéis. Hipócritas que são. E pecadores. Não sou eu quem digo, está na bíblia. Se desesperam com o anúncio de suas perdas materiais e clamam pela volta da normalidade. Mesmo aqueles, com seu rendimento garantido durante esse período, que poderiam estar em retiros espirituais em seus lares, conhecendo à Deus como Ele realmente É, só desejam nessa hora, que tudo volte ao normal.


O que é o normal, mesmo? Alguém me explica? O mundo que vivemos é normal? Para quem? Não seria justamente desse estado de miséria moral e material que Deus deveria nos livrar? Não é isso que tantos pedem em oração? Deve ser pavoroso acreditar nessas profecias, vê-las acontecerem em tempo real, saber que não pratica aquilo que prega e que o julgamento de Deus poderá condena-lo.


Mas ainda há tempo para o arrependimento. Cristo não é apenas justo, é absolutamente misericordioso e tudo que nos pede é apenas amor ao próximo. Talvez, seja esse o problema e a razão de tanto desespero. Estou convencido de que o fim do mundo não será agora e nem se dará imediatamente, com um asteroide gigante ou uma superbomba nuclear destruindo tudo, mas que será lento e doloroso para muita gente. Isso não é de todo mal, pois, se o amor pouco nos ensina, aprendemos muito na dor. Temos tempo, na fase terminal de uma doença, para nos arrepender, perdoar e demonstrar maior caridade com as pessoas. O mesmo não ocorre em um acidente, por exemplo.


Essa consciência da fragilidade de nossas vidas, despertada pela pandemia, que produz em nós esse medo da morte e, o isolamento social que nos concede tempo para reflexão, são como um chamado para a mudança. Nem todos, porém, estarão dispostos à mudar e sofrerão ainda mais por isso. É hora de superar bobagens, falsas crenças, preconceitos, arrogâncias, rancores e ódios que dominam tantos corações. É hora de pedir perdão à Deus e também ao homossexual, ao dependente químico, ao vizinho desocupado, à menina namoradeira, ao aluno preguiçoso, entre todos aqueles que temos ofendido injustamente.


É hora de buscarmos à Deus e encontrá-Lo onde Ele disse que estaria, no irmão desamparado, à quem, mais do que nunca, devemos nosso dizimo. Assim, talvez, quem sabe, diminua, ao menos, o desespero que tantos estão sentindo.


Que possamos agradecer a oportunidade sagrada que esse período de recolhimento nos dá, de nos tornarmos melhores, de nos corrigirmos por dentro, de buscar no autoconhecimento a verdade que nos libertará, que nos trará a paz necessária para enfrentarmos os difíceis dias que se seguirão e para nos curar de toda enfermidade da alma.

Um dia de cada vez e tudo isso passará.


Fiquem em paz. Fiquem em casa. Fiquem com Deus.

Legenda: o filósofo que mudou a minha vida.


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17° dia de quarentena Rio Pomba, 03 de abril


As imagens que circulam da capital do Equador, onde acontece um colapso do sistema funerário, são desesperadoras. Pessoas mortas dentro de suas casas esperando mais de uma semana para serem sepultadas. Pessoas morrendo nas ruas, cadáveres abandonados por parentes em qualquer canto, corpos queimados em praça pública pelo povo desamparado e urubus em bandos voando em torno de carniças humanas. Coisas que a Globo não mostra e que nem eu irei compartilhar, de tão fortes que são. Cenas que não queremos ver, nem acreditar, muito menos saber.


O Equador é o segundo país com mais casos de Covid-19 da América Latina, só perde para o Brasil. O noticiário televiso mostra o colapso da saúde em Nova Iorque, uma das cidades mais populosas e ricas do mundo, que já não consegue atender todos os enfermos, mesmo com todo dinheiro que possuem.


São Paulo é tão grande quanto, mas infinitamente mais miserável. Estamos muito mais próximos da realidade de Guayaquil do que de Nova Iorque, mas com proporções infinitamente superiores. O nosso real problema, porém, é muito mais antigo e nada tem a ver com o sistema público de saúde. O SUS é maior sistema de saúde pública do mundo e, mesmo com todas as deficiências que apresenta, tem salvado vidas com tratamentos complexos que, em outras partes do mundo, custaria milhares de dólares ao usuário. Aqui o tratamento é gratuito. Mas insuficiente em caso de pandemia.


Nossa maior tragédia, porém, está no sistema público de ensino. Historicamente a educação pública é tratada com descaso, como despesa desnecessária. Nossas escolas são sucateadas, falta estrutura, falta professores, as salas são superlotadas, funcionários mal remunerados e, nos últimos anos, nós professores temos sido responsabilizados por todos os problemas que acontecem no país.


Já não somos mais respeitados como antigamente, lamentam meus colegas. Somos ofendidos na rua e dentro das escolas, nos tornamos doutrinadores, vagabundos, bandidos. Somos ameaçados e até agredidos no exercício de nossas funções e o que dissemos não é levado à sério, nem pelos nossos alunos.


Aceitamos calados todas as formas de humilhação, como se fossem as provações necessárias para a elevação espiritual em um sacerdócio sagrado. Agora nos acusam de sermos privilegiados por estarmos cumprindo quarentena em nossas casas, enquanto outros profissionais precisam trabalhar. Não é privilégio, é uma necessidade que não está sendo respeitada e nem amparada em outras categorias. Por nós mesmos, o governo nos obrigaria a trabalhar. Estamos em casa para proteger os alunos, seus filhos e sua família. Ainda assim, estamos sob ameaça dos governos e patrões. Muitas escolas particulares estão adaptando seus currículos para transmissão de aulas on-line, sem preparo prévio algum dos professores. Não querem perder alunos e nem mensalidades.


No setor público, pelo menos em Minas Gerais onde leciono, onde nosso salário baixo e sem reajuste vem sendo atrasado e parcelado há anos, onde muito dos meus colegas se quer recebeu o 13° salário do ano passado e que, com o atual governo, temos sido duramente assediados com ameaças e punições, agora, corremos o risco de ficar sem salário e perdermos o emprego. O governador deixou claro que o Estado está quebrado, que a prioridade é o atendimento à saúde e que, se necessário for, irá tirar dinheiro da educação para cobrir essa despesa extraordinária. Não bastasse tudo que temos passado, sofremos quietos mais este golpe.


O povo brasileiro é um povo de muita fé e baixíssimo conhecimento. Acredita-se em tudo, da providência divina a promessas feitas por políticos, sem deixar de citar a crença que temos na mídia televisiva. Acreditamos em publicidade, youtubers e desacreditamos de professores e cientistas. Somos um povo sem educação, por isso somos constantemente manipulados.


A conta que pagaremos por tanto descaso ao conhecimento virá agora. A ignorância será a causa de nossa maior tragédia. A ignorância de nosso povo se manifesta no escárnio, no pouco caso, na negação dos fatos. Deveríamos guardar a quarentena, mas anos de ignorância acumulada nos impede de entendermos esses fatos graves. Morreremos de ignorância, não de Covid-19.


Tem gente trabalhando com medo nos mercados, que permanecem lotados de pessoas em busca de carne e cerveja para o churrasco com os amigos. Se o bar está fechado, a aglomeração continua dentro de algumas casas. Carreatas e protestos são feitos pela reabertura do comércio numa clara manifestação de estupidez, incentivada pela atitude desmedida de um presidente que é o símbolo maior do fracasso escolar em nosso país. E nós, professoras e professores, vítimas da mesma ignorância, mas fundamentais nessa hora, em nosso exemplo de reclusão social, esperamos que tudo passe depressa para voltarmos à velha rotina de sempre.


Estou com saudade de meus alunos e companheiros de trabalho, amo o que faço, mas não tenho saudade da escola. Não da escola que conhecemos. Passada essa crise, nada mais será como antes e eu temo que na educação tudo seja ainda pior. Não é "quando" voltaremos às aulas que deveríamos nos preocupar, mas sim no "como" voltaremos. Como iremos receber os jovens que perderam seus país, mães, avôs, avós, amigos e amigas, colegas de classe? Como voltaremos sem a presença de um ou outro professor, funcionário ou aluno morto pela pandemia? Que conteúdo iremos abordar e com que cabeça iremos trabalhar?


Deveríamos estar sendo preparados para isso, mas nossos governantes preferem mandar conteúdos digitais padronizados aos alunos, como se todos tivessem internet em suas casas, diminuir o número de aulas dadas ao final da quarentena e sucatear ainda mais aquilo que mais falta ao povo brasileiro.


Estamos à beira do precipício com nossos governantes dando um pontapé em nossas bundas para despencarmos. Um mundo todo terá de ser reconstruído por nossos alunos e alunas, o futuro da nação, que precisarão de mestres para auxilia-los e nós, professoras e professores, teremos também de nos reinventar, e, resistir ainda mais, para ajuda-los nessa difícil missão. É tempo de abrir a caixa de ferramentas, afiar o machado, reciclar nosso conhecimento, reinventar nossa didática sem esperar ajuda alguma do Estado. Mais uma vez, cairá nas nossas costas superar a incompetência alheia.


Fiquem em casa, é o melhor a se fazer. Busquem a paz, estudem e meditem. E que o pior não nos aconteça.

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18º dia de quarentena

Rio Pomba, 04 de abril de 2020


Pode parecer engraçado, mas estou me sentindo sem tempo. Estar dentro de casa tem me dado tanto trabalho que, tudo aquilo que pensei poder fazer nesse isolamento, tem ficado para depois, quando não haverá mais tempo. Pensei em voltar a desenhar, mas ainda não peguei no lápis. Há muito tempo que não assisto televisão, agora tenho me esforçado para assistir diariamente pelo menos um noticiário. Prefiro o noturno porque posso ser surpreendido por algum pronunciamento ao vivo de alguma autoridade. Também não tenho visto tantos filmes como eu gostaria, nem ouvido música.


Não sou de fato um apreciador de músicas gravadas, adoro música ao vivo, quando vamos a um lugar com o objetivo especifico de ouvir música ou dançar, assim como fazemos ao ver um filme no cinema ou quando assistimos uma peça de teatro. Mesmo com tantos espetáculos sendo disponibilizados gratuitamente todos os dias nas redes sociais, tenho só visto os trabalhos dos meus amigos artistas. É uma forma de matar a saudade. Só ouço música gravada quando estou dirigindo o fusca ou quando estou fazendo alguma arte plástica, quando estou sozinho no carro ou ocupado apenas com a imaginação.


Tenho escrito todos os dias essas reflexões e isso tem sido bastante cansativo, assim como tem me deixado preocupado com o desenrolar dos acontecimentos futuros e o reflexo que isso pode ter na minha escrita. Por isso, também, tenho saído de quase todos os grupos que participo no WhatsApp, exceto o do meu trabalho e o grupo da família, que às vezes me enlouquece, irrita, mas também me diverte. Nunca precisei tanto de notícias deles como nesse tempo sombrio que estamos vivendo. Nunca pensei que os amasse tanto. Tenho saído de muitos grupos para evitar sensacionalismos e notícias falsas que perturbem ainda mais os meus dias. Depois que tudo passar, talvez eu até volte.


Eu continuo lendo, mas não da forma compulsiva como o normal. Nas redes sociais que visito, tenho visto muita gente lendo, citando trechos e comentando suas leituras. Os mesmos leitores de sempre. Entre os meus amigos filósofos, pelo menos, o livro “A Peste”, de Camus, é o Best-seller da quarentena. Eu tinha esse livro, ganhei de um grande amigo da Unifesp e não sei que fim levou. Até procurei para rever a leitura, mas as citações dos colegas já estão sendo suficientes. Talvez seja pela compulsão por leitura que acabo por escutar tão pouca música. Me atrapalha a concentração. Assim como tanta gente em casa tem me feito ler menos que o normal. Muito barulho.


Estou lendo agora o livro “NOTÍCIAS DE LUGAR NENHUM Ou uma época de tranquilidade”, um romance utópico escrito em 1890 por William Morris, traduzido por Paulo Cezar Castanheira e publicado no Brasil pela Expressão Popular. Cito um trecho que está na contracapa: “Quando o conflito realmente se iniciou, viu-se como havia pouca coisa valiosa no velho mundo da escravidão e da desigualdade. [...] mas no tempo de luta que se seguiu tudo era esperança: ‘os rebeldes’ sentiam-se ao menos suficientemente fortes para reconstruir o mundo a partir do nada – e foi o que fizeram!”. É um livro deliciosos de se ler, inspirador para o momento que virá depois desta pandemia.


Ler é um santo remédio contra o tédio que alguns possam estar sentindo. Estou lendo livros que há muito tempo estão na estante esperando um tempo oportuno para serem lidos. O momento é esse. Nenhuma leitura obrigatória. Não é a obrigação de ler que tenho no dia a dia para preparar minhas aulas, mas leitura que envolve apenas o prazer de ler. Quem não tem o hábito da leitura esse é o tempo de adquiri-lo, expande nossa visão, explora nossa imaginação e desenvolve nossa inteligência.


A leitura não é uma prática exclusiva de pessoas inteligentes, como alguns pensam. Como diz um grande amigo sergipano, também filósofo, é justamente o contrário: quem lê reconhece a própria ignorância. Ler é uma atitude de humildade intelectual, de busca do conhecimento, algo que todos devemos buscar. Leio porque tenho sede de saber, não porque sei. Peço licença diária para minha família, me recolho num canto e digo que vou ler para não ficar burro. Digo aos meus alunos que ler é exercitar o cérebro para pensar livremente. O cérebro precisa de exercício tanto quanto o corpo e a leitura é a melhor academia para isso.


Nesse momento de confinamento necessário muita gente ainda não encontrou o que fazer em casa. Não é o momento de cair em desespero, ainda mais quem pode ficar no lar. Não é o momento de se preocupar com dinheiro ou trabalho. Estamos isolados para o bem de todos, não podemos adoecer por esse gesto solidário. E, não falo do Covid-19, estamos em casa para evitá-lo, não podemos adoecer é da cabeça, de doenças que os pensamentos negativos podem causar. A leitura, a arte, a jardinagem, os exercícios físicos, são apenas algumas atividades que podem nos auxiliar para não enlouquecermos. Fugir do baixo astral, acalmar o coração e relaxar a mente são fundamentais para continuarmos cada um em sua casa, pelo tempo que for necessário e sem o risco de enlouquecermos.


Acredito firmemente que este isolamento pode ter efeitos muito benéficos para a nossa saúde individual e coletiva. Acredito no presente que estamos ganhando por podermos descansar desta loucura de vida, de nos encontrarmos com nós mesmo, de relembrarmos nossos sonhos de infância, que se perderam nas exigências estúpidas do capitalismo, e faze-los se concretizarem agora. É hora de aproveitar o momento e fazer aquilo que a gente mais gosta, ou gostaria de ter feito. Um novo mundo irá surgir, espero que nos encontremos novamente, que estejamos todos vivos, prontos, com nossos talentos desenvolvidos, todos com saúde e gratidão para finalmente, construirmos um mundo mais justo.


Um sábado de paz, amor e muita esperança a cada um de vocês. Aproveitem o tempo, realizem-se e sejam felizes. Tudo isso passará.


Legenda: Mutirão 24 e 25/02/2018 do Telhado Verde, na casa da Elis e do Adilson Custódio, no Assentamento Denis Gonçalves.

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19º dia de quarentena

Rio Pomba, 05 de abril


Quantas pessoas terão de morrer para aceitarmos o fato incontestável que estamos vivendo uma das maiores ameaças à vida humana de todos os tempos? Quantos amigos e familiares teremos de enterrar para aceitar que devemos nos manter fisicamente isolados dos demais? Será que teremos de sentir na própria pele a dor que milhares de pessoas já estão sentindo para deixarmos de levar essa crise na brincadeira? A situação é muito séria, queridos, e, ainda nem entramos na fase mais crítica da pandemia. Não é para sair de casa, dá para entender? Já tem gente demais trabalhando nas ruas para atender nossas necessidades, estamos colocando a vida deles, que precisam trabalhar, em enorme risco com nosso egoísmo e irresponsabilidade.


As ruas continuam movimentadas, os supermercados cheios, bares abertos clandestinamente, com dezenas de pessoas dividindo mesas, num ambiente fechado e sem nenhum cuidado. Festas sendo feitas em muitas casas, carros passando como som alto daquelas músicas horríveis repletos de pessoas tão horríveis em seu interior. A aglomeração está mantida, mesmo com todos os decretos dizendo o contrário. Muita gente indignada com isso e outras indignadas de continuarem em seu isolamento, com tanta gente saindo às ruas. Duas situações na noite de ontem me chamaram a atenção.


A primeira foi ao vivo e em cores. Tive de brigar com alguns dos meus alunos que vieram na porta de casa chamar o meu filho para o costumeiro rolezinho de sábado. Não o deixei ir, claro, mas, à princípio, deixei que conversassem no portão. Tenho dó desses adolescentes, penso que eles devem estar sofrendo mais que todos por esse isolamento e, muitos, não entendem mesmo a razão de tudo isso. Deixei que ficassem um tempo por ali para, pelo menos, matarem um pouco da saudade. Não demorou nem cinco minutos e começaram com um carteado na calçada da esquina, fazendo o barulho característico dos jovens e, eu tive que acabar com a diversão.


Mandei meu filho entrar e seus amigos de volta para suas casas, o que não deve ter acontecido. Ficaram furiosos comigo, notei pelo olhar em chamas que me dirigiram. Meu filho entrou batendo a porta do quarto e eles partiram dali. Pouco depois, passou na porta de minha casa uma viatura da polícia, com a sirene desligada e em velocidade reduzida. Pareceu que eles tinham sido avisados da pequena aglomeração. Se eu soubesse que algum bondoso vizinho tinha denunciado, eu teria deixado eles ficarem ali, seria mais divertido para mim. Quem sabe se com uma “coça” dos “homi” eles entendessem que é para ficarem em casa.


Um outro acontecimento me deixou um pouco mais perplexo. Esse aconteceu pelas redes sociais e eu não quis responder, mas aqui quero citar como ilustração. Uma pessoa virtualmente conhecida, não muito boa da cabeça, eu sei, postou a foto de uma aglomeração festiva perto de onde ela mora. Na legenda da foto, em letras garrafais, dizia mais ou menos o seguinte: “NÃO SOU FUNCIONÁRIO PÚBLICO, NEM APOSENTADO, NEM PENSIONISTA, NÃO RECEBO AJUDA DE NINGUÉM E NÃO QUERO DINHEIRO DO GOVERNO! EU QUERO TRABLHAR! POR QUE NÃO POSSO ABRIR MEU COMÉRCIO E ESSES NÓIAS PODEM FESTEJAR?”. O que dizer para essa poeira de estrela? Que ela não está certa e nem errada e que seu argumento não faz o menor sentido?


Primeiro que o dinheiro não é do governo, é nosso. O governo não têm dinheiro, ele apenas administra o nosso dinheiro e com o nosso consentimento. Se administra mal, a culpa é nossa que escolhemos ladrões para administrá-lo. Oitocentos bilhões de reais, que serão destinados no combate da pandemia, não representam nem 10% do PIB nacional. E é muito pouco. E outra, de onde saiu tanto dinheiro se o Brasil está quebrado? Por que tiraram nove bilhões do orçamento do SUS em 2019? Percebem o quanto estamos sendo roubados? Não é esmola, é nosso direito, é nosso dinheiro e já deveria estar na conta dos mais necessitados.


A segunda anomalia do argumento é que o decreto de isolamento social não autoriza os “nóias” a ficarem na rua. Eles estão infringindo a determinação e o erro deles não justifica o nosso. Eles também não podem se aglomerar por aí, se estão, é porque falta fiscalização e denúncia. Mas sei que sua indignação distorcida não se fundamenta na desobediência dos demais, mas no desejo irracional de não acreditar nos fatos e defender seu “mito”. Também sei que esse meu argumento não chegara até ele e, se chegar, não vai ler e, se ler, não entenderá. Pena que não são fatos isolados.


Hoje é domingo de ramos. Semana Santa para os católicos. Domingo que vem é páscoa. Será a páscoa mais triste de nossas vidas. Será a primeira semana mais crítica desta doença no Brasil. Daqui para frente, só ladeira abaixo. Ao menos nessa semana, uma multidão de pessoas estará emanando energias de fé e esperança em todo o planeta, com seus ritos e suas orações. Façamos coro nessa intenção. Sejamos humildes e solidários nessa semana sagrada e mantenhamos nosso propósito maior de proteger nossas vidas e a vida dos que mais amamos.


Fiquem em casa e fiquem com Deus.


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20º dia de quarentena

Rio Pomba, 06 de abril


A ideia, de senso comum, que define que o “Tempo é Dinheiro”, é tão antiga quanto mentirosa, mas, como toda mentira repetida muitas vezes se torna verdade, acabamos por também aceitar esta anormalidade como lei da natureza, da qual não podemos escapar. Tempo não é dinheiro, é vida e é arte. O capitalismo nos faz crer que tempo parado é prejuízo e que temos de lutar contra o tempo se quisermos ganhar dinheiro. Caímos em sua armadilha e naturalizamos a artificialidade do tempo, como regra da própria vida. É esse tempo cronometrado que tem nos coisificado desde a segunda revolução industrial, se aprofundando ainda mais no neoliberalismo, nos forçando a lutar contra nós mesmos e nossa natureza mais intima, sem se quer sabermos o que estamos fazendo.


Desde que Henri Ford criou sua linha de montagem, num sistema lógico de divisão do trabalho, temos aceitado a opressão do relógio despertador e do calendário de pagamentos como única norma de vida. Acordamos todos no mesmo horário com um ruído produzido por um objeto estranho e alheio à nós. Esse mesmo relógio artificial, nos impõe um horário para tudo: para trabalhar, para almoçar, para descansar, para se divertir, para dormir, para trepar. Todas as pessoas do mundo respeitando a mesma rotina em desarmonia a própria natureza. Acordamos mal-humorados, porque o despertador nos interrompe um belo sonho; vamos dormir antes da hora porque temos que acordar cedo no outro dia, não porque estamos com sono; almoçamos em horários determinados pelo mercado, não quando temos apetite. Fomos robotizados por uma máquina de controle do tempo que não nos dá tempo para nada e, fomos acostumados a isso desde a infância, por isso, o respeitamos como lei universal.


O filósofo francês Henri Bergson, no começo do século passado, contrariou essa lógica defendendo que o tempo é diferente do espaço e que, não pode ser medido pelo movimento dos ponteiros do relógio. Tempo, para ele, é duração e, nesse sentido, o tempo é subjetivo. Cada um tem seu tempo, seu relógio biológico, mas não o respeitamos por sermos comandados por forças externas à nós, que nos obriga a seguir o tempo do relógio. Tempo esse inalcançável. É como nadar contra a correnteza com fortes braçadas e continuar sendo levado para o abismo de uma cachoeira. Estamos sempre com pressa e sempre atrasados. Angustiados e frustrados. O tempo da duração é outro, varia de pessoa para pessoa e de acontecimento para acontecimento.


Uma aula de filosofia, que dura cinquenta minutos, pode parecer uma eternidade para o estudante desinteressado, enquanto que, o fim de semana ao lado da pessoa amada, pode passar como um único instante. Perdemos a noção do nosso próprio tempo e nos sentimos angustiados de não conseguirmos fazer tudo que esse sistema injusto nos obriga, de acompanhar a velocidade do relógio. Tenho, a cada dois meses, que avaliar se meus alunos aprenderam ou não os conteúdos que, há mais de uma década, eu tento compreender sem o conseguir. Tenho que lhe dar uma nota, imposta por um sistema que não entende que o tempo da filosofia é outro, leva uma vida para se completar. Em épocas de pandemia, quando o tempo parece parado, nosso mau hábito em obedecer cegamente essa rotina, que nos trata como máquinas, nos dá a falsa sensação de que estamos perdendo tempo, quando na verdade estamos ganhando tempo, ou pelo menos, ganhando a oportunidade de restaurar nosso tempo natural. Nos angustia pensar quanto tempo esse isolamento durará, quando poderemos voltar ao normal, isto é, acordarmos mal-humorados e nos sentir atrasados, frustrados, angustiados e deprimidos.


Quanto tempo, no sentido cronológico, durará esse isolamento? Depende. Se quisermos voltar logo para nossa velha e opressiva rotina, é só voltar agora. Multiplicaremos imediatamente o número de infectados, impossibilitaremos qualquer chance de todos os doentes serem atendidos, teremos uma mortandade volumosa, porém rápida. Teremos de limpar a sujeira, lidar com o cheiro de carniça, chorar nossos entes que se forem, mas tudo isso num curto espaço de tempo e, dentro de um ou dois meses, tudo voltará ao normal. A economia estará salva. Agora, se quisermos poupar vidas, salvar pessoas, impedir o colapso do sistema público e particular de saúde, sofrer o mínimo possível por causa dessa doença, então teremos de esperar mais. E o que fazer nesse tempo?


Deixar fluir, durar. Não é hora de se angustiar com as mazelas que nos aguardam no futuro, mas sim de viver o presente. A natureza nos convida a recuperar nosso próprio e subjetivo tempo, o tempo do aprendizado, o tempo da contemplação, o tempo de uma vida descompromissada, o tempo místico, o tempo da arte, o tempo de viver bem. A natureza está sendo generosa e, quem não está respeitando suas ordens, não sabe o que está perdendo. Estamos vivendo um momento que nos permite acordar apenas quando o sono acabar, de comer quando se está com fome, de fazer a sesta depois do almoço, de assistir filmes até tarde da noite, de ler bons livros, fazer algum artesanato, de estar com a família. O Corona Vírus pode realmente nos matar, como tem matado à muitos. O isolamento, porém, como método mais seguro de evitar essa tragédia, é um bem colateral a mais que devemos louvar.


Talvez seja a primeira vez que muitos de nós tem tido o tempo a seu favor. Respeitemos o tempo, fiquemos em casa e venceremos como nunca antes vencemos.


Legenda: Mutirão 24 e 25/02/2018 do Telhado Verde, na casa da Elis e do Adilson Custódio, no Assentamento Denis Gonçalves.


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21° dia de quarentena Rio Pomba, 07 de abril


Não sou necessariamente contra este governo, sou contra toda forma de governo. Sou contra o Estado, não apenas o Estado brasileiro, sou contra o Estado em si. Especialmente o Estado burguês que nada mais é do que o braço armado do Capital, que existe para defender a grande propriedade, mesmo à custa de muitas vidas. Sinto uma grande angústia em ver o quanto a humanidade é dependente do Estado e do Capital no dia a dia, de sua necessidade de defender este ou aquele partido, em sonhar com salvadores da pátria e louvar falsos heróis. Fruto de uma desorganização social que, neste momento de pandemia, fica ainda mais evidente. Queremos acreditar em respostas fáceis, em soluções mágicas e, assim, nos apegamos a qualquer canalha que faz promessas agradáveis ao nosso ego doente, que nos faz incapazes de pensar por conta própria, de nos organizar socialmente e livrar-nos desta dependência.


Essa dependência é anterior a pandemia e, paradoxalmente, este isolamento social, tem nos revelado quão fraco são nossos governos, quão cruel é o neoliberalismo e o quão humilhados temos sido nesses anos todos. A pandemia nos traz um momento raro de conscientização em massa. De que somos mais fortes quando nos unimos, mesmo que isolados cada um em sua casa. Nos mostra, também, e com clareza, a diferença entre ideologias e interesses reais de cada nação. Nos faz defender até o indefensável, apoiar antigos inimigos e desejar bom senso dos nossos governantes. Se dependermos do governo brasileiro, quando passar essa pandemia, virá a revolução. Ele conta com a catástrofe na esperança de, quem sabe, poder dar um golpe e governar com plenos poderes. Se ele for bem-sucedido em seu projeto de destruição, eu contarei com a desobediência civil, a revolta generalizada, com a rebelião das massas, mesmo sem organização. Contarei com a destruição do Estado. Depois a gente se organiza e começa tudo de novo.


Neste momento, porém, em que desejamos sair desta crise com o menor número de vítimas e o menor trauma possível, me vejo, também, obrigado a defender a permanência de um ministro da saúde que, expulsou os médicos cubanos do Brasil, tirou nove bilhões de reais do orçamento do SUS no ano passado e que, até um dia destes, defendia a cobrança de todos os serviços de saúde no Brasil. O defendemos não por ser um bom ministro, mas por medo de alguém pior vir no seu lugar. Até quem defende o “mito” tremeu de medo ontem com a ameaça de sua demissão. Parece ser o único ser racional neste governo de lunáticos terraplanistas. Como toda regra tem exceção, estamos de fato sendo desgovernados de dentro de um hospício e, o Mandetta, é o único ser racional, porque é o médico do manicômio. Me faz lembrar Machado de Assis e seu clássico “O Alienista”, que está disponível no site www.dominiopublico.gov.br para quem quiser baixar, como diversos outros livros. Para quem não leu ainda, o final é surpreendente. Não darei spoiler.


Nós só não estamos vivendo uma situação mais caótica ainda, porque prefeitos e governadores, assim como o ministro da saúde, têm desobedecido as ordens do presidente, insistindo no isolamento. Quando uma ordem é absurda, deve ser desobedecida. Mesmo contra a lei, por dever ético. As orientações da OMS são fundamentadas em conhecimentos científicos, não são opiniões pessoais; são verdades de fato, não pontos de vista. Estamos aprendendo com muito custo essa diferença. Mas as manifestações públicas e cotidianas do senhor presidente, têm obstruído esse trabalho preventivo e informativo e levado muita gente a se expor e nos expor ao risco. Ele conta com o caos, por isso impõe o terror. Seu ministro da justiça, inclusive, já colocou à disposição dos municípios a Força Nacional para “combater” o Corona Vírus. Combater como, com tiros de fuzil? Sim, mas não contra vírus. Sua ordem é para evitar saques no comércio, seus fuzis serão usados contra famintos que “iniciarem” a baderna.


Com o atraso proposital dos recursos destinados a manter o trabalhador em isolamento social, esses saques só não começaram ainda, por solidariedade do povo. As pessoas estão se ajudando, mesmo sem condições para isso. Estão repartindo o pão, enquanto o governo pede jejum aos seus seguidores. Estamos resgatando a máxima de “um por todos e todos por um” e, assim, estamos evitando o caos. Não é o governo, é o povo se ajudando mutuamente, como deveria ser sempre. Algumas comunidades periféricas, há muito tempo bem organizadas, estão sendo exemplos no combate ao vírus. Estão conseguindo impedir o avanço da doença com muito mais eficiência que regiões mais nobres. São associações de bairros, ONGs, o movimento Hip-Hop, o pequeno comércio local, voluntários do bairro que estão desinfetando vielas e becos, distribuindo doações para os mais necessitados, protegendo os mais vulneráveis e fortalecendo a comunidade local, não o governo. Até o tráfico está fazendo mais contra essa pandemia do que o Estado, afinal, basta um toque de recolher, dado pela facção local na favela, e todo mundo obedece. Nessa hora, estão salvando mais vidas que qualquer governo.


Esse é o caráter pedagógico da pandemia, ela evidencia o que muitos de nós vêm dizendo há muitos anos, que o Estado é o nosso inimigo, que o capitalismo é o maior mal da humanidade, que as disputas polarizadas só favorecem aos poderosos e que a fome pode ser eliminada, assim como a violência e as doenças, com autogestão, ajuda mútua, solidariedade e respeito ao meio ambiente e que, não dependemos do Estado para alcançarmos isso. O complemento da expressão “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, sem dúvida que é, “se juntar, o bicho foge”. Juntos somos mais fortes.


Fiquemos juntos, mas fiquemos em casa.


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Fábio José Porfírio Moura nasceu na cidade de São Paulo no ano de 1972. Formou-se em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo, EFLCH-UNIFESP, é professor efetivo do ensino médio na E.E. Professor José Borges de Morais, na cidade de Rio Pomba (MG) – onde mora com a família desde 2015. É artista plástico, diretor teatral, permacultor e escritor de diários desde 1990.

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