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 CONTEÚDO 

SOBRE UMA PONTE: UM RELATO DE JUNHO DE 2013 — Guilherme Benzaquen


Exatamente no último dia do mês de junho, momento em que há dez anos uma virada social ocorria dentro das manifestações das jornadas contra o aumento da passagem, publicamos o presente texto. Escrito desde Recife e Rio de Janeiro e nos oferecido um mês antes de sua edição, o artista e sociólogo que se debruça em anotações realizadas no "calor da hora" das ocupações insurrecionarias das ruas em todo o país, não apenas nos rememora o surgimento de uma vida comunitária erguida no cotidiano da luta, mas também nos deixa explicito que o desejo da destituição é engendrado a tempos pela insubordinação dos esquecidos.

Leia, de fato, com o corpo!



Legenda: print de Não é sobre sapatos, 2014, Gabriel Mascaro, vídeo. Trabalho realizado a partir de imagens feitas durante as manifestações de 2013 em diversas cidades do Brasil.




29 / 05 / 2023


Aos 23 anos, escrevi um relato sobre o junho de 2013 no Rio de Janeiro. Durante quase uma década, não o reli. Finalizei hoje a revisão.


21 / 06 / 2013


Apareceu um cheiro de cadáver na minha casa. Pode ser um rato morto no telhado. Há um defunto entre nós e eu não sei se isso é um presságio. Eu, que há tanto acredito em uma insurreição como o caminho para a destruição de um capitalismo moribundo, me vejo temendo que o cheiro podre anuncie a criação de um novo muito pior do que o existente. A sensação é de fim de mundo e ecoa em mim a pergunta dos zapatistas de qual mundo está acabando.


Tento controlar o incontrolável e, diante do imprevisível, vejo-me o conservador que tanto critiquei. Entendam: continuo acreditando que apenas com golpes violentos superaremos o capital, mas temo que não estejamos fortes o suficiente para trazermos a realidade para o nosso lado. Começo a duvidar da nossa organização. Se perdermos, pode ser apenas a reconfirmação da nossa guerra cotidiana, mas há outros possíveis em que somos mais humilhados, mais condenados, mais metralhados, mais esmagados.


Ontem eu senti medo e me senti um conservador. Eu vi a esquerda institucional apanhando em meio a uma celebração nacionalista. Quando carecas, polícia militar, Bope e Choque se unem em uma ação aparentemente coordenada contra militantes nada preparados, o que se vê não é um confronto, mas um massacre. E o mais assustador é que os socos fascistas foram possíveis com o apoio de milhares de papagaios verde-amarelos que gritavam seus amores à nação – eu não os conhecia e agora os temo. Sei que somente a continuidade do processo revelará o que coletividades tão contrastantes desejam nessas mobilizações, mas assusta-me entender tão pouco sobre quem está jogando o jogo.


06 / 06 / 2013


Hoje fui sozinho a um ato contra o aumento das passagens. Saí tarde da aula e, quando cheguei, estava quase no fim. Ocupamos só uma faixa da Presidente Vargas em um percurso que começou na Candelária. Na frente da Central, o protesto já estava terminando, mas os que restavam se sentaram na avenida em uma tentativa ingênua de estender a manifestação. A polícia, impaciente, não anunciou a bomba de gás lacrimogêneo lançada entre nós. Dispersamos sem grandes resistências e vim para casa.


Vi, no Facebook, que houve outro ato há três dias, mas não tinha ouvido falar da convocação e a repercussão parece ter sido nula. Acho que nenhum conhecido foi. Tem sido bem difícil me aproximar das pessoas organizadas daqui.


11 / 06 / 2013


Escrevo cansado e ainda sob os efeitos do que passei na noite de ontem. Foi o terceiro protesto e foi bem diferente do anterior. Devia ter cerca de duas mil pessoas – não sei ao certo porque não sei contar multidões nem confio nas estatísticas policiais. De qualquer modo, o aumento era evidente e acredito que isso tem a ver com a bomba que tomamos na manifestação anterior e com a repercussão de atos em outras cidades brasileiras.


Cheguei no começo e, dessa vez, fui com um amigo. O protesto começou na Cinelândia e tinha como destino a Candelária, porém a intenção inicial dos organizadores ditou as ruas por pouco tempo. Em menos de uma hora de caminhada, um manifestante um tanto exaltado tirou um coquetel molotov da bolsa. Olhei surpreso porque não me parecia haver qualquer contexto para aquela radicalização. Em sua excitação, ficou tentando acender, mas o pavio não queria queimar. Coquetel que não incendeia é nada mais que uma garrafa com pano.


Andamos mais um pouco e, passando perto do Tribunal de Justiça, outro manifestante finalmente acendeu um coquetel molotov que teve um curto voo: caiu muito perto da gente e muito longe dos policiais. A reação foi imediata e os policiais o pegaram. Fomos para cima no intuito de evitar a prisão. Gritos, empurrões e revista: acharam outro coquetel na bolsa do arremessador. Garrafa com pano que não incendiou, mas que virou flagrante. Equilibrando-se na linha tênue entre a coragem e a estupidez, meu amigo bateu na mão do policial e conseguiu quebrar a prova. O Comitê Invisível, em A insurreição que vem, sugere que o movimento operário sempre teve a greve para saber quem são os verdadeiros companheiros; às vezes basta um protesto para saber quem está do nosso lado da trincheira. Ele quebrou a prova, mas, por isso, foi preso.


Em seguida, fiquei só e foi só correria: acho que mais de uma hora sendo perseguido por bombas, sprays e balas de borracha. Os helicópteros não paravam de voar sobre nós e os policiais corriam com tasers e socos-ingleses. A gente tentou se reconcentrar várias vezes para seguir com o protesto, mas, quando finalmente conseguimos, o Choque nos encurralou pelos dois lados da Presidente Vargas. Sem rota de fuga evidente, foi muita porrada na gente e muito vidro quebrado por nós. O nosso quebra-quebra teve como alvo as paradas de ônibus e as lixeiras, mas tentaram também estilhaçar uma agência de banco sem muito sucesso. A gente recorreu aos sprays e eles aos cacetetes. Tive sorte e não me acertaram.


Ao nos reunirmos novamente, soube que os presos tinham sido levados para a 5ª DP. Decidi ir com o grupo que sobrava para a delegacia fazer pressão pela soltura. No caminho, os trezentos restantes quiseram continuar fechando as ruas. Admito que eu não aguentava mais, queria banho e cama. Como seguíamos na rua, o Choque voltou e prendeu mais alguns. Foram trinta e quatro detidos, mas só um precisou pagar a fiança que contou com a colaboração dos que ali sobravam. Fiquei na frente da delegacia até a liberação do meu amigo. Demorou um tanto e eu não conhecia ninguém, mas me senti acolhido. Não intencionalmente, a repressão parece ter criado um pertencimento coletivo, uma comunidade.


Não paro de pensar que fui completamente registrado, pois, em vários momentos, eu estava de cara limpa.


Legenda: print de Não é sobre sapatos, 2014, Gabriel Mascaro, vídeo. Trabalho realizado a partir de imagens feitas durante as manifestações de 2013 em diversas cidades do Brasil.



15 / 06 / 2013


Antes de ontem teve mais um protesto. Os ônibus não estavam circulando pelo centro e o metrô, sempre caótico nos horários de pico, estava insuportável. Eu me atrasei e já tinham saído da concentração, na Candelária, há uns 20 minutos. O percurso planejado seguiria até a Cinelândia. Os números cresceram novamente: acho que tinha umas sete mil pessoas, mas podia ter seis, cinco ou oito, não sei e, na verdade, não faz tanta diferença assim. Pela primeira vez, os partidos participaram mais ativamente com um carro de som e com faixas da UNE, do PSOL, do PSTU e siglas afins. A estratégia policial mudou. Acompanhavam-nos de longe e, em alguns trechos, nem conseguíamos vê-los. Sei que essa é uma tática de controle, mas me questiono de sua eficiência porque, à distância, a repressão parece menos poderosa. O controle parecia nosso.


Em grande parte do percurso, o clima era celebratório com gritos genéricos. Era visível que alguns P2s nos registravam com câmeras. Mas, com o passar dos protestos, tem aumentado o número dos que vão com máscaras e camisas no rosto para evitar a identificação. Não chega a ser a metade, mas é um número grande o suficiente para que cada um se perca entre os iguais. O interessante é que muitos são bem jovens – são as “new kids on the black bloc”, como nomeou um conhecido. Há uma influência dos Anonymous porque alguns se fantasiam de Guy Fawkes.


Quando chegamos no que seria o ponto final, muitos quiseram continuar, porém, para o descanso dos ouvidos, não seguiu o carro de som com aqueles discursos gritados não sei bem para quem. Fomos em direção à Alerj e ainda éramos muitos. Ficamos bastante tempo na frente da Assembleia. Ali ficou evidente que o movimento tem muitas divergências internas: enquanto alguns cantavam o hino brasileiro, outros pichavam o que podiam. Diante dessa heterogeneidade, não sei ao certo como disputar os rumos que estamos tomando. O futuro imediato é luta.


O ato já estava em clima de dispersão, mas um grupo de umas mil e quinhentas pessoas decidiu continuar andando até a Central. Segui na esperança de alguma radicalização. Começou o quebra-quebra. Não sei se é fetiche, mas é bonito ver uma pedra estilhaçar os vidros de um banco. Se fetiche for, fico com esse que me parece menos perverso do que o legitimado por cacetetes e balas de borracha. Logo em seguida, a polícia também começou seu quebra-quebra e nossos corpos, para eles, eram vidros. É assustador o quanto a polícia carioca bate. A estratégia foi novamente nos encurralar na Presidente Vargas, onde só tivemos perdas até agora. Depois de duas correrias com tentativas de reagrupamento, desisti de continuar até ser preso. Restavam poucos e avaliei com conhecidos que não fazia sentido insistir porque não nascemos para mártires.


16 / 06 / 2013

(trecho de um e-mail para amigos)


Eu estou meio desnorteado. Até agora, tivemos quatro protestos das passagens e um contra a Copa das Confederações. A vida continua com as mesmas demandas e, para muitos, os dias passam como sempre, mas tenho sentido uma certa mudança no ar da cidade. É estranho porque é algo parecido com nosso ciclo anual de protestos contra o aumento das passagens, mas é diferente e ainda não sei bem o motivo.


17 / 06 / 2013


Sonhei novamente que era capturado em uma viatura. Qualquer sirene ou barulho de helicóptero me assusta. Atravesso a rua ao ver um policial. Sinto-me cercado.


18 / 06 / 2013


Quinto ato ontem. Tenho certeza de que não o esquecerei. A concentração foi na Candelária e novamente o previsto era ir até a Cinelândia. Saí de casa com vinagre, casaco, outra camisa e amigos. Quando chegamos, o ato já estava na metade da Rio Branco. Era impossível ver onde começava a multidão e não tenho ideia de quantos estavam ali, mas é certo de que passamos das dezenas de milhares. Não vi policiais. A sensação era de que era tudo nosso. Ouviam-se gritos: “Cabral é ditador”, “ei, Jabor, vai tomar no cu”, “vem, vem, vem pras ruas vem, contra o aumento”, “quem não pula quer aumento”. Começaram a surgir outros: “sem partido” e “sem vandalismo” – ao qual respondíamos “sem moralismo”. A passeata chegou à Cinelândia e lá muitos ficaram; os deixamos bebendo cervejas com atores globais. Os mais indignados seguiram para a Alerj e essa divisão me pareceu bem simbólica das pretensões dissonantes ali presentes.


Os que seguiram foram em direção a acontecimentos difíceis de narrar, mas aqui vai uma tentativa. Na frente da Alerj, havia um grupo de cerca de oitenta PMs que fazia um bloqueio para impedir que os manifestantes subissem as escadas do prédio. A nossa linha de frente, com alguns escudos improvisados, avançava sendo alvo de balas de borracha e de bombas enquanto era amparada por milhares que a seguia de perto. Quando quarenta ou cinquenta mil pessoas querem algo, esse algo acontece – a menos que se escancare a guerra e o massacre, decisão que não foi tomada. Não sei se todos concordavam com a estratégia de enfrentamento, mas seus corpos, por estarem presentes, possibilitaram um recuo de toda a polícia. Eu estava chegando perto da Alerj quando os PMs desistiram de proteger as escadas e se refugiaram dentro do prédio. Os ratos se esconderam. Pensei “estamos vencendo” e talvez eu nunca tenha acreditado tanto nisso.


Depois aconteceu tudo ao mesmo tempo. Um grupo de dez policiais decidiu enfrentar a população na rua da frente. Houve uma investida com muita bomba e bala de borracha, mas tiveram que recuar e ficaram presos em uma agência do Itaú que já estava toda quebrada. Presenciei, no total, três avanços e recuos de policiais. Nos arredores, os bancos foram quebrados e as lojas saqueadas. Aqueles mais ingênuos exibiam os seus espólios: chocolates da Kopenhagen, sandálias Havaianas, TVs de tela plana, CPUs e Uísques. Duas barricadas foram construídas. Não sei se foi por parecerem fogueiras de São João, mas alguns formaram uma breve ciranda ao redor delas. O clima era de tensão, mas também de celebração. Na rua ao lado da Assembleia, um carro foi virado e incendiado. Um policial à paisana descarregou sua arma e a jogou no carro em chamas, dizendo “eu me envergonho de servir um Estado desses todo dia”. Muitos partilhavam da sensação libertadora de arremessar uma pedra contra um vidro, contra um símbolo.


De repente, bandeira branca hasteada – certo, não era branca, parecia meio verde, mas esse é um detalhe insignificante. Os policiais que se escondiam na Alerj se renderam. Na infinidade de protestos que já fui, nunca vi nada parecido e nem acho que verei novamente. Ficamos estarrecidos e excitados. Os gritos se intensificaram em um sentimento coletivo de vitória.


É de entendimento geral que depois de um pedido de trégua vem o cessar fogo. Mas policial é bicho covarde: os mesmos que anunciaram rendição atiraram na gente. Não foi uma bala de borracha, foi bala de chumbo, de cobre, de aço, não sei ao certo, mas foi bala que mata mais fácil. Se a bandeira branca foi única, a covardia não: soube de três baleados em todo o ato. Ainda assim, a revolta popular se conteve e não tentou esmagar os policiais quando saíram da Alerj. Foi montado um cordão de isolamento para protegê-los dos que queriam vingança e, nessa hora, decidi ir embora.


Não entendi muito bem o porquê tudo aconteceu; principalmente o motivo da polícia estar em tão poucos e da demora dos reforços aparecerem. Ao chegar na Cinelândia, vi finalmente o Choque passando. Soube que, ao total, vinte foram presos, mas que antes deu tempo de colocarem fogo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Pelos vídeos que vi, foi uma fogueira pequena, nada que tenha feito muito dano ao prédio.


Eu e um amigo voltamos juntos. Já estávamos muito perto de casa, quando vimos algumas pessoas quebrando um Bradesco. Chegamos na nossa rua e era quase o fim, mas o fim nem sempre é a gente que decreta. Passaram uns vinte policiais de moto que decidiram reestabelecer a soberania. Empunhavam armas e estavam perseguindo qualquer um que se encaixasse no perfil do manifestante. “Mãos na cabeça e encosta na parede”, vimos isso acontecer com um grupo na nossa frente e, meio sem pensar, corremos para um bar que de vez em quando almoçamos. Estava praticamente vazio e os funcionários fechavam a grade para deixar o tumulto do lado de fora. Entramos, mas não entramos sozinhos, a polícia nos seguiu. Éramos os alvos, jogamos a bolsa no chão, fomos para o fundo do bar, arma apontada pro meu rosto, a centímetros do meu rosto, “olha pra baixo”, tentativa de me explicar, “eu só estou indo pra casa”, “não tenho nada a ver com a destruição do banco”, a arma na minha testa, algum funcionário ou cliente tentando ajudar, tentando dizer que nos conhecia, o policial pegando nossas bolsas em busca de nem sei o quê, mandando eu abrir a bolsa, eu abrindo e mostrando a camisa e o vinagre. Já fui revistado antes, mas nunca com tanta raiva, nunca em um dia que policiais queriam vingança depois de serem humilhados. O que o policial viu não foi o suficiente. Não nos bateu, não nos prendeu e tirou o revólver da minha cara. Agora não consigo lembrar direito do rosto dele e sinto uma palpitação estranha. Acho que, se eu cruzar com ele na rua, não vou reconhecer quem colocou uma arma entre meus olhos.


Legenda: print de Não é sobre sapatos, 2014, Gabriel Mascaro, vídeo. Trabalho realizado a partir de imagens feitas durante as manifestações de 2013 em diversas cidades do Brasil.



19 / 06 / 2013


Ontem ocorreu uma plenária muito cansativa no IFCS. Mais de cem inscritos dentro de um total de umas mil e quinhentas pessoas em um auditório que comporta quatrocentas. A mesa organizadora foi composta por militantes do movimento estudantil que, apesar de saberem gerir relativamente bem um momento de tanta confusão, tentaram repetidamente que as suas posições fossem as hegemônicas. Sinceramente não sei o que um momento desses pretende e consegue construir. É inegável a importância de debates públicos para o amadurecimento do processo, mas ninguém se escuta numa plenária desses moldes e as deliberações não surgem de reflexões e sim de gritos e silenciamentos.


A disputa principal foi acerca de quais as demandas legítimas do movimento. Os setores organizados parecem incompreender que isso não vai ser decidido em uma única plenária. Nos últimos dias, muitas forças entraram no jogo. Surgiram questões setoriais, ao mesmo tempo em que a direita e a mídia começaram a apelar para o nacionalismo e para pautas difusas como o “combate à corrupção”. O que parece é que todos os que cotidianamente têm muitos motivos para reclamar estão aproveitando a oportunidade. São muitas pessoas, muitos desejos e muitas insatisfações. Quão representativo é esse espaço quando no dia anterior havia cem mil pessoas nas ruas? Se nenhuma vez o percurso definido nas plenárias foi respeitado nos atos, por que seriam as suas pautas?


Os que protestam não vão ler a ata da plenária que afirma que as pautas devem ser quatro: redução imediata dos vinte centavos, libertação dos três presos do dia anterior com anulação dos seus processos, rejeição da Copa do Mundo e das remoções urbanas e defesa da democratização da mídia. Nenhuma delas contemplou o meu desejo: ocupar o IFCS. Experiências anteriores me ensinaram a importância de um espaço permanente de articulação e debates. Tenho encontrado alguns ecos desse desejo, mas até agora não avançamos nesse sentido.


Saí da plenária me perguntando que, se não sabemos lidar com uma construção olho no olho com menos de duas mil pessoas, como poderemos organizar a sociedade com ampla participação horizontal?


* * *


Hoje voltei ao IFCS para pintar faixas para o protesto de amanhã. No caminho, reparei que a arquitetura carioca começa a ser marcada pelas pichações dos atos. Andar pelo centro é ver que as palavras não calam após nossos gritos. Ao chegar, esperei um tanto, mas o pessoal atrasou muito. Como estava atordoado, desisti para conversar com amigos sobre tudo que está acontecendo. Tomamos uma cerveja e concluímos que há uma discussão central: pacifistas contra vândalos, maioria cidadã contra minoria violenta. Cada vez mais, surgem discursos que instituem uma distinção que só beneficia o status quo. A grande mídia tem jogado particularmente sujo: usa uma distinção moral entre certo e errado como fundamento do seu discurso de criminalização dos atos. Não importa se muitos dos “pacifistas” apoiam, vibram e participam das radicalizações ao serem alvos da violência policial. O que importa é controlar as manifestações.


Sei muito bem que isso não foi construído do dia para a noite e que sempre esteve presente nas direitas e nas esquerdas que têm como marco de atuação a preocupação com a “opinião pública”. Para eles, o manual de regras deve ser seguido. Assim teríamos uma sociedade civil forte que pressiona os seus governantes. Esse é o deserto da realpolitik. A utopia social-democrata revela sua revolta toda vez que o conflito é instaurado nas ruas.


Sobre isso, retomo um texto publicado hoje no site Recife Resiste!:


O Pacifismo contra-revolucionário


Hoje a grande mídia não está mais se colocando diretamente contra as manifestações, ou seja, ao lado da polícia, como acontecia quando, sem nem uma mínima preocupação em discutir a questão das passagens, ela se concentrava em convencer que a repressão era necessária, pois havia atos de vandalismo entre os manifestantes. Depois que a truculência policial ficou escancarada no imaginário popular (mesmo com os esforços de convencer da sua legitimidade e necessidade) e que a participação se tornou massiva, o discurso mudou. Agora todos concordam que a polícia foi bastante violenta e o foco de combate aos levantes por parte do aparelho ideológico capitalista começa a se concentrar na diluição das reivindicações em torno da pauta do Pacifismo.

Há uma tentativa de guiar a pauta do movimento por parte dos setores mais conservadores em torno do que eles chamam de Pacifismo. Essa reivindicação é um freio à luta que busca uma transformação radical da vida em defesa da democracia burguesa. Os que levantam essa bandeira não fazem nada se não contribuir com o fim dos levantes, sustentados por um vago e perigoso comportamento nacionalista, agarrando-se à bandeira do Brasil e cantando hinos patrióticos. Essa é, sem dúvida, a direita no protesto ou, se quiserem, a parte conservadora, os que estão pisando no freio das transformações, é em suma a figura do Cidadão. Não é à toa que esse personagem ocupa um lugar heroico na cobertura da grande mídia.

Do outro lado da realidade criada pela mídia estão as “minorias vândalas”, os “pequenos grupos violentos”. Vemos um maniqueísmo idiotizante, no qual o vilão está mascarado atirando pedras e o herói agarrado numa bandeira do Brasil, entregando flores aos policiais. Quando o que se observa na rua é uma verdadeira heterogeneidade, impossível de ser reduzida a dois personagens fictícios.

A fluidez das manifestações que ganharam as ruas reúne uma massa de indignados que não lutam exclusivamente pelo passe livre ou por um aumento de salário. É nesse clima que a repressão encontra um grande problema. A polícia não consegue enxergar um inimigo claro e a elite político-empresarial não consegue atender as reivindicações para todos retomarem seus trabalhos. Diante desse quadro, a maneira encontrada pela grande mídia é criar o perfil do manifestante legítimo para assim poder estimular a repressão de todos aqueles que não se encaixam nele. Esse perfil, ou seja, o manifestante ideal, o legitimado, é justamente o Cidadão Pacifista. Aquele que exerce seu direito concedido pela democracia burguesa e que ao mesmo tempo é refém dela. Dito de outro modo, todos aqueles que não são Pacifistas devem ser submetidos à violência policial e às suas prisões.

É preciso estarmos atentos, entretanto, que essa figura do manifestante Pacifista não é apenas forjada na mídia. Existe um setor conservador que, de forma consciente ou não, está nas ruas pedindo que o governo continue mandando em suas vidas e esperando a nova mercadoria das prateleiras. É a esse grupo que a mídia se agarra, tentando potencializar suas demandas e sua forma de “manifestar”. É nele onde está a inércia da mobilização. São os fantoches de cara pintada que, mesmo nas ruas, não contribuem para uma transformação social emancipadora.

O Pacifismo deve ser representado com letra maiúscula porque não é o caso de ir ao dicionário para entender o que querem os Pacifistas. Eles estão inseridos nessa disputa política dos rumos dos protestos, mas não significa que eles são contra a violência, pois eles só o são quando se trata de defender o patrimônio supostamente público e a propriedade excessivamente privada. Eles não se preocupam com a violência das detenções, das imposições do capital (cujo transporte ruim e caro é uma das maiores expressões), da truculência policial nas periferias, ou seja, com a violência contra as pessoas. Nesse imaginário da dominação, o Estado detém o monopólio da força legítima, sobrando para a sociedade civil a simples submissão pacífica. A fórmula é a seguinte: as pessoas não podem quebrar vidros, apesar de não sentirem dor, mas o Estado pode quebrar as pessoas. A defesa da propriedade, pedra angular do capitalismo, assume um papel central no Pacifismo. Defender a propriedade é cegar para a violência de não se ter moradia, terra ou acesso à cidade em que se vive. A violência está ali, na ordem do dia a dia, no nosso cotidiano. Essas pessoas também não percebem que há algo de muito violento numa sociedade que precisa de uma corporação fortemente armada, presente em quase todos os âmbitos das nossas vidas, para poder funcionar. Não há paz fora da transformação radical desta sociedade, pois não há paz para quem sempre viveu em guerra.

Os Pacifistas estão se configurando de uma forma cada vez mais clara como os inimigos internos do levante. Aqueles que vão vigiar e punir os “vândalos”, a polícia interna da manifestação, e é por isso que eles levantam aplausos dos políticos e da grande mídia. Não podemos deixar que o posicionamento Pacifista cale o grito dos indignados e a urgência das ruas.

Sigamos!

Recife Resiste!


21 / 06 / 2013


O sexto ato ocorreu ontem em meio a um cenário incerto e assustador. Saí de Botafogo com três amigos às 17h e fomos de metrô. A estação já prenunciava a multidão que se encontraria nas ruas. Éramos muitos, já se ouviam os gritos políticos e alguns de nós pulavam as catracas para não pagar o bilhete. Meus amigos fizeram isso e eu não consegui. Olhei para o guarda e me acovardei. Não seria a primeira vez que pularia uma catraca, mas senti medo, o medo que tem se tornado companhia recorrente. Ao chegarmos na estação Uruguaiana, surpresa: estava toda fechada, impedindo que os manifestantes saíssem dela. Uma grade deixava milhares de pessoas presas dentro do metrô em meio ao horário de pico. Decidimos ir para a estação seguinte tentar a sorte. Deu certo.


O percurso da manifestação era da Candelária até a Prefeitura. Tenho usado de forma pouco rigorosa as palavras ato, passeata, manifestação e protesto, mas acho que a melhor para descrever o que vi no começo do dia 20 de junho é desfile. O que vi ali me lembrou as parades anglófonas. A quantidade de gente era inacreditável, mas nada poderia ser mais desestimulante. Muita bandeira do Brasil, muita foto sendo postada direto no Facebook e milhares de cartazes individuais com dizeres pouco combativos. À primeira vista, a classe média, a direita e a mídia tinham virado o jogo. Foi nesse momento, que vi o horror: os militantes de partidos apanhando.