Breve e cirúrgica, a autora traz no texto alguns apontamentos sobre as relações que se estabelecem porta adentro de nossas casas, pensando o desencontro entre o discurso que permeia o debate público acerca da violência de gênero, e certos acontecimentos da vida privada.
Obra de Alessandra Paravidino para o NUGEDIS - Núcleo de Gênero, Diversidade e Sexualidade do IFFluminense, Campus Macaé
Em um estalido, nos vimos dentro de casa. Isoladas. Encarceradas. Silenciadas. Amélia que era mulher de verdade. Nem todas gozaram do privilégio de ter o seu lar como o espaço de proteção necessário em tempos tão incertos. Virginia Woolf nos alertou sobre a necessidade de matarmos o Anjo do Lar que habita em nós, essa sombra que nos persegue.
Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras.[1]
Para muitas mulheres, não houve tempo de matar o seu Anjo do Lar. Em maio de 2020, a Polícia Militar do Estado de São Paulo registrou o aumento de 44,9% no atendimento a mulheres vítimas de violência, e 46,2 % nos casos de feminicídio em comparação ao mesmo período em 2019[2].
Ao mesmo tempo, neste mesmo período, a produção científica de mulheres despencou. Isso é o que aponta um levantamento preliminar do projeto brasileiro Parent in Science, em que 40% das mulheres sem filhos disseram que não concluíram seus artigos científicos; entre as mães pesquisadoras esse índice chega a 52% [3].
A quarentena que foi adotada em 24 de março de 2020 alargou-se aos tropeços até o momento em que escrevo a vocês, 15 de dezembro. Nem todos os postos de trabalho permitiram o home office, mas vale ressaltar o desemprego em massa que atingiu as mulheres, principalmente as mães, que não contam com redes de apoio como os pais das crianças e o ensino formal.
O inimigo está ao lado. Com ele, a mulher compartilha uma história.
Pais, maridos, irmãos, namorados, companheiros.
Fotografia de Larissa Lanza da obra 100 %, do artista Vitor Cesar, exposta no Solar da Marquesa de Santos / Museu da Cidade de São Paulo
Parem de nos matar
A nós, que sobrevivemos, eleitas pelo destino e pelo acaso, que tivemos sorte: como lidar com a culpa? Não só o Anjo do Lar nos atormenta. Bela, recatada e do lar. A beleza conquistada na ponta do bisturi. O recato que deve cair entre quatro paredes para saber servir. O lar sustentado pelas bolhas das mãos.
Diante da culpa quem nos escuta?
Diante das violências quem nos acolhe?
Diante do terror que alicerce nos sustenta?
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Notas [1] WOOLF, Virginia. “Profissões para mulheres”. IN: Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Pocket Plus L&PMA, 2012.
[2] Violência doméstica dispara na quarentena: como reconhecer, proteger e denunciar. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/violencia-domestica-dispara-na-quarentena-como-reconhecer-proteger-denunciar-24405355. Acesso em 15 de dezembro de 2020.
[3] Produção científica de mulheres despenca na pandemia - de homens, bem menos. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/26/pandemia-pode-acentuar-disparidade-entre-homens-e-mulheres-na-ciencia.htm. Acesso em 15 de dezembro de 2020.
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Thaís Mendes Moura Carneiro é feminista, educadora e pesquisadora, com experiências na área de educação formal, ao ar livre e mediação cultural. Graduada em História pela FFLCH/USP, especialista em Fundamentos da Arte e da Cultura pelo IA/UNESP e mestranda em História Social pela FFLCH/USP. Criadora do projeto Mulheres Viajantes, empoderamento feminino por meio de viagens. Dedica-se, atualmente, a pesquisas na área de História das Relações de Gênero, escritas de si, relatos de viagem e América Latina
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Quarentene-se
Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com
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