22 de jul de 2020

A PANDEMIA, O ESPELHO DE MERDA Y O FIM DO MUNDO - abigail Campos Leal

Atualizado: 29 de jul de 2020

Legenda: colagem de abigail Campos Leal com tratamento y intervenção digital de Ibu Helena.

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I – nota introdutória

esse texto é a transcrição, com algumas modificações, de uma breve fala que apresentei, à convite de Cidinha da Silva, a quem agradeço profundamente, no programa semanal “Almanaque Exuzilhar”, 5° edição, sob sua curadoria, que também contou com a presença de Luíz Maurício Azevedo y Mariléa Almeida, y aconteceu no dia 13/07/2020, na página do facebook dos Jornalistas Livres, mas que já se encontra disponível na página do Youtube dos mesmos. Gostaria ainda de pontuar que apesar de a transcrição possibilitar certas modificações y algum aprofundamento, decidi me ater à fala, de forma a priorizar os ganhos que um texto mais breve possibilita, o que, sem dúvida, impõe uma série de limitações. O intuito da conversa era juntar distintas vivências pretas para pensar a crise global que vivemos com a Pandemia (mas que vem de muito antes) y, na medida do possível, propor análises mais amplas y de síntese, além de caminhos possíveis para seguir atravessando.

II – acessar a densidade y a complexidade do mundo

tá tudo uma merda! não importa pra onde quer que direcionemos o nosso olhar, são as mesmas variações dessa merda fudida que n/os atravessam! aliás, não é preciso nem mesmo direcionar o olhar! A merda do presente, o presente de merda, espirra na nossa cara, por todos os lados. e/u não tinha, portanto, como começar essa fala, sem partir dessa merda que nos invade a vi/da! essa merda é uma outra forma de nomear as violências y destruições que n/os atravessam. não tenho como pensar/sentir o nosso presente sem pensar nos constantes y ininterruptos assassinatos racistas cometidos pelo Estado, não somente dos muitos demasiados muitos demais mesmo jovens pretos, assassinados pela Polícia, mas também nos cada vez mais constantes assassinatos de crianças pretas: Miguel, João, Guilherme, Agatha... sem falar do plano sistemático de extermínio da população trans que existe em curso no Brasil, do Brasil que ainda y ainda y ainda segue sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo; assassinatos que não vem só da mão do Estado, mas das mãos do cidadão de bem, como Quely da Silva que teve seu coração arrancado, como Dandara dos Santos que foi espancada em plena luz do dia por inúmeros homens cis em praça pública, por horas, y teve tudo filmado... sem falar do genocídio das pessoas y das culturas indígenas, quer seja em conflitos com pecuaristas no centro-oeste, com madeireiros y garimpeiros no norte, ou através do contágio pelo COVID-19 por toda a parte... sem falar da constante destruição de ecossistemas y formas de vidas humanas y não-humanas, em Brumadinho, Mariana, Belo Monte... sem falar do avanço do nazi-fascismo, não só daquele que carrega suásticas, mas daquele que carrega a cruz y fala “Na paz do Senhor”, daquele cujo símbolo é o Pato y cujos números são 17 ou 38, daquele que odeia bandeiras vermelhas mas que tá cagando pro vermelho do sangue de pretes, trans, indígenas y ecossistemas... sem falar das mais de 70 mil mortes em função das políticas de abandono social por parte do Estado frente à Pandemia Global do COVID-19. Y aí, no meio da Pandemia, toda essa violência aniquiladora se adensa, se cruza, se atravessa uma na outra, criando um grande amalgama de destruição y sofrimento.

a PanDEmiA/(violência colonial) aí, funciona como uma espécie de espelho monstruoso y deformado, um grande espelho de merda, todo fudido y cagado, porque ao se fazer gritante as suas imagens de violência y destruição, ele espelha em imagens desfocadas, disformes, desproporcionais, agigantadas, diminuídas, apagadas, uma violência anterior y ao mesmo tempo futura, que já está em curso há muito, muito, muito... tempo. Tempo demais! Y já se prolonga no futuro...

parte da violência destruidora que vivemos hoje reside no fato dessas violências estarem ainda no campo da "normalidade". Como se fosse ainda "normal", assistir y ser atravessado diariamente por imagens, cenas ou pelas forças de violência mesmo dessa destruição. Mas essas violências estão nesse campo porque são, de fato, o "normal"; não são acidentes ou excessos, ou simples contradições, mas parte da estrutura fundacional do Brasil. Por isso comecei falando que tá tudo uma merda! porque essa merda precisa ser nomeada, precisamos trazer também pra linguagem a densidade de toda essa violência y destruição estrutural que vivemos no Brasil, no Mundo, em toda a sua crueza y podridão! A linguagem também precisa vibrar reflexivamente essa destruição, porque acredito também que essa vibração pode chacoalhar corpos, forças, espíritos! Não nomear densamente essas forças destrutivas de merda, somente reforça a dormência y paralisia onto-política do nosso presente. Essa merda que nos destrói é, portanto, uma merda! y essas merdas, que são estruturais, têm nome: Racismo anti-preto y anti-indígena, Supremacismo Branco, Transfobia y lgbtqiafobia, Ecocídio, Capitalismo, Desenvolvimento, Estado, Polícia, Democracia, Direitos Humanos, Progresso, Colonização... assim, através dessa torção violenta que tenta refazer a dormência colonial da linguagem, poderemos avançar no próximo passo necessário: essa merda toda precisa acabar!!!

III - o que a Pandemia tem me demandado?

e/u tenho tentado pensar/sentir o que a Pandemia, y tudo que ela articula violenta y caoticamente, assim como os fins do mundo que ela distorcidamente espelha, tem me demandado. isso tem sido não só um exercício para tentar, de fato, mudar o mundo, mas para tentar também simplesmente não sucumbir à morte.

assim, refletindo, fritando, sentindo-pensando, uma das primeiras coisas que senti vibrando em mim a partir da Pandemia, mas também já antes dela, é a necessidade de nos situarmos. Quais as posicionalidades que ocupamos no meio dessa merda, dessas violências estruturais desse fim do mundo? meu corpo se mexe y é percebido como um corpo que deserta o binarismo de gênero y a heterossexualidade compulsória, desde muito tempo. Já sofri violências transfóbicas em casa, na faculdade, já tentaram me matar, já usei facas y garrafas de cerveja para defender minha vida, aliás, ando, como milhares de travestis y pessoas trans, armada todos os dias, há pelo menos 8 anos. entretanto, tenho uma série de acessos, pois estou (ainda que a duras penas) na academia y cursando o doutorado, não preciso mais da prostituição ou do tráfico (y isso não é algo definitivo), trabalho y luto politicamente num circuito de arte com alguns acessos, ainda que também na precariedade. sou uma preta de pele clara, ainda que minha racialização me coloque várias vezes nas posições do corpo “mestiço” y “pardo”, sofro desde muito cedo, portanto, com a violência racista das mais diversas formas (y isso ainda não me isentou de reproduzir certas tonalidades de racismo em corpos pretos de pele mais escura do que a minha); mas sei que não passo as mesmas violências racistas que pessoas pretas retintas, que pretes que moram na favela. assim, cada uma de nós habita diferentemente esse fim do mundo de merda. compreender y enunciar essas posicionalidades – tomando cuidado também para não ceder às armadilhas da posicionalidade fixa y da representação/representatividade - torna-se muito importante para que, a partir daí, a gente possa entender melhor o jogo de forças em curso y jogá-lo, portanto, diferentemente, no sentido de produzir justiça y vida aí.

também tenho sentido mais a necessidade de exercitar a sensibilidade, porque parte da merda que vivemos tem a ver com uma certa incapacidade de acessar a sensibilidade da experiência vital. Não entender a gravidade do período que vivemos, seguir vivendo essa merda toda (além também de expor a posição que você habita nesse fim do mundo; porque a capacidade de seguir a "normalidade" tem a ver com o quanto de merda que te atravessa a vi/da) em "normalidade" é também uma expressão dessa deterioração da sensibilidade que é também um traço do nosso presente. Y aí e/u me sinto muito cagada, atravessada pela merda toda. tenho tentado ouvir mais, falar menos, me voltar mais pra mim mesma, me voltar mais para outrem, tenho tentado tomar mais cuidado com as palavras, com as ações y gestos, tenho tentado dar mais tempo pra mim, ficar mais comigo, mais silenciosa-reflexiva, tenho repensado afetos, relações, amizades, comprometimentos, alegrias, diversões, drogas... tenho tentado abrir os meus poros pras mudanças dessa época, tenho tentado filtrar vários estímulos desse mundo, tenho tomado mais banho, me misturado com água porque soul também água, tentado tomar mais chás, tenho lido mais, y lido não apenas livros, estudado mais, tenho voltado a escrever minhas lem/branças fraturadas de sonhos, tenho tentado me alimentar melhor y de forma mais ética, tenho tentado não surtar praticando meditação, tenho sentido vontade de lutar, tenho lutado contra o desejo de me aglomerar... exercitar a sensibilidade é uma outra forma de nos reposicionarmos no mundo, isso passa também por enfrentarmos toda a merda do mundo que existe y vibra cadavericamente em nós. dá medo, dá culpa, dá vontade de fugir de si... mas tenho tentado me revirar com meus e/u´s de merda, encará-los, sem fugir... isso também é tentar exercitar a sensibilidade. Tenho achado esse um passo fundamental pra descompassar o fim do mundo.

outro aspecto que tenho sentido necessidade de trabalhar é o pessimismo. Aqui, o pessimismo já funciona também como uma outra forma de articular a sensibilidade. É, e não é, ao mesmo tempo, uma certa sensibilidade para sentir que as coisas estão piorando, desde muito tempo! As coisas seguem piorando! Y as coisas ainda vão piorar mais! Isso se capta no ar poluído que muitas de nós respiramos, nas notícias de jornais, na esquina da nossa casa, ao conversar com uma amiga por whatsapp, ao abrir os comentários do G1, naquilo que também não vira notícia. Não se trata de esperar o pior, mas de sentir as forças de morte que pululam por toda a parte nesse mundo. vivemos a época dos assassinos; eles já estão vindo atrás de nós! Mas aí, nesse pessimismo, é preciso ainda dar espaço para a movimentação. porque a merda do presente pode nos soterrar, nos paralisar. As coisas estão piorando! sim! Mas isso deve servir como um sinal: precisamos nos preparar. Portanto, trata-se de articular, no meio de toda essa merda, que segue piorando, um pessimismo ativo, que funcione como uma força propulsora, uma força de vida! y aí, devo essas sensibilidades pessimistas que tem me permitido atravessar esse fim do mundo de outra forma, à Octavia Butler y especificamente à Jota Mombaça, força incrível y desmesurada que tem avançado muito na retomada y produção de um imaginário anticolonial radical, como também tem possibilitado através da sua arte y vida, caminhos possíveis a se trilhar em meio à violência y destruição desse mundo.

sentindo essa violência y destruição total que imana do nosso presente de merda, sentir que tudo isso está piorando y que devemos nos preparar, aí, pro pior que vem mas que também já está aqui, tem me levado a re-situar ativamente nesse fim do mundo. a movimentação y a transformação é, portanto, algo que a vida tem me sussurrado de dentro como demanda vital.

IV - o fim do mundo como o conhecemos

para finalizar, gostaria de trazer algumas reflexões de Denise Ferreira da Silva sobre o que ela vem chamando de o fim do mundo como o conhecemos.

meu primeiro contato profundo com a obra de Denise Ferreira da Silva se deu em fins de 2019, na ocasião da publicação do seu livro A dívida impagável [1] [2], durante um evento ocorrido em São Paulo, que também exibiu alguns filmes de sua autoria. De imediato, já fu/i atravessada por todas as forças disruptivas y vitais que o seu corpo y arte articulam. Denise Ferreira da Silva é uma força da natureza! Y sua força vibrando em mim, me lembra também que sou força. Li imediatamente A dívida impagável (Ferreira da Silva, 2019). Sigo me afetando com o que dessa leitura permanece re-mexendo em mim. Y também sigo relendo-o.

se vocês me permitem, vou fazer um breve diálogo com algumas questões que Denise Ferreira da Silva trás aí. Não tenho tempo para articular essas questões com o devido cuidado que elas merecem, entretanto, vou tentar nessa brevidade, trazer pra cá a força explosiva de vida que elas possibilitam. Em distintos momentos do livro, Ferreira da Silva mobiliza o que ela chama de poética negra feminista; um conjunto de imagens protagonizadas por feminilidades pretas que, na sua corporalidade, articulam novas formas de imaginar y levar a cabo o fim do mundo como o conhecemos. Trago aqui duas dessas forças para refletirmos. A primeira é Dana, personagem principal do romance Kindred: laços de sangue [3], da também incrível Octavia E. Butler. Dana é uma jovem preta que vive na Califórnia dos anos 1970, tendo um subemprego formal y o sonho de ser uma escritora profissional. De repente, ela se vê transportada para uma fazenda escravocrata no Sul dos EUA no começo do século XIX. Lá, ela conhece um antepassado seu y se vê, repetidas vezes, tendo que salvar a sua vida, o que implica também em se salvar. Mas Dana se percebe, ao desenrolar da história, tendo que romper o pacto genealógico que permite a sua vida y se vê impossibilitada de pagar a sua dívida de sangue. A segunda se dá com a chamada crise dos empréstimos subprime de 2008. Em meados dos anos 2000, o mercado financeiro estadunidense viu na enorme quantidade de pessoas marginalizadas pelo capitalismo, uma possibilidade de lucro. O mercado então passa a oferecer créditos para esses grupos marginalizados, “subprime borowers (homens e mulheres negrxs e latinxs da classe trabalhadora e classe média baixa)” (Ferreira da Silva, 2019, p. 157). Mas, justamente por essas pessoas estarem nas margens do capitalismo, os empréstimos são feitos com taxas de juros ex/orbitantes. Sem a menor condição de quitar essa dívida, as subprime borrowers não têm alternativa a não ser não pagar a dívida: inadimplência, calote! Em 2008, a partir dos EUA, isso tudo explode numa das maiores crises do capitalismo global desde a quebra da bolsa de 1929.

mas o que Ferreira da Silva nos chama atenção, brilhantemente, aliás, é que tanto Dana quanto as subprime borrowers, distintas figuras da poética negra feminista, não são as responsáveis (genealógica y economicamente) por essas dívidas impagáveis que herdam. Ambas tiveram seus ancestrais sequestrados, roubados, torturados y colocados para trabalhar y tendo todo o valor do seu trabalho roubado; tiveram esses mesmos ancestrais assassinados das formas mais brutais; tiveram as suas terras y as riquezas naturais saqueadas! Com toda essa força de trabalho, com essas riquezas y terras, com essas mortes y esse sangue, com essa matéria, a branquitude eurocolonial construiu o mundo como o conhecemos. Tanto Dana quanto as subprime borrowers herdam esse mundo forjado no sangue dos seus ancestrais y roubo das suas terras; um mundo que só lhes oferece um destino: pagar uma dívida impagável y uma dívida que não é sua. Mas aí, ao romperem com o pacto genealógico y econômico, não pagando as dívidas, elas nos fazem imaginar formas outras de levar a cabo o fim do mundo como o conhecemos.

essa dívida impagável que ambas herdam, não é sua, mas da branquitude eurodescendente que forjou esse mundo com a expropriação do trabalho y com terras y riquezas roubadas de povos indígenas y africanos escravizados; transportando à esses a incumbência moral y material de pagar as suas dívidas. Mas como se paga, então, essa dívida que os eurobrancos tem para com pretes y indígenas y inúmeros povos não-europeus, não-brancos, que morreram em combate durante a invasão colonial (que se estende até o nosso presente de merda), que morreram trabalhando em minas de ouro ou em plantações de algodão ou de cana-de-açúcar, produzindo a riqueza (matéria) que ergueu, literalmente, o império colonial branco na Europa, nas Américas, no Mundo? Para Denise Ferreira da Silva essa dívida – a dívida do genocídio colonial perpetrada pela branquitude europeia y eurodescendente - também é, num sentido bem específico, impagável! somente através da desfeitura total desse mundo, desse mundo de merda, do mundo como o conhecemos, que essa dívida pode começar, num certo sentido, a ser paga. Isso significa, de forma dura y avassaladora, mas de formas que ainda nem ao menos compreendemos, mas já sentimos, que a merda desse mundo precisa acabar! Mas ele precisa acabar em justiçamento!

o justiçamento (a justiça em movimento) anticolonial y antirracista demanda, portanto, o fim do mundo como o conhecemos.

y aí, não pra concluir, mas pra abrir, e/u queria terminar com uma pergunta que é também uma provocação pra que a gente se mova em justiça: como nos implicamos na desfeitura do mundo como o conhecemos? y mais, como podemos imaginar novas y outras formas de desfazer esse mundo?

abigail Campos Leal

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Notas
 
[1] Ferreira da Silva, D. A Dívida Impagável. Trad. Amilcar Packer e Pedro Daher. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019.
 
[2] Download gratuito em: https://ehcho.org/conteudo/a-divida-impagavel-denise-ferreira-da-silva?fbclid=IwAR2Cp1nw1idFnY3Gfq9VTUrrpMFJeVKC7N1ucoXYhNkxTZ0Rtg5LInNllVs
 
[3] Butler, O. E. Kindred: laços de sangue. Trad. Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2017.
 

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abigail Campos Leal atua entre os limites da filosofia y poesia. possui mestrado em Ética Aplicada pela UFF, em Filosofia pela UFRJ y faz doutorado em Filosofia pela PUC-SP. compõe a organização do Slam Marginália (competição de poesia falada para pessoas trans). palavradora, publica textos autorais e traduções em formatos de fanzine. tenta, dentro de muitos limites y através de inúmeras formas, produzir justiçamentos y alegrias anticoloniais. Publicou no dia 17/07/2020 seu livro de estreia escuirsendo: ontografias poéticas pela Editora O sexo da Palavra. Ainda esse ano publica, dessa vez pela GLAC edições, o livro ex/orbitâncias: os caminhos do comunitarismo y da deserção de gênero.

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Quarentene-se

Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras pela por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com